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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.6 n.1 Ribeirão Preto  2010

 

Cargas psíquicas de trabalho e desgaste dos trabalhadores de enfermagem de hospital de ensino do Paraná, Brasil

 

Mental workloads and exhaustion of nursing workers at a teaching hospital in Paraná, Brazil

 

Cargas psíquicas de trabajo y el desgaste de los trabajadores de enfermería de un hospital escuela de Paraná, Brasil

 

 

Iara Aparecida de Oliveira SeccoI; Maria Lúcia do Carmo Cruz RobazziII; Francisco Eugênio Alves de SouzaIII; Denise Sayuri ShimizuIV

IEnfermeira, Pós-doutoranda da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP). Professor da Universidade Norte do Paraná. Enfermeira do Hospital Universitário da Universidade Estadual de Londrina (HU/UEL). e-mail iarasecco@sercomtel.com.br
IIEnfermeira, Professor Titular da EERP/USP. e-mail avrmlccr@glete.eerp.usp.br
IIIMédico do Trabalho. Mestre em Saúde Coletiva. Professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Diretor Superintendente do HU/UEL. e-mail kiko@uel.br
IVEnfermeira, Enfermeira do Trabalho da Prefeitura Municipal de Paranaguá, PR. e-mail deniseshimizu@bs2.com.br

 

 


RESUMO

O estudo objetivou analisar cargas psíquicas de trabalho da equipe de enfermagem de hospital de ensino e sua relação com os desgastes desses trabalhadores. Foi realizado sob o referencial teórico do materialismo histórico, com abordagem qualitativa, por meio de entrevistas semiestruturadas, com sete gerentes de enfermagem. Os achados evidenciaram que as cargas psíquicas relacionam-se à penosidade inerente à atividade, pelo convívio com a dor e a morte; ainda, a história de vida e as dificuldades socioeconômicas do pessoal têm contribuído para potencializar as cargas psíquicas. Ações preventivas e assistenciais à saúde física e mental do pessoal de enfermagem são absolutamente necessárias.

Palavras-chave: Estresse Psicológico, Carga de Trabalho; Saúde do Trabalhador; Enfermagem; Hospitais de Ensino.


ABSTRACT

This qualitative study aimed to analyze mental workloads of the nursing team at a teaching hospital and their relation with these workers' exhaustion. The methodological framework was based on the historical materialism. Semi-structured interviews were carried out with seven nurse managers. The findings evidenced that the mental loads are related to the inherent burden of this activity, and the contact with pain and death. Moreover, the life history and the socioeconomic difficulties have contributed to potentiate the mental loads. Prevention and care actions targeting nursing workers' physical and mental health are absolutely necessary.

Keywords: Stress, Psychological; Workload; Occupational health; Nursing; Hospitals, Teaching.


RESUMEN

Este estudio cualitativo tuvo como objetivo analizar las cargas psíquicas de trabajo del equipo de enfermería de un hospital escuela y su relación con los desgastes de esos trabajadores. El materialismo histórico fue utilizado como referencial metodológico. Fueron realizadas entrevistas semi-estructuradas con siete gerentes de enfermería. Los hallazgos evidenciaron que las cargas psíquicas se relacionan a los problemas inherentes a la actividad, debido a la convivencia con el dolor y la muerte. También la historia de vida y las dificultades socioeconómicas del personal han contribuido para potencializar las cargas psíquicas. Acciones preventivas y de atención a la salud física y mental del personal de enfermería son absolutamente necesarias.

Palabras clave: Estrés Psicológico; Carga de Trabajo; Salud laboral; Enfermería; Hospitales Escuela.


 

 

INTRODUÇÃO

O hospital é o ambiente institucional no qual a enfermagem atua na atenção à saúde, segundo o modelo clínico, tão necessário à assistência aos usuários desses serviços. O Ministério da Saúde (MS) estimou que o pessoal de enfermagem representa 49,6% do total de trabalhadores do setor saúde no Brasil, 57% dos quais correspondem ao pessoal de nível médio, o que expressa a relevância desse grupo no contexto da saúde pública no país(1).

Um dos indicadores da realidade relacionado às condições de trabalho desse grupo refere-se ao fato de que cerca de 70% dos trabalhadores possui duplo emprego formal(2). Essa situação advém das dificuldades socioeconômicas enfrentadas pelos mesmos, uma vez que a atividade é pouco valorizada socialmente, apresenta remuneração insatisfatória, o que termina por obrigar os indivíduos a adequar horários, plantões, jornadas extenuantes, muitas vezes conciliadas com as responsabilidades domésticas, quando não com a dedicação aos estudos.

Destaca-se que esse cenário fica agravado em decorrência do envelhecimento de contingente expressivo também dessa população, dada a transição demográfica vivenciada na estrutura populacional brasileira. É fato que, assim como o que vem ocorrendo em outras categorias profissionais, os trabalhadores de enfermagem igualmente passaram a ter a data da aposentadoria postergada em razão do panorama da Previdência Social no Brasil, embora sofram com expressivo desgaste físico e psíquico que a atividade requer.

Para a produção de serviços de enfermagem hospitalar, o processo de trabalho tem particularidades, decorrentes da maneira como ele é organizado e desenvolvido, sobrepondo aos trabalhadores cargas de trabalho específicas, que trazem repercussões importantes à sua saúde física e mental.

O processo de trabalho refere-se à transformação da natureza e de si mesmo, realizada pelo homem, visando a obtenção de um objeto útil, cujos elementos essenciais são o próprio trabalho, o objeto a ser transformado e os instrumentos necessários para essa transformação(3). No caso do hospital, o processo de trabalho realizado em equipe tem no corpo dos indivíduos o objeto do trabalho, valendo-se de arsenal de conhecimentos, materiais e equipamentos para atingir o objetivo de promover, manter e/ou recuperar a saúde dos usuários.

Cargas de trabalho são definidas como os elementos do processo de trabalho que interagem entre si e com o corpo do trabalhador, desencadeando alterações nos processos biopsíquicos que se manifestam como desgastes físicos e psíquicos potenciais ou efetivamente apresentados. Elas são classificadas em cargas de materialidade externa ao corpo do trabalhador (cargas físicas, químicas, biológicas e mecânicas) e cargas de materialidade interna (cargas fisiológicas e psíquicas), por se estabelecerem por meio do seu corpo(3).

Na análise do processo de trabalho da enfermagem hospitalar é possível reconhecer as cargas físicas, entre muitas fontes, no ruído, nas vibrações de maquinarias, na inadequada iluminação dos setores, na pouca ventilação; as químicas, nos inúmeros produtos utilizados, como desinfetantes, antibióticos e quimioterápicos, nos gases, vapores, líquidos, entre outros; as cargas biológicas são caracterizadas pelo contato com parasitas, bactérias, vírus, fungos, muitos que conferem graves riscos aos trabalhadores; as mecânicas dizem respeito ao objeto de trabalho, à tecnologia empregada para a realização do mesmo, às condições de instalação e manutenção dos materiais e equipamentos da produção, trazendo como consequência contusões, fraturas, feridas e outras lesões que atingem o corpo do trabalhador.

As cargas de materialidade interna, por sua vez, classificam-se em cargas fisiológicas, decorrentes dos esforços visuais e físicos necessários à atividade, pelas posições incômodas assumidas para a prestação da assistência, pela sobrecarga de atividades decorrente da exigência da produtividade, pela realização das horas extraordinárias, pela dupla ou até tripla jornada, pelo trabalho em turnos, e em cargas psíquicas, que dizem respeito ao estresse no trabalho, consequentes do ritmo e da intensidade empreendidos nos atendimentos de emergência, pelo convívio com o sofrimento e a morte, pela necessidade de manter atualizado, em condições competitivas no mercado de trabalho, pelas relações de poder com a chefia e diversos saberes relacionados à atividade, de como o trabalho é organizado e dividido.

Nessa caracterização, entre os muitos agravos que atingem os trabalhadores de enfermagem, estão aqueles ocasionados pelos acidentes de trabalho (ATs) e as doenças relacionadas ao trabalho (DRTs). De acordo com a legislação brasileira, AT é aquele que ocorre no exercício do trabalho e que traz como consequência uma lesão corporal ou perturbação funcional, com perda ou redução da capacidade para o trabalho, de forma permanente ou temporária, ou até mesmo a morte. É considerado como acidente de trabalho típico (ATT) aquele que ocorre durante o desempenho laboral, como doença profissional aquela que foi produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho inerente à atividade, e, como doença do trabalho, aquela adquirida ou desencadeada por condições especiais em que o trabalho é realizado e que com ele se relacione.

Considerando-se a dificuldade de diferenciação entre as doenças profissionais e as do trabalho, ambas presentes no texto legal, por meio de consenso entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Previdência e Assistência Social, foi adotada a denominação doença relacionada com o trabalho (DRT), para designar os agravos originados no processo de trabalho. Essas doenças constam no Anexo II do Regulamento da Previdência Social, por meio da Lista A, que traz a relação de agentes ou fatores de risco de natureza ocupacional, com as respectivas doenças que podem estar com eles relacionadas, e a Lista B que apresenta a relação de DRTs elaborada a partir da Lista A(4).

Por todas essas especificidades, a correlação entre cargas de trabalho e desgaste do trabalhador, considerando também o seu envelhecimento, converge para um campo de dificuldades na sua caracterização, dado o número de variáveis estabelecidas nesse processo, que vão desde os componentes históricos e sociais do indivíduo, até os seus hábitos de vida, a forma como o processo de trabalho é desenvolvido, o contexto em que ele é realizado.

Os ATs e DRTs que acometem os trabalhadores que têm vínculo com o Instituto Nacional de Previdência Social, para o reconhecimento legal, devem ser registrados por meio da Comunicação de Acidentes de Trabalho(5). Entretanto, a Portaria do MS nº.777/GM, de 28/4/2004(6), que trata dos procedimentos técnicos para a notificação compulsória de agravos à saúde do trabalhador em serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), estabeleceu a notificação compulsória de todos os casos de acidentes enquadrados em 11 agravos considerados graves, por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Entre esses estão os ATs fatais ou com mutilações, ATs com exposição a material biológico, dermatoses ocupacionais; também, lesões por esforços repetitivos/distúrbios osteomusculares, câncer e transtornos mentais quando relacionados ao trabalho.

É preciso considerar as dificuldades de caracterização das DRTs, especialmente os agravos de ordem emocional, uma vez que elas se estabelecem no corpo do trabalhador de forma insidiosa, dificultando o estabelecimento do nexo causal para sua caracterização.

De fato, as cargas psíquicas contribuem sobremaneira para o adoecimento do trabalhador, trazendo-lhe marcas de difícil identificação. Nessa perspectiva, dada a relevância do problema para os trabalhadores de enfermagem, com repercussões pessoais e sociais de expressiva monta, a investigação ora apresentada se justifica.

 

OBJETIVO

O objetivo do presente estudo foi investigar as cargas psíquicas de trabalho presentes no processo de trabalho dos trabalhadores de enfermagem de hospital de ensino do Paraná - Brasil (HE), e sua relação com o desgaste decorrente dessa exposição.

 

MATERIAL E MÉTODOS

O estudo realizado, com abordagem qualitativa, foi desenvolvido sob o referencial teórico do materialismo histórico, apresentado, inicialmente, por autores(3), cuja abordagem investigativa é especifica da área da Saúde do Trabalhador. O estudo da relação "processo de trabalho" e "saúde dos trabalhadores" requer a análise das formas históricas que o processo de trabalho assume no capitalismo, assim como a elaboração de teorização que contemple os conceitos necessários para possibilitar a análise dessa relação mencionada, ficando categorias analíticas capazes de contemplá-la(3).

O HE, campo do estudo, é órgão suplementar de universidade estadual situada no norte do Paraná, Região Sul do Brasil; possuindo o total de 333 leitos no período estudado, todos disponibilizados ao SUS. A comunidade interna é composta por 1.742 trabalhadores técnicos administrativos efetivos, 384 docentes, 1.843 alunos de graduação e pós-graduação, incluindo residentes, totalizando, aproximadamente, 3.969 pessoas. Desse total, 37,2% (648) eram da equipe de enfermagem, com as seguintes características: majoritariamente feminina (78,7%), 69,2% com idade superior a 41 anos. Ainda, 68,8% da equipe possuía mais de 10 anos de atividade no hospital, 20,7% tinha duplo emprego formal. Os enfermeiros representavam 14,8% do total da equipe, havendo grupos hierarquicamente definidos, sendo que aqueles que atuavam diretamente na assistência ao usuário eram subordinados aos chefes de seção, que são gerenciados pelos chefes de divisão e, por fim, pela diretora de enfermagem(7).

As participantes do estudo foram 7 enfermeiras, detentoras de cargo de chefia: a diretora de enfermagem, as enfermeiras-chefe das 5 divisões/setores de enfermagem do hospital que apresentaram maiores indicadores de risco de ATTs e a enfermeira da comissão de controle de infecção hospitalar. O critério de inclusão foi o fato de que essas profissionais, em razão da sua atividade específica de coordenação de enfermagem, nos setores e campos de atuação, possuíam efetivo conhecimento dos processos de trabalho neles desenvolvidos.

A coleta de dados deu-se por meio de entrevistas individuais, semiestruturadas, que foram gravadas e transcritas. Para a análise dos resultados, os sujeitos foram caracterizados segundo a sequência numérica de 1 a 7.

A análise dos dados foi fundamentada na técnica de análise de conteúdo, definida como um conjunto de procedimentos de análise da comunicação, que objetiva obter indicadores que possibilitem o conhecimento de aspectos relacionados às condições de produção e da recepção das mensagens apresentadas(8-9). Foi realizada leitura exaustiva do conteúdo das entrevistas transcritas, objetivando a sua compreensão. Para operacionalizar tanto a ordenação e separação das unidades de sentido das categorias analíticas quanto para realizar o posterior reagrupamento dos dados em blocos temáticos, foi utilizado o Programa Informatizado The Ethnograph v. 5.0, específico para pesquisa qualitativa.

Na presente investigação, elegeu-se como categoria analítica "processo de trabalho da enfermagem hospitalar" e, como categoria empírica "cargas de trabalho psíquicas".

O estudo foi autorizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade à qual o HE está vinculado, conforme preconiza a Resolução nº.196/96, do Conselho Nacional de Saúde; as participantes foram orientadas sobre a investigação, realizada após o aceite, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido(10).

 

RESULTADOS

O processo de trabalho de enfermagem assistencial no HE está organizado segundo o modelo clínico, individual, centrado no cuidado, com os tempos e ritmos da produção de serviços predeterminados. O grupo está hierarquicamente definido, com as relações de poder estabelecidas, sendo os enfermeiros os responsáveis pela organização do processo de trabalho, desenvolvido junto ao pessoal técnico e auxiliar, a eles subordinados.

Os agravos decorrentes das cargas de trabalho psíquicas são expressos no corpo do trabalhador por meio da ocorrência de DRTs. Especificamente na área da enfermagem, o desgaste emocional, em consequência das tarefas, é notório, desencadeando sobrecarga emocional, com sentimentos de angústia, estresse emocional, síndromes depressivas, entre outros agravos, muitas vezes associados a distúrbios físicos. A origem da atividade e o sentimento cristão que a permeia, impregnado do chamado à solidariedade e ao humanismo, talvez tenham interferência nesse processo e expliquem a resignação no ato de servir ao próximo, tão marcantes na enfermagem. Sobre esse assunto uma informante-chave declarou:

Eu não sei se é o fato da enfermagem estar impregnada de uma filosofia cristã, em que o sofrimento faz parte da vida e o trabalho, sem sofrimento, não teria nenhum benefício... (ENF. 4).

Pelos depoimentos, observou-se que a questão maior diz respeito ao convívio com a dor e a morte no cotidiano da enfermagem hospitalar. Sobre o assunto, uma das enfermeiras falou da relevância do problema nos setores que gerencia e, também, que o contato com o sofrimento, angústia e dificuldades dos pacientes traz consequências para a saúde mental desse pessoal.

Outra, abordando o assunto do sofrimento do trabalho na unidade de terapia intensiva (UTI) adulto, relatou:

A parte da presença da morte na UTI é o que mais angustia o pessoal de enfermagem. Morre-se mais na UTI do que nos outros setores. O sofrimento é maior quando temos pacientes mais jovens, um que tem tumor cerebral, outro que se acidentou com moto, criança atropelada, por exemplo; toda a equipe estabelece uma defesa... mas, sofre... A convivência com a família que está sofrendo é muito estressante (ENF. 2).

Esclareceu que uma das situações que tem trazido ansiedade para a equipe relaciona-se à abordagem da família do paciente potencial doador de órgãos, no intuito de obter autorização para a captação dos mesmos e assim atender o Programa de Transplantes. Nessas ocasiões, a família toma consciência de que a morte é inevitável e sofre muito com isso; consequentemente, toda a equipe também sofre. Sobre o assunto outra entrevistada destacou:

É estressante. No último transplante que tivemos, nós tínhamos numa sala a retirada do coração que havia sido doado e em outra sala estava nascendo uma criança. Quando o anestesista comentou que coincidiu o horário, todos ficaram abalados, meio sem jeito... São sentimentos opostos, você tem a morte, você tem a vida e este antagonismo é muito estressante (ENF. 6).

Observou-se que doenças graves em crianças, como a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), por exemplo, mobilizam o estado emocional do pessoal que atua na pediatria, UTI neonatal e UTI pediátrica. Uma entrevistada ponderou sobre o assunto:

As cargas psíquicas na minha divisão são muitas. Eu não sei se é porque se trabalha mais com crianças e com a mãe, no momento sublime da maternidade, envolvendo uma carga emocional maior... Tivemos, por exemplo, uma criança de 6 anos vítima de acidente grave, que teve os dois bracinhos amputados pelo trator dirigido pelo pai. Foi um grande sofrimento lidar com aquela menininha. A família sofria, todos se compadeceram com a dor do pai que se culpava pelo ocorrido. O que me marcou muito foi que eu estava passando e ela disse: "tia, tia, vem aqui, coça meu nariz"... Isso me fez sofrer muito (ENF. 1).

Sensibilizada, a enfermeira enfatizou que, por mais que se tente desenvolver estratégias defensivas, o nível de sofrimento é muito grande durante o convívio com a criança e com a dor da família, na hora em que se é colocado frente à finitude da vida.

Também informou observado que várias funcionárias estão apresentando sinais de sobrecarga emocional, informando que estão sofrendo de síndrome do pânico, de depressão; que outras estão tendo atitudes agressivas repentinamente, sem causa definida, gerando conflitos.

Os conflitos existentes em torno da equipe foram destacados pelas entrevistadas como elemento estressante para o pessoal de enfermagem. Uma delas enfatizou que, quando se trabalha em hospital privado, os funcionários são escalados para aquele trabalho específico e é formada equipe que permanece atuando muito tempo junto, consequentemente, o desgaste acontece, mas, numa rotina que é adaptada a eles. No caso de HEs, no entanto, as variáveis são outras, há grande rotatividade de pessoas, de alunos, dando margem a dificuldades que chegam a afetar o equilíbrio emocional do pessoal de enfermagem, uma vez que as mesmas orientações precisam ser repetidas inúmeras vezes e a vigilância precisa ser redobrada, visando assegurar a realização dos procedimentos de forma adequada e segura.

A presença de múltiplos comandos a que estão sujeitos os trabalhadores de nível médio provoca-lhes cargas psíquicas, como foi apontado nas entrevistas. Esses trabalhadores são obrigados a acatar as decisões da sua chefia direta, do aluno que estagia nas disciplinas de administração em enfermagem, da equipe médica, do pessoal da fisioterapia que chega e pede para tirar o paciente da cama, entre outros. Essa situação desgasta o pessoal e os coloca em situação difícil no exercício de atender todos e, de maneira particular, o paciente.

A entrevistada também esclareceu que os problemas financeiros, enfrentados por grande parte dos trabalhadores de enfermagem, estão entre as mais frequentes causas de angústia e sofrimento para esses. Disse que se sente penalizada quando observa que os trabalhadores estão há anos sem reajuste salarial, que precisam conviver com a alta do custo de vida e, muitas vezes, com a situação de dividas.

De fato, as dificuldades pessoais dessa classe trabalhadora tão sofrida, aliadas à baixa remuneração e ao pouco prestígio social, somam-se aos muitos problemas do processo de trabalho em si. Uma das entrevistadas lembrou:

Acho que o problema já vem de casa, um deles está com um filho preso, outras com os filhos envolvidos com as drogas, outras têm o marido alcoolizado, com muitas dificuldades financeiras, sem o arroz e feijão para colocar na mesa. Isso tudo compromete o andamento do trabalho, o pessoal já vem abalado de casa. Ao mesmo tempo, tem a sobrecarga do setor, tem o pessoal afastado por doença, tem a sobrecarga dos problemas pessoais dos colegas que terminam por atingir a todos, porque ele chega, conversa com o outro, chora porque está tudo ruim na casa dele, porque está sofrendo... Então, além dos problemas que ele já tem, o colega fica mais deprimido pelo problema do amigo. É uma tristeza só (ENF. 6).

Outra declarou que considera que o trabalhador carrega a carga emocional da história de vida, da questão salarial, da maneira como cada um lida com o sofrimento e complementou dizendo que o cotidiano da enfermagem "machuca um pouco todo dia..." (ENF. 4).

O atendimento aos presidiários da penitenciária e dos distritos policiais é realizado no HE sempre, pois, a instituição é referência para essa população, conforme ponderação de uma participante. Segundo a mesma, esse fato também traz dificuldades emocionais para o pessoal que atende, principalmente no pronto-socorro (PS). Com frequência, os policiais chegam até esse setor acompanhando o detento adoentado, vêm fortemente armados, e essa movimentação traz apreensão à equipe.

No hospital há muitos funcionários afastados do trabalho em razão de problemas de saúde, dado o reconhecimento institucional da sua limitação física e/ou emocional; entretanto, a parte do trabalho que caberia a esses recai sobre os demais que permanecem em atividade, sobrecarregando-os física e emocionalmente. As entrevistadas relataram que esse é um problema que tem repercutido nos grupos de trabalho, com desgaste emocional.

Os casos de afastamento e readequação da atividade funcional estão aumentando. Nós temos um grupo de trabalho mais envelhecido, o serviço proporciona uma segurança maior para o profissional e quem arca com as consequências disso é a gerência e o pessoal que atua lá na ponta tem que fazer o serviço. É como uma mãe, a gente gosta muito, continua gostando e ela fica doente, dá mais trabalho, fica mais pesado para quem cuida. Considero que essa é a grande dificuldade dos nossos dias e eu acho que esse é o desgaste emocional que a enfermagem passa (ENF. 4).

Algumas falas das entrevistadas enfatizaram que, embora fosse do conhecimento da entrevistada a realidade vivenciada pela equipe, em muitas áreas a gerência não tem governabilidade sobre os processos administrativos existentes, o que culmina com o sentimento de impotência.

Outro ponto a ser destacado é que a preocupação com os danos à saúde do pessoal da equipe, em decorrência das cargas de trabalho a que estão expostos os trabalhadores, inclusive elas mesmas, cada qual com suas características particulares, parece se perder entre outras inúmeras preocupações e problemas específicos do próprio hospital, de natureza estrutural ou política.

 

DISCUSSÃO

A enfermagem hospitalar está centrada no processo de trabalho do cuidado, que é o seu identificador e está relacionado à assistência à saúde dos pacientes. Essa prática propicia a exposição às cargas e desgastes nos trabalhadores, determinados pela atividade laboral(11-14), que repercutem no seu processo saúde/doença e que se agravam com o envelhecimento, motivando inadequações físicas e psíquicas.

A equipe de enfermagem do HE revive, na sua organização, a realidade do parcelamento do trabalho intelectual e do manual, atribuindo ao enfermeiro o serviço da supervisão das atividades, da administração da assistência realizada pelo pessoal de nível médio, do trabalho da assistência direta e individualizada por eles realizado.

O reconhecimento por estarem nesse especial posicionamento em razão da chefia exercida pareceu fazer com que a autocobrança do desempenho se apresentasse em todo o desenrolar dos depoimentos, o que era esperado, pois a função que as participantes exerciam, naquele momento, tinha como pré-requisito o comprometimento profissional com o HE e com o grupo de trabalho. A palavra carregada de ansiedade permeou muitas das colocações, o que levou a se considerar, inclusive, as cargas psíquicas que recaem sobre essas trabalhadoras.

O envelhecimento do pessoal de enfermagem do HE foi temática constante em todas as entrevistas realizadas e faz parte da preocupação das chefias, considerando-se a média de 45 anos de idade do pessoal, situação agravada pelo fato de que muitos pareciam estar sofrendo desgaste não só em razão da atividade desenvolvida, mas também pelo acúmulo de tarefas domésticas, pelo estudo, pela dupla ou tripla jornada, ou pelo segundo emprego.

Na análise das cargas de trabalho por parte das entrevistadas, a relevância das cargas psíquicas para o pessoal de enfermagem do HE foi apresentada pelas entrevistadas como das mais importantes, pois se somam às demais cargas de trabalho e, aparentemente, as potencializa sobremaneira, situação também apresentada por outros estudos na área(12-15).

Ficou evidenciado que o sofrimento gerado na assistência direta é expressivo, dado o pouco reconhecimento da profissão e a baixa autonomia. Quando da entrevista, em que foi perguntado às enfermeiras sobre as referidas cargas psíquicas, percebeu-se, em alguns momentos, certo pesar, sofrimento, na busca para verificar até que ponto havia responsabilidade pessoal nos encaminhamentos dos problemas e até que ponto toda a estrutura organizacional da instituição, a conjuntura política, histórica e social contribuem para a situação apresentada.

As enfermeiras alertaram sobre a dupla jornada de trabalho, na maioria dos depoimentos, como fator de cargas psíquicas que pode contribuir para a ocorrência de acidentes e DRTs, assim como a vida familiar com problemas.

O quantitativo insuficiente de pessoal foi amplamente abordado, sendo ponto fundamental para a melhora das condições de trabalho no hospital.

Outra situação importante apresentada nos depoimentos estava relacionada à forma como o trabalho é desenvolvido no pronto-socorro (PS), quando comparado aos demais setores, uma vez que esses têm o seu quantitativo de leitos claramente determinado e, consequentemente, têm as internações interrompidas quando há a ocupação total dos leitos. O mesmo não ocorre no PS, pois, independentemente de haver ou não vaga, há a obrigatoriedade de acomodar o paciente, atendê-lo da melhor maneira possível, mesmo que ele tenha que ser atendido em uma cadeira, por exemplo. E todas essas ações sobrecarregam muito o grupo, sendo que o quantitativo do pessoal é sempre o mesmo, independentemente do aumento da demanda dos serviços(16).

A ocorrência de acidentes envolvendo exposição a materiais biológicos tem sido fator de importante sofrimento no trabalho para a equipe de enfermagem. Além das dificuldades emocionais pelas quais o trabalhador passa por medo de adoecer, das repercussões para a família, no trabalho e outros, ele passa também pelo constrangimento de ter sofrido o acidente, ao ser julgado como descuidado, incompetente, com baixa produtividade.

Acredita-se que esse seria mais um fator a impelir o trabalhador a ocultar o acidente, a negá-lo sob todos os aspectos. É preciso considerar que uma profissão com tantos senões, do ponto de vista da autoestima, da pouca valorização profissional, tem inúmeros fatores que tornam o acidente ainda mais opressivo para eles.

O lema antigo do "ao trabalhador a culpa" parece perseguir a trajetória do pessoal de enfermagem; as ocorrências muitas vezes são atribuídas à falta de atenção e não à sobrecarga, aos problemas dos equipamentos desgastados, à intensidade e ritmo das tarefas, ao pouco tempo para dormir e para o lazer, situações que impõem cargas psíquicas.

Muitas vezes se falou da ponta do iceberg e, pelos depoimentos consistentes, denunciando as inúmeras dificuldades pelas quais passam os trabalhadores de enfermagem, medidas urgentes são absolutamente necessárias, objetivando conhecer em profundidade essa realidade e propiciando condições de trabalho adequadas a essa população.

Os achados da presente investigação possibilitaram aproximação ao conhecimento das cargas psíquicas dos trabalhadores de enfermagem do HE, cuja problemática demanda ações administrativas efetivas para melhorar as condições de trabalho no hospital.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constituem-se em cargas de trabalho psíquicas de enfermagem a realidade vivenciada por seus trabalhadores nos hospitais, que se manifestam por meio dos contingentes insuficientes de pessoal, do trabalho pouco reconhecido e mal remunerado, da complexidade técnica, tecnológica e das inter-relações pessoais inerentes a essa atividade, indo desde o paciente/cliente, à sua família, à chefia, aos demais componentes da equipe de saúde, aos alunos em fase de formação profissional de diferentes áreas, entre outros fatores.

As cargas de trabalho psíquicas sofridas terminam por possibilitar a emergência de doenças emocionais que repercutem expressivamente na vida do trabalhador. Esse cenário fica ainda mais comprometido em consequência do envelhecimento também de contingente dessa parcela da população que, mesmo tendo a sua estrutura física e psíquica fragilizadas, ou com limitações, passa a ter a data da aposentadoria postergada em razão do panorama da Previdência Social no Brasil.

Nessa perspectiva, é grande o desafio dos profissionais de saúde para conhecer a realidade e, sobretudo, atuar sobre ela na busca para sanar ou diminuir, tanto quanto possível, os impactos da insalubridade do trabalho na mente do trabalhador.

Quando se trata de atuar exatamente sobre a população dos próprios trabalhadores da saúde, esse desafio se torna ainda maior, pela proximidade que os profissionais têm com elementos estressantes, inerentes às ações do cuidado humano, e pela visão tradicional da sociedade sobre esse grupo, que deles espera o serviço competente, dedicado, e, ao mesmo tempo, abnegado, sem contrapartida financeira compatível, sem o reconhecimento devido, uma vez que a característica da atividade está permeada por sentimentos de humanização, em patamar superior ao da materialidade. Diante do exposto, surge o questionamento: afinal, quem cuida da saúde desses trabalhadores de enfermagem, "quem cuida de quem cuida", quem está se ocupando em atender as problemáticas decorrentes da atividade laboral?

Trata-se de ações que devem envolver os trabalhadores, no entendimento e enfrentamento da realidade da própria vida, dos empregadores, dos serviços que se ocupam da saúde do trabalhador nas instituições, de toda a sociedade, que todos os dias se utiliza dos serviços desse grupo profissional, cujos componentes, embora de forma pouco articulada, constitui grande rede de atenção à saúde.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 09/2009
Aprovado em: 11/2009

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