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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.6 no.spe Ribeirão Preto nov. 2010

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Avaliação qualitativa no contexto da reforma psiquiátrica*

 

Qualitative Evaluation in the Psychiatric Reform Context

 

Evaluación cualitativa en el contexto de la reforma psiquiátrica

 

 

Luciane Prado KantorskiI; Christine WetzelII; Agnes OlschowskyII; Vanda Maria da Rosa JardimI;Valéria Cristina Christello CoimbraII; Jacó Fernando SchneiderI; Fabieli Gopinger ChiavagattiIII; Jandro Moraes CortesIII

Universidade Federal de Pelotas, Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia, Departamento de Enfermagem, Pelotas, RS, Brasil:

I-Enfermeiros, Doutores em Enfermagem, Professores Adjunto. E-mail: Luciane - kantorski@uol.com.br , Vanda - phein@uol.com.br , Jacó - jaco@unioeste.br
II-Enfermeiras, Doutoras em Enfermagem Psiquiátrica, Professores Adjunto. E-mail: Christine - cwetzel@ibest.com.br , Agnes - agnes@enf.ufrgs.br , Valéria - valeriacoimbra@hotmail.com
III-Enfermeiros, Mestrandos em Enfermagem E-mail: Fabielie - fabichiavagatti@yahoo.com.br , Jandro - jandromcortes@hotmail.com

 

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar as bases teóricas do campo da avaliação de quarta geração e da metodologia de análise de redes do cotidiano que tem orientado pesquisas realizadas por um grupo de pesquisa de enfermagem em saúde mental e saúde coletiva. Apresentamos no espaço deste artigo construções teóricas que nos permitem refletir sobre as concepções, os caminhos e desenhos de estudos de avaliação qualitativa em saúde mental, no contexto da reforma psiquiátrica.

Descritores: Avaliação de Serviços; Avaliação Qualitativa; Saúde Mental.


ABSTRACT

The purpose of this article is to present the theoretical foundations of the fourth-generation evaluation and the network analysis method that has guided a nursing research group in their studies on mental and collective health. In this article, we present the theoretical constructions that allow us to reflect upon the conceptions, paths and designs of qualitative evaluation studies on mental health, in the psychiatric reform context.

Descriptors: Evaluation of Services; Qualitative Evaluation; Mental Health.


RESUMEN

El presente artículo tiene como objetivo presentar las bases teóricas del campo de la evaluación de cuarta generación y de la metodología de análisis de redes del cotidiano que ha orientado investigaciones realizadas por un grupo de investigación en enfermería de salud mental y salud colectiva. Presentamos en el espacio de este artículo construcciones teóricas que nos permiten reflexionar sobre las concepciones, los caminos y diseños de estudios de evaluación cualitativa en salud mental, en el marco de la reforma psiquiátrica.

Descriptores: Evaluación de Servicios; Evaluación Cualitativa; Salud Mental.


 

 

Introdução

A avaliação de experiências inovadoras de composição de redes de atenção psicossocial delimitadas no contexto das políticas de reforma psiquiátrica e das práticas de reabilitação psicossociais pressupõe uma contextualização, tendo em vista que elas se objetivam num determinado contexto histórico.

O movimento de reforma psiquiátrica no Brasil tem tido forte influência do movimento da psiquiatria democrática italiana e a incorporação progressiva dos seus princípios é materializada no contexto brasileiro nas portarias do Ministério da Saúde 189/1991 e 224/1992 e na criação dos novos serviços. Esta regulamentação permitiu que passassem a ser remunerados novos procedimentos como consulta individual e em grupo por profissionais como enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais; atendimento em oficinas terapêuticas, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), hospital-dia, urgência e internação em hospital geral, definindo padrões mínimos para o funcionamento dos serviços de saúde mental com vistas à construção de uma rede diversificada de assistência. Em 19 de fevereiro de 2002 a Portaria 336/2002 classifica em ordem crescente por abrangência populacional e por complexidade os CAPS, definindo a equipe mínima de profissionais e estabelecendo sua clientela alvo(1).

Uma questão que merece ser considerada é de que os CAPS surgem como uma possibilidade de assistência em uma proposta mais ampla de uma rede de atenção psicossocial, que inclui a proposta de criação de um sistema de saúde que contemple a abordagem integral dos indivíduos e de suas famílias.

A integralidade enquanto um dos princípios do Sistema Único de Saúde assume uma definição legal relacionada à integração dos atos preventivos, curativos, individuais e coletivos, nos diferentes níveis de complexidade situados em cada caso.

Entendemos que a integralidade consiste num conceito polissêmico, guardando uma dimensão plural, ética e democrática, que se revela em diferentes saberes e práticas operados no cotidiano de trabalho e vivência dos sujeitos (educadores, trabalhadores de saúde, usuários e gestores) e se expressa de forma particular e própria em diferentes contextos(2-4).

O conceito de integralidade remete a integração de serviços através de redes assistenciais, reconhecendo a interdependência entre os atores e as organizações, tendo em vista que nenhuma delas dispõe da totalidade de recursos e competências para solucionar os problemas de saúde da população. Os discursos e as políticas sobre a integração fundamentam-se, assim, em três linguagens: a estrutural (modificação das fronteiras das organizações), a clínica (modificações nas práticas profissionais) e a da cooperação (novos formatos de negociação e de acordos entre atores e organizações)”(5).

No caso da saúde mental, a mudança do enfoque já discutida anteriormente exige a implantação de uma diversidade de equipamentos que respondam aos diferentes momentos e necessidades da pessoa.

Esta configuração política passa a desenhar uma rede de serviços que tem como proposta se estruturar através do CAPS, sendo este um serviço estratégico a partir do qual a rede se desdobra.

Com relação a ampliação da rede de atenção em saúde mental constatamos que foram criados, em todo país, centenas de serviços visando adequar-se às orientações da política de saúde mental brasileira, somente na região sul do Brasil foram cadastrados 201 CAPS (do total de 1011 CAPS cadastrados no território brasileiro), desde 2002 até 2006, sendo que destes 97 são no Rio Grande do Sul, o que se configura, no terceiro estado, em cobertura de CAPS por 100.000 habitantes de 0,70. Na expansão da rede de serviços até 2006 foram criados 475 serviços residenciais terapêuticos, 862 ambulatórios de saúde mental. Os leitos em hospitais psiquiátricos contratados pelo SUS, que em 1996 eram 72.514, diminuíram de 51.393 em 2002 para 39.567 em 2006, representando uma redução de 11.826 leitos contratados(6).

No campo da avaliação de serviços, entendemos que para se avaliar redes reabilitadoras é necessário a composição de um desenho teórico metodológico que se esboce tendo como um dos interlocutores estratégicos os CAPS. Ressaltamos que a rede de atenção psicossocial inclui, mas não se esgota numa rede de serviços e nos remete para uma discussão mais ampla  acerca de uma rede de cuidados e de sociabilidade.

 

Compondo uma trajetória na avaliação em saúde mental

De 2005 a 2008, como Grupo de Pesquisa de Enfermagem em Saúde Mental e Saúde Coletiva da faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas, nos dedicamos a uma pesquisa financiada pelo Edital MCT-CNPq/CT-Saúde/ MS-SCTIE-DECIT 07/2005, que avaliou Centros de Atenção Psicossocial da Região Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná) do Brasil. O projeto CAPSUL(6), como ficou conhecido, foi coordenado pela Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas e desenvolvido em parceria com a Escola de Enfermagem da UFRGS e o Curso de Enfermagem da UNIOESTE - Cascavel.

Investigamos aspectos de estrutura, processo de trabalho e resultados dos CAPS, ouvindo usuários, familiares, trabalhadores e coordenadores dos serviços nos três estados, através de uma pesquisa que se desdobrou em um estudo qualitativo e um estudo quantitativo (7).

No Estudo de Avaliação Quantitativa de CAPS, apoiado no referencial de avaliação de Donabedian(8-10) através da abordagem epidemiológica avaliamos a estrutura (por meio de questionários auto-aplicados a 30 coordenadores dos CAPS), o processo (através de questionários auto-aplicados a 435 trabalhadores destes CAPS) e o resultado da atenção em saúde mental (aplicado um questionário a 1162 usuários, seguido da auditoria de registro do respectivo prontuário, e a 936 familiares dos 30 CAPS). A pesquisa foi desenvolvida em 30 CAPS da região sul do Brasil (3 CAPS no Paraná, 9 em Santa Catarina e 18 no Rio Grande do Sul).

O Estudo de Avaliação Qualitativa dos CAPS foi desenvolvido, na etapa seguinte da pesquisa CAPSUL, a partir da avaliação construtivista, responsiva e com abordagem hermenêutico-dialética, a Avaliação de Quarta Geração(11-13) em que foram feito cinco estudos de caso através de entrevistas com equipe, usuários e familiares dos CAPS (definidos como grupos de interesse para compor o círculo hermenêutico-dialético) e observação de campo (entre 282 e 650 horas configurando-se numa etnografia prévia).

Os principais achados apontaram caminhos que nos auxiliarão nas delimitações de pesquisas futuras e consideramos necessário retomá-las.

No estudo qualitativo usuários e familiares avaliam o serviço como bom, no sentido da qualidade do atendimento, da variedade de oferta de atividades, do vínculo, da responsabilização, da possibilidade do espaço oferecer condições para o cuidado e a expressão das subjetividades. De modo geral a ambiência é favorecida no CAPS, pois o princípio de que a liberdade é terapêutica viabiliza uma gama de iniciativa nestes serviços, a fim de tornar o ambiente confortável e acolhedor.

Com relação ao processo de trabalho, especificamente no que consiste as atividades de suporte terapêutico, as oficinas são avaliadas por usuários, familiares e equipe como importantes instrumentos de trabalho no processo de socialização, fortalecimento de vínculos, contribuição para aquisição de hábitos, inserção social, reforçando-se as potencialidades de desencadear processos de geração de renda. Pelo fato da oficina terapêutica se tratar de um instrumento tão importante na atenção psicossocial, é evidenciada na avaliação a necessidade de mais capacitação dos oficineiros qualificando o seu trabalho.

Sobre o resultado da atenção psicossocial, os usuários e familiares expõem que o tratamento é bom e o resultado é satisfatório podendo ser avaliado qualitativamente, a partir do fortalecimento da autonomia do usuário, da diminuição das crises (em freqüência e extensão), da independência progressiva dos usuários, da adesão ao serviço, da oportunidade de organização de suas vidas, da possibilidade de convivência, socialização, enriquecimento do cotidiano que vai além do transtorno.

Quanto a relação da sociedade com o fenômeno da loucura os familiares e usuários são bastante enfáticos sobre o preconceito que sofrem nas ruas, no ônibus, no trabalho, ressaltando que os CAPS são serviços que se preocupam mais com a saúde e com as potencialidades dos sujeitos em sofrimento psíquico. Recomendam parcerias com a comunidade, trabalhos de divulgação do que é e o que faz o CAPS como estratégias de enfrentamento do preconceito. A equipe reitera a importância de expandir as atividades fora do serviço, especialmente aquelas que promovem inclusão social (como passeios, atividades de geração de renda, rádio, entre outros) e que buscam a valorização das características culturais dos sujeitos e grupos.

Tornam-se extremamente relevante os aspectos qualitativos avaliados nos CAPS, como as portas que se abrem nas modalidades de atenção comunitárias, o modo como elas tensionam os estigmas, os preconceitos, os rótulos, e os limites dos serviços que se propõem a romper com a lógica da institucionalização e da exclusão.

 

Propondo novos caminhos e novos desenhos de avaliação em saúde mental

A experiência em realizar o estudo do CAPSUL(7) também nos apontou caminhos que sugerem a necessidade de se avaliar pontos nevrálgicos da reforma psiquiátrica e fazê-lo a partir de cenários específicos, ou seja, a partir de experiências inovadoras que pretendem romper com a lógica manicomial. Neste sentido encontra-se em curso a execução de um novo projeto de pesquisa no campo da avaliação, desenvolvida por nosso grupo de pesquisa, este financiado pelo Edital MCT-CNPq/CT-Saúde/ MS-SCTIE-DECIT 33/2008, conhecido como REDESUL em que temos como objetivo avaliar qualitativamente experiências inovadoras de composição de redes de atenção psicossocial que estão localizadas no estado do Rio Grande do Sul através da Avaliação de Quarta Geração, construtivista e responsiva de Egon Guba e Yvona Lincoln(12) adaptada por Wetzel(14) e da Metodologia de Análise de Redes do Cotidiano de Paulo Henrique Martins(16) a partir de usuários dos Serviços Residenciais Terapêuticos e dos Centros de Atenção Psicossocial e os grupos de interesse (cuidadores/trabalhadores/gestores) que vão se configurando através do fluxo estabelecido na rede de atenção psicossocial. Propõe-se a realização de dois estudos de caso que deverão abranger a rede de atenção psicossocial de dois municípios do estado do Rio Grande do Sul, identificados como experiências com maior potencial de inovação. As características inovadoras das experiências serão avaliadas comparando-se a adequação da rede de atenção psicossocial aos critérios preconizados em documentos oficiais do Ministério da Saúde.

Neste artigo nos deteremos nas concepções que fundamentam a compreensão de avaliação que orientam os estudos que nosso grupo de pesquisa tem desenvolvido. Consideramos que uma avaliação que pretenda atingir pontos nevrálgicos no interior desta rede de atenção psicossocial precisa focalizar usuários dos CAPS, pois estes serviços foram se constituindo, a partir das definições ministeriais e das práticas estruturadas, como estratégicos na implantação da reforma psiquiátrica.

Nesta mesma lógica, uma avaliação com este caráter, necessita ainda ouvir aqueles sujeitos mais vulneráveis às vissitudes decorrentes de longos anos de institucionalização psiquiátrica. Aqueles para os quais o conceito de alta precisa ser redimensionado. Os que desfrutam do sabor amargo de todo tipo de vulnerabilidade social, afetiva, financeira. Enfim olhar este indivíduo, e avaliar em que outros pontos da rede de atenção psicossocial eles se encontram e como vão desenhando seus fluxos no interior desta rede.

Na composição deste novo desenho concebemos a rede de atenção psicossocial a partir do olhar para as redes formais e institucionalizadas no município, buscando identificar como operam e se constituem em uma dimensão dinâmica no cotidiano da vida dos seus usuários. Definimos as redes sociais como sistemas de trocas formados por fluxos incessantes de dons(15), de bens materiais e simbólicos que organizam os sistemas sociais e as próprias individualidades(16).

A idéia de usuário que aqui propomos busca superar a visão funcionalista e liberal que traz essa noção como uma unidade atômica e separada do todo social. Daí a importância de se avançar na compreensão da rede de usuário de modo a integrarmos um entendimento mais complexo das práticas intersubjetivas, permitindo-se estabelecer uma negociação de caráter participativo entre o Estado e a sociedade civil, no contexto da luta democrática e dos espaços associativos híbridos na saúde(16).

A compreensão teórica e política do usuário como sendo resultado histórico de redes em movimentação que ganham particularidades significantes em contextos sociais e culturais específicos(17) nos permite analisar essa configuração no campo da saúde mental. As transformações oriundas do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira nos remetem a necessidade de conhecer e avaliar os diversos serviços e estratégias de cuidado que, a partir de sua implantação consolidam, em alguns municípios, a rede de atenção psicossocial. A partir dessa rede é possível mapear o trânsito dos usuários, as relações que estabelecem entre si e com esses dispositivos e o fluxo interacional entre os diversos atores neste cotidiano.

Propomos para composição deste novo desenho teórico-metodológico nos utilizarmos da Avaliação de Quarta Geração(12) e da Metodologia de Análise das Redes do Cotidiano(16) e deste modo passamos a centrar nossa argumentação nestes postulados teóricos.

 

A avaliação de quarta geração

A Avaliação de Quarta Geração oferece subsídios para uma avaliação das práticas inovadoras no campo da saúde mental que contemple o cotidiano dos atores inseridos nesse contexto, sendo sensível às questões deles oriundas e incluindo-os com centralidade no processo avaliativo.

Nesta metodologia as reivindicações, preocupações e questões dos stakeholders servem como foco organizacional (a base para determinar que informação é necessária), e é implementada através dos pressupostos metodológicos do paradigma construtivista(12).

Como alternativa às avaliações tradicionais, uma avaliação responsiva, baseada em um referencial construtivista. O termo responsiva é usado para designar uma diferente forma de focalizar uma avaliação em relação aos seus parâmetros e limites: nos modelos tradicionais os parâmetros e limites são definidos a priori. A avaliação responsiva determina parâmetros e limites através de um processo interativo e de negociação que envolve grupos de interesse e que consome uma considerável porção de tempo e de recursos disponíveis. É por esta razão que o projeto de uma avaliação responsiva é chamado de emergente. O termo construtivista é usado para designar a metodologia empregada para realizar a avaliação e tem as suas raízes em um paradigma de pesquisa que é alternativo ao paradigma científico, e também é conhecido por outros nomes (interpretativo, hermenêutico). Um modo responsivo de focar e um modo construtivista de fazer(12).

 

O enfoque responsivo

O processo de qualquer avaliação deve começar com um método para determinar quais questões serão colocadas e quais informações serão buscadas. Os elementos a serem enfocados: variáveis, objetivos, decisões e outros, podem ser denominados de organizadores de avanço (advance organizers). A avaliação responsiva também tem seus organizadores de avanço: ‘as reivindicações, preocupações e questões que serão identificadas por grupos de interesse (stakeholders), isto é, pessoas que serão potencialmente vítimas ou beneficiários da avaliação(12).

A avaliação não é responsiva apenas porque busca a visão de diferentes grupos de interesse, mas também a medida em que responde às questões na subseqüente coleta de informações. É muito comum que diferentes atores tenham diferentes construções a respeito de questões particulares. A maior tarefa do avaliador consiste em conduzir a avaliação de forma que cada grupo confronte a suas construções com as demais, um processo que denominamos hermenêutico-dialético. É hermenêutico porque tem caráter interpretativo, e dialético porque implica em comparação e contraste de diferentes pontos de vista, objetivando um alto nível de síntese. Neste processo, na medida em que cada participante entra em contato com as construções dos demais, suas próprias construções se alteram.

Essa construção individual e coletiva ocorre mediante a etapa de negociação(12), quando todos os participantes, conjuntamente, compartilham com o avaliador um esforço conjunto para delinear, a partir das construções individuais, a construção compartilhada de determinado grupo de interesse. As conclusões finais e recomendações que emergem desta negociação são alcançadas de forma solidária. Tal interação e reiteração são típicas de uma avaliação responsiva; e as avaliações nunca estão completas, mas são suspensas por razões logísticas, tais como o tempo e/ou recursos disponíveis.

 

Metodologia

Metodologia construtivista

Baseia-se em um sistema de crenças que é oposta à ciência positivista que caracterizou a avaliação realizada no último centenário e esse sistema de crenças é com freqüência chamado de paradigma. Não é possível aprovar ou desaprovar um paradigma de forma absoluta, mas os autores acreditam que o paradigma positivista apresenta limitações que podem ser superadas pelo construtivista. Ontologicamente ele nega a existência de uma realidade objetiva, afirmando que as realidades são construções sociais da mente, e que existem tantas construções quanto existem indivíduos (embora muitas construções sejam compartilhadas), sendo a própria ciência uma construção. As realidades, sendo construções, não podem ter (a não ser por imputações mentais) leis naturais imutáveis, tais como leis de causa e efeito.

Epistemologicamente, o paradigma construtivista nega a possibilidade do dualismo sujeito-objeto, sugerindo que os achados de um estudo existem precisamente porque existe uma interação entre observador e observado que literalmente cria o que emerge da pesquisa.

Metodologicamente, e em conseqüência dos princípios ontológicos e epistemológicos, o paradigma construtivista rejeita a abordagem científica que caracteriza a ciência hegemônica e a substitui por um processo hermenêutico-dialético, contando com a interação observador/observado para criar uma realidade construída o mais informada e sofisticada possível em um ponto particular no tempo(12).

Existe ressonância entre um paradigma que propõe a metodologia hermenêutica-dialética e um modelo de avaliação que depende exatamente deste tipo de processo: o foco responsivo pede uma metodologia construtivista, e a metodologia construtivista encaixa-se exatamente nas necessidades do processo de pesquisa de uma avaliação responsiva(12).

 O envolvimento dos stakeholders ou grupos de interesse na avaliação estão fundamentados nos seguintes argumentos: são grupos de risco porque os resultados da avaliação podem ir contra os seus interesses; estão sujeitos à exploração, perda de poder e perda dos direitos civis; são os usuários da informação da avaliação; estão em posição de ampliar a extensão da pesquisa avaliativa para grande benefício do processo hermenêutico dialético; são mutuamente educados pelo processo de quarta geração.

 Propomos que a avaliação qualitativa de experiências inovadoras de composição de redes de atenção psicossocial seja contextualizada a partir do cenário da Reforma Psiquiátrica. A mudança de paradigma preconizada na atenção em saúde mental exige a invenção de formas de pensar e fazer que não estão dadas, que sofrem grande influência do contexto, não sendo passíveis de generalização, pressupondo um enfoque interdisciplinar e a inserção de diferentes atores que respondam a complexidade do ‘novo’ objeto construído e das práticas a ele direcionadas.

Um processo avaliativo, nesse sentido, não pode estabelecer indicadores a priori, que não sejam oriundos do contexto das redes de atenção psicossociais, que não tenham importância e que não sejam problema para os grupos de interesse. Além disso, não tem sentido uma avaliação desta natureza que não possa também servir para o direcionamento da prática, o que exige o envolvimento dos que julgamos serem seus usuários potenciais. Portanto, o envolvimento dos grupos de interesse tem tanto o objetivo de buscar questões mais pertinentes dentro do seu contexto e que tenham significado para eles, como de potencializar a possibilidade de que o processo aumente e aprimore a capacidade de ação desses grupos.

Metodologia de Análise de Redes do Cotidiano (MARES)

A MARES é uma metodologia que foi desenvolvida e sistematizada pelo sociólogo Paulo Henrique Martins(16).

Trata-se de um método fenomenológico, interacionista e construcionista a ser aplicado na análise de redes sociais do cotidiano, em geral, e na análise de redes de usuários dos serviços públicos, em particular, com o objetivo de mapear as redes existentes, as redes em formação ou as redes potenciais, identificando as crenças e valores dos atores locais, os problemas que inibem a expansão da rede e os meios de superação dos problemas.

O método tem importância investigativa no sentido de cartografar às condições de vida dos atores locais, articulando informações subjetivas e objetivas, e relevância pedagógica ao contribuir para que os atores se apropriem das informações tornando-se mediadores e multiplicadores de processos sociais coletivos.

É um método fenomenológico na medida em que busca verificar a rede não a partir de procedimentos funcionalistas e formalistas, mas a partir da experiência dos atores no cotidiano; é um método interacionista ao valorizar na experiência do sujeito no mundo da vida as trocas de dons e as regras de reciprocidade que explicam os conflitos e a alianças; é um método construcionista, na medida em que busca, mediante certas técnicas e estímulos, levar os atores participantes a refletirem sobre a experiência em rede e de se apropriarem desta reflexão como recurso para ampliar sua presença como mediador social na organização dos espaços públicos cooperativos.

A seguir, apresentamos os conceitos centrais que norteiam essa Metodologia de Análise das Redes do Cotidiano (MARES)(16).

Desafios para se aplicar a noção de rede aos espaços públicos de usuários

Primeiro desafio - superar a compreensão funcionalista de rede que impede apreender os aspectos intersubjetivos das práticas sociais

Ao se apoiar em uma explicação funcionalista e estatística da prática social, tal noção põe ênfase na autonomia dos indivíduos para instrumentalizar suas estratégias, não abrangendo, logo, o caráter dialógico e as trocas simbólicas de indivíduos em interação sendo incapaz de visualizar os conflitos e motivos de aproximação e distanciamento que permitem o surgimento de alianças e de solidariedades entre indivíduos em interação;

Segundo desafio - entender o caráter relacional das redes

A noção de rede que interessa na pesquisa qualitativa que valorize o usuário é a de rede relacional que envolve o conjunto de trocas simbólicas e materiais, ou seja, troca de dons(15) (serviços, gestos, gentilezas, afetos etc.) pelos quais os destinos dos membros da rede passam a fluir em posições cruzadas fortalecendo o ethos comunitário, sem prejuízo do ethos individual;

Terceiro desafio - qualificar a rede de usuários como diferente da rede de cidadãos

O usuário é quem usa e se apropria dos recursos das políticas distributivistas do sistema formal e estatal. Neste sentido, o usuário pode ser passivo quando se apresenta como mera unidade estatística, “público-alvo” ou ativo quando se articula em redes de usuários criando novas formas participativas na esfera pública local, municipal, intermunicipal, estadual, regional e cosmopolita;

Quarto desafio - entender que a rede de usuários é diferente daquela rede social por se constituir nos espaços intermediários entre Estado, sociedade civil e mundo da vida

As redes de usuários são sistemas de trocas de dons(15) e de reciprocidades que obrigam e/ou liberam as pessoas envolvidas mediante ações bipolares de cidadania na esfera pública. Tais ações bipolares conhecem fluxos de aproximação (acordos – paz) e de distanciamento (conflitos – guerra), sendo identificadas mais facilmente mediante os problemas que impedem a circulação espontânea dos dons e contra-dons(15).

As redes sociais são sistemas de trocas e de reciprocidades que envolvem obrigatoriamente a pessoa mediante ações de acordo/desacordo ou de conflitos/alianças mais conhecidas como dádivas(15). Tais trocas, por sua vez, não são aleatórias, mas animadas por motivos paradoxais que se estruturam por pares: a quem fala de liberdade se invoca a obrigação e vice-versa; a quem fala de interesse se invoca o desprendimento e vice-versa. A liberdade e o empoderamento da pessoa dentro da rede dependem da sua tomada de consciência sobre a existência e o funcionamento da rede.

A discussão avaliativa através da MARES permite o mapeamento das redes dos usuários, tanto visíveis como invisíveis, no contexto de práticas inovadoras em saúde mental. A partir das redes visíveis identificadas e ampliadas, a proposta de avaliação busca envolver os grupos de interesse, potencializando o empoderamento desses grupos para que ampliem sua consciência e autonomia. Além disso, o espírito da avaliação de quarta geração busca ampliar a capacidade de análise e de intervenção desses grupos na consolidação das redes de serviços, de cuidados e de sociabilidade voltadas para atenção psicossocial.

As redes sociais e comunitárias interativas podem se constituir em recursos importantes para se conceber e se implementar novos critérios e indicadores de avaliação das políticas públicas que tenham efeitos mais efetivos que os tradicionais determinantes sociais epidemiológicos por integrarem ao mesmo tempo os fatores macro e microssociológicos, aqueles pensados a partir da lógica do sistema e aqueles pensados a partir das lógicas do mundo da vida:

Esse princípio da MARES vai ao encontro da nossa concepção de avaliação como dispositivo no momento em que defendemos que o desenvolvimento de novos espaços na atenção em saúde mental, dentro da lógica psicossocial, dará força para transformações mais amplas e, ao se trabalhar com investigações que avaliem a operacionalização de novos equipamentos de atenção em saúde mental, constroem-se parâmetros para o (re)direcionamento das ações, constituindo-se, também, uma estratégia para influenciar as políticas públicas dessa área.

 

Conclusão

Apresentamos no espaço deste artigo construções teóricas que nos permitem refletir sobre as concepções, os caminhos e desenhos de estudos de avaliação qualitativa em saúde mental, no contexto da reforma psiquiátrica.

Entendemos assim que, a avaliação não visa apenas estabelecer-se como um julgamento para determinar a continuidade ou não de um programa ou buscar relações de causalidade, mas constitui-se num processo formativo que potencializa as práticas nos serviços substitutivos, e, desta forma, os configura como um dos possíveis dispositivos de mudança. Também não se buscam generalizações. Em um país tão extenso, com tantas diversidades, essa idéia não é possível a partir do enfoque proposto.

O estudo de processos sociais singulares, que sofrem grande influência de variáveis subjetivas e políticas, apesar de não servir ao princípio da generalização, pode atender a outro importante princípio: o da utilização. Uma avaliação formativa, incluindo os diversos atores envolvidos no serviço e nos processos sociais, pretende superar as limitações das avaliações tradicionais, agindo sobre as práticas de saúde a partir do entendimento daqueles que as constroem.

 

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Endereço para Correspondência
Luciane Prado Kantorski
Universidade Federal de Pelotas
Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia
Departamento de Enfermagem
Avenida Duque de Caxias, 250
Bairro Fragata
CEP 96030-002
Pelotas, RS, Brasil
E-mail: kantorski@uol.com.br

 

 

*Trabalho apresentado no XI Encontro de Pesquisadores em Saúde Mental e Enfermagem Psiquiátrica. Ribeirão Preto, SP, Brasil, 2010
This study was presented in the 11st Meeting of Researchers in Mental Health and Psychiatric Nursing. Ribeirão Preto, SP, Brazil, 2010
Trabajo presentado en el XI Encuentro de Investigadores en Salud Mental y Enfermería Psiquiátrica. Ribeirão Preto, SP, Brasil, 2010

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