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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

On-line version ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.6 no.spe Ribeirão Preto Nov. 2010

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A construção do saber em enfermagem psiquiátrica: Uma abordagem histórico-crítica*

 

Knowledge Construction in Psychiatric Nursing: A Historical-critical Approach

 

La construcción del saber en enfermería psiquiátrica: Un abordaje histórico-crítico

 

 

Teresa Cristina da SilvaI; Débora Isane Ratner KirschbaumII

I-Enfermeira, Psicóloga, Doutoranda em Enfermagem, Departamento de Enfermagem, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, SP, Brasil. Professor Assistente, Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: teresac@fcm.unicamp.br
II-Enfermeira, Doutor em Saúde Mental, Professor Assistente, Lawrence S. Bloomberg Faculty of Nursing, University of Toronto, Ontário, Canadá. E-mail: debora.kirschbaum@utoronto.ca

 

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

A enfermagem surge no campo da psiquiatria inicialmente enquanto saber subsidiário à prática médica. Tal origem fornece elementos para que se construam os primórdios de uma identidade profissional, sustentada por saberes, e, nesse momento, ainda, não específicos da enfermagem psiquiátrica. Sabe-se que, no entanto, esse saber formalizado e sistematizado só se constituirá como tal a partir dos anos 50, momento em que estão associadas as primeiras teorizações da prática de enfermagem psiquiátrica. O objetivo desse artigo foi refletir sobre os saberes da enfermagem psiquiátrica em sua especificidade, numa perspectiva histórico-crítica. Trata-se de reflexão acerca dos saberes da enfermagem psiquiátrica, sustentada em revisão bibliográfica (realizada nas bases MEDLINEe CINAHL) que utiliza uma cena clínica fictícia como estratégia de recorte para análise. As análises fundamentam-se nas elaborações lacanianas acerca da ciência, do saber e na sua teorização dos discursos, bem como na análise empreendida por Almeida e Rocha acerca dos saberes de enfermagem. Assim, analisaram-se, aqui, os saberes de enfermagem psiquiátrica em suas duas frentes: uma formal e sistematizada e outra informal, não sistematizada, dentro dos moldes científicos, ambas determinando e/ou influenciando as práticas de enfermagem psiquiátrica desde seus primórdios. Refletiu-se acerca dos avanços alcançados, mas, também, dos efeitos advindos da negação do saber específico da enfermagem. Diante das inúmeras pesquisas e reflexões publicadas há consenso: a premência de se construir novos saberes e fazeres. Acredita-se, firmemente, na pertinência, relevância e urgência de se debruçar sobre os saberes específicos, retomando ou reconhecendo os mestres, questionando-os em busca de respostas e de novas perguntas, tudo isso a partir das questões encetadas pelo sujeito que sofre.

Descritores: Enfermagem Psiquiátrica; Cuidados de Enfermagem; Pesquisa em Enfermagem.


ABSTRACT

The first appearance of nursing in psychiatry was as knowledge subsidiary to medical practice. Such origin offers elements to outline the beginning of a professional identity based on knowledge, which are yet unspecific in psychiatric nursing. It is only in the 1950’s that such knowledge would become formal and systemized, a moment associated with the first theorizations of psychiatric nursing practice. The objective of this article is to reflect on the specificity of psychiatric nursing knowledge from an historical-critical perspective. It is a reflection about a literature review on psychiatric nursing knowledge (performed on Medline and Cinahl databases) using a fictional clinical setting as the strategy for analysis. The analyses are founded on the Lacan’s elaborations on science, knowledge and his theorization of discourses as well as the analysis used by Almeida and Rocha about nursing knowledge. Hence, we analyzed two aspects of psychiatric nursing knowledge: one formal and systematized, and another informal, non-systematized and in the scientific standards, both determining and/or influencing psychiatric nursing practice since the beginning. We reflected on the improvements that were achieved, but also on the effects from denying knowledge specific to nursing. In view of the numerous published studies and reflections, there is consensus on the urgency to build new knowledge and practice. We have a firm belief on the pertinence, relevance and urgency of addressing our specific knowledge acknowledging our masters, questioning them in the search for answers to new questions, based on questions made by the subject who suffers.

Descriptors: Psychiatric Nursing; Nursing Care; Nursing Research.


RESUMEN

La enfermería surge en el campo de la psiquiatría inicialmente como un conocimiento de apoyo a la práctica médica. Tal origen brinda elementos para que se construyan los esbozos de una identidad profesional respaldada por conocimientos, en aquel momento, aún no específicos de la enfermería psiquiátrica. Se sabe que, por lo pronto, dicho saber formalizado y sistematizado sólo se constituiría como tal a partir de los años ’50, momento al que están asociadas las primeras teorizaciones de la práctica de la enfermería psiquiátrica. El objetivo de este artículo es reflexionar sobre los conocimientos de la enfermería psiquiátrica en su especificidad, en una perspectiva histórico-crítica. Se trata de una reflexión acerca de los conocimientos de enfermería psiquiátrica sustentada en una revisión bibliográfica (realizada en las bases Medline y Cinahl) que utiliza una escena clínica ficticia como estrategia de marco de análisis. Los análisis se fundamentan en las elaboraciones lacanianas acerca de la ciencia, del saber y en la teorización de sus discursos, así como en el análisis emprendido por Almeida y Rocha respecto de los conocimientos de enfermería. De tal modo, analizamos los conocimientos de enfermería psiquiátrica en sus dos frentes: uno formal y sistematizado y otro informal, no sistematizado dentro de los moldes científicos, ambos determinando y/o influenciando las prácticas de enfermería psiquiátrica desde sus fundamentos. Reflexionamos acerca de los avances alcanzados, pero también acerca de los efectos devenidos de una negación del conocimiento específico de la enfermería. Frente a las innumerables investigaciones y reflexiones publicadas, existe un consenso: la urgencia para que construyamos nuevos conocimientos y quehaceres. Creemos firmemente en la pertinencia, relevancia e inmediatez de inclinarnos hacia nuestros conocimientos específicos, retomando o reconociendo a nuestros maestros, cuestionándolos en busca de respuestas y de nuevas preguntas, todo eso a partir de los cuestionamientos originados en el sujeto que sufre.

Descriptores: Enfermería Psiquiátrica; Atención de Enfermería; Investigación en Enfermería.


 

 

Introdução

Origem da enfermagem psiquiátrica

A enfermagem surge no campo da psiquiatria inicialmente enquanto saber subsidiário à prática médica. Os primeiros psiquiatras, então preocupados com o nascimento da clínica, tinham nos agentes de enfermagem importantes observadores e provedores das informações que iriam alimentar ou subsidiar a construção das primeiras classificações nosográficas, altamente baseadas no comportamento observável(1). Na psiquiatria brasileira há exemplos da formação da escola de enfermeiros e enfermeiras da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto (EEAP), que visava preparar os enfermeiros como observadores; Juliano Moreira preocupava-se em estabelecer as qualidades de um bom enfermeiro. O mesmo ocupou a atenção de Jacinto Godói, no Rio Grande do Sul, e de Pacheco e Silva, no Juqueri(2).

Mas o que pode ter significado para a enfermagem, no campo da assistência psiquiátrica, assumir esse lugar de produtor de informações para fornecê-las a um outro? Inegavelmente, estar nesse lugar garantiu à enfermagem espaço na hierarquia das instituições, e, nesse sentido, conferiu-lhes algum poder*. E, ao mesmo tempo em que esses trabalhadores possuíam funções específicas no cuidado aos pacientes, algo que lhes conferiria alguma identidade, atuavam decisivamente exercendo uma atividade meio, substrato para a construção de um saber médico sobre a loucura. 

Tal situação remete à dialética hegeliana do Senhor e Escravo, mais especificamente à apropriação dessa dialética por Lacan(3), ao propor seus quatro discursos. Sabe-se que os agentes de enfermagem que atuaram entre as décadas 20 e 50, em especial aqueles que não possuíam preparo formal para atuarem nos hospícios, viam no trabalho em enfermagem, no campo da assistência psiquiátrica, possibilidade de fazer frente às suas necessidades financeiras. Os que possuíam preparo formal afirmaram que o seu interesse pela área de trabalho era o fator que motivou essa escolha(2,4).

Pode-se, entretanto, apostar na hipótese (uma vez que os dados apresentados na tese analisada(2) não fazem referência direta a isso) que, se foi pela necessidade ou simpatia que eles iniciaram, possivelmente, foi pelo saber que permaneceram. Que saber? Um saber sobre a enfermagem psiquiátrica? Arrisca–se, aqui, dizer que não só. Antes desse, outro maior é exigido para que esses trabalhadores permanecessem anos a fio trabalhando na profissão. Um saber/fazer que sabe muitas coisas, “... mas o que sabe muito mais ainda é o que o senhor quer, mesmo que este não o saiba, o que é o caso mais comum, pois sem isso ele não seria um senhor”(3). Tal saber/fazer pode ser repassado ao senhor.

E essa enfermagem, submetida aos alienistas, possuidora de saber e convicta de sua posição meio, submete-se e surge orgulhosa de si. Cabe aqui questionar: para quem, em nome de que(m) produzia-se esse saber? Para os alienistas, pois essa era a grande missão que eles, em sua posição de poder, conferiram aos agentes de enfermagem. Mas, também, não se pode desconsiderar que esse saber contribuiu para a definição dos rudimentos do que viria a ser a identidade profissional da profissão.

A partir disso, um saber propriamente de enfermagem começa a surgir em duas frentes. Uma formalizada e sistematizada, que cresce com o aparecimento das escolas nightingaleanas no Brasil (do qual a Escola Anna Nery foi precursora). A outra, oposta a essa, figura como informal e assistemática, sendo, à época, produzida pelos trabalhadores sem formação específica que trabalhavam nos hospitais psiquiátricos(2,4).

Sabe-se que, no entanto, esse saber formalizado e sistematizado só se constituirá como tal a partir dos anos 50, momento em que estão associadas as primeiras teorizações da prática de enfermagem psiquiátrica com Peplau(5) e, posteriormente, Travelbee(6). Teorização que, segundo Peplau, foi construída ao longo de diversos anos de experiência na docência e na assistência de enfermagem(5). Há que se ressaltar que, no Brasil, conta–se com as professoras Maria Aparecida Minzoni (São Paulo, na Escola de Enfermagem da USP-Ribeirão Preto) e Teresa Sena (no Rio de Janeiro, na Escola Anna Nery) que, desde a década de 60, cada uma em sua região, vieram produzindo e divulgando suas pesquisas e elaborações acerca da enfermagem psiquiátrica de nosso país(7-9).

Coube a essa enfermagem, sustentada no modelo nightingaleano, e portadora de projeto e corpo de conhecimentos próprio, descolado da medicina e da psiquiatria, o papel de envidar esforços grandiosos, a fim de conferir novos contornos à identidade profissional, constituída a partir da formação e da prática dos enfermeiros e trabalhadores de enfermagem formados pela visão dos alienistas.

Vale ressaltar, entretanto, que tal esforço possivelmente não tivesse sido tão vitorioso se não houvesse acontecido simultaneamente à derrocada do projeto psiquiátrico, que implementou o tratamento moral e a construção das primeiras classificações diagnósticas, baseadas na observação do comportamento dos doentes. Com a sua substituição pelo enfoque biológico, ou psicodinâmico, predominante desde o final dos anos 40, aquele modelo de preparação de enfermeiros e enfermeiras, adotado no período de 1890 a 1950, não fazia mais tanto sentido e poderia ser substituído por outras modalidades de ensino e práticas de enfermagem, que não tivessem como pressuposto básico a subordinação ao psiquiatra.

Muitos anos se passaram... A presença dos enfermeiros e da equipe de enfermagem nos dispositivos substitutivos de atenção ao portador de sofrimento psíquico (Centro de Atenção Psicossocial - CAPS, Núcleo de Atenção Psicossocial - NAPS, Centros de Conviência, dentre outros) é hoje uma realidade. Está, inclusive, garantida por dispositivos legais(10). É também certo que os trabalhadores da enfermagem são parte (ou deveriam ser) integrante da equipe multiprofissional e atuam com vistas ao trabalho interdisciplinar. É certo que, atualmente, há, no Brasil, número expressivo‡ de cidadãos atendidos nos 1502 CAPS brasileiros(11), além de outros tantos sendo atendidos nos diversos dispositivos e, portanto, sendo cuidados pela equipe multiprofissional e de enfermagem. É certo que, para essa atuação, saberes são mobilizados e produzidos no sentido de sustentar essa prática. Mas, para quem se volta esse saber? Em nome de quem ele tem sido construído? Reconhece-se uma especificidade ou ela tem sido negada? Repete-se? Elabora-se?

 

Objetivo

O objetivo deste estudo foi refletir acerca dos saberes da enfermagem psiquiátrica em sua especificidade, numa perspectiva histórico-crítica.

 

Metodologia

Para que se pudesse alcançar o objetivo deste artigo, tomou-se como ponto de partida os achados de uma tese de doutoramento acerca das práticas de enfermagem. no período compreendido entre as décadas 20 e 50(2). Realizou-se busca bibliográfica de publicações no período de 1995 a 2010, nas bases de dados MEDLINE e CINAHL, bem como no portal de periódicos SciELO, com os descritores ‘enfermagem psiquiátrica’, ‘enfermagem em saúde mental’, cruzados com o descritor ‘reforma psiquiátrica’. Retornaram dessa busca sessenta e quatro publicações (artigos, teses, dissertação). Dessas, trinta e oito realizaram, dentre outras discussões, um ‘diagnóstico’ da situação da enfermagem psiquiátrica frente aos pressupostos da reforma psiquiátrica brasileira. Em treze artigos relataram-se e/ou se analisaram iniciativas da enfermagem, consideradas como práticas inovadoras, sendo coerentes com a política de saúde mental vigente. Os demais artigos eram dedicados a discutir temas mais ligados à organização do trabalho e ao ensino de enfermagem psiquiátrica, a partir das propostas advindas da reforma psiquiátrica brasileira. Tal busca bibliográfica forneceu elementos para pensar os saberes da enfermagem, período no qual se efetivam as primeiras mudanças, dentro dos propósitos e princípios da reforma psiquiátrica até o presente momento. Isso porque compreende-se a reforma psiquiátrica como processo que requer movimento contínuo de inovação, avaliação e revisão das práticas e ideias. 

Diante dessas publicações que instavam à construção de novos saberes e práticas, foi idealizado este trabalho. Trata-se de reflexão sustentada em bibliografia científica e analisada a partir do arcabouço teórico lacaniano acerca da ciência, do saber e de sua teorização dos discursos, bem como na análise empreendida por Almeida e Rocha(12), acerca dos saberes de enfermagem. Optou-se por utilizar uma cena clínica fictícia§ como estratégia de recorte, diante da amplitude de questões implicadas nos saberes de enfermagem psiquiátrica. Além disso, a opção por uma cena clínica foi feita a partir da certeza de que a construção de saberes na enfermagem psiquiátrica passa, necessariamente, pela constante interlocução com a prática de enfermagem e caminha em direção aos constructos teóricos, confrontando-os com as questões que tal prática coloca os profissionais de enfermagem.

Oficina terapêutica de cuidados em um serviço de saúde mental: uma cena possível

A proposta de uma oficina terapêutica de cuidados surgiu da observação de que, naquele serviço de saúde mental, não havia espaço constituído para se pensar/cuidar do corpo. Os trabalhadores do serviço, comprometidos e com enorme adesão ao projeto de saúde mental e ao projeto do CAPS, eram exímios cuidadores das questões ‘psi’. Todos, incluindo a equipe de enfermagem. Assim, a despeito do impasse que surgiu se aquele serviço deveria ou não se ocupar dos cuidados do ‘corpo físico’, foi iniciado o projeto numa pequena sala, com um grande espelho.

Nesse pequeno espaço, perto da cozinha, longe dos consultórios, chegou ressabiada uma usuária do serviço (será chamada B), meio encaminhada, meio conduzida, meio empurrada por um membro da equipe de enfermagem, recentemente contratado. A demanda da profissional: era preciso dar um jeito nos piolhos de B. Cabelos bem anelados, revoltos, compridos, que escondiam incontáveis piolhos quase irreconhecíveis de tão bem nutridos. Os fios das têmporas estavam cobertos de algo semelhante a pó de giz: lêndeas. A proposta da colega era cortar os cabelos de B para que, assim, o remédio pudesse penetrar mais (várias tentativas de tratamento medicamentoso haviam sido feitas sem sucesso). Ao ouvir isso, B literalmente atropelou quem estava em sua frente e saiu correndo da sala. Foi preciso conter o ímpeto da técnica de enfermagem de sair para trazê-la de volta. Dar um jeito nos piolhos era fundamental, mas poderia esperar um pouco mais. Uma participação compulsória não fazia parte das propostas da oficina. B passou a fugir da autora, no serviço. Alguns dias depois, indo ao encontro dela, foi proposta a lavagem de seus cabelos, usando cremes para que eles ficassem mais bonitos. Era preciso avaliar mais de perto a situação. Ela concordou e, ao fazê-lo, impressionada com tanto parasita, resolveu-se abordar a questão. Na ocasião, B contou que estava sendo hostilizada pelos demais usuários do serviço por ser ‘piolhenta’. Ainda, foi proposto o início de tratamento (higiene pessoal, remoção mecânica de parasitas e lêndeas, remoção com medicamento, higiene do ambiente em que ela vivia). A profissional de referência (técnica de referência) de B se envolveu nessa situação. Entre cabelos, piolhos e lêndeas descobriu-se que B foi casada e, nessa época, adepta de uma religião que condenava cortes de cabelo. O marido falecera, a fé se foi, ficaram os cabelos. Descobriu-se, também, em sua residência, uma casa em condições subumanas, uma mãe também muito desorganizada psiquicamente, uma vida sexual bastante ‘errante’. Posteriormente, testemunhou-se um ar de satisfação de B quando viu seus cabelos cortados um pouco, seu ‘novo visual’, com muito menos incômodo pela redução de lesões no couro cabeludo. Várias vezes, ao longo de muitos meses, lavando os cabelos de B e, ao mesmo tempo, sabendo mais sobre sua vida, era interpelada pelos membros da equipe de enfermagem e também demais profissionais que ‘brincavam’, comentando que a estratégia era matar piolhos afogados, uma vez que tudo havia sido tentado e que, para aquela situação, não havia solução.

Alguns questionamentos acerca e a partir da cena fictícia

Diante dessa cena questionou-se: como fica o cuidado com o corpo (físico) dos portadores de sofrimento psíquico, em especial aqueles em crise, em um serviço que se propõe cuidar da saúde mental e escapar de qualquer possibilidade de se tornar instituição responsável por tudo na vida daqueles que ali vão diariamente? Isso porque esse serviço aposta no cuidar em liberdade. Aposta que o lugar da loucura é na comunidade e não numa instituição. Aposta que aquela pessoa que ali está tem condições de se cuidar ou de vir a fazê-lo. Aposta que cuidar de si é algo fundamental, quer seja numa perspectiva reabilitadora ou numa perspectiva de, assim agindo, poder abrir espaço para que algo daquele sujeito tenha lugar. Como é, ou pode ser, para a enfermagem que atua em serviços de saúde mental realizar um cuidado, considerando a relação absolutamente peculiar que um psicótico pode estabelecer com seu corpo?

Como pensar em todos os elementos novos da história de vida de B, obtidos a partir das conversas que começaram com cabelos, piolhos e lêndeas e diante deles não tomá-los todos, os problemas encontrados e os dramas vividos, como problemas de enfermagem, passando a buscar solução para eles, um a um, numa conduta de alto risco para se tornar tutelar, totalitária, excludente, manicomial? E, ao mesmo tempo, como fechar os olhos para tudo isso?

Como pensar que nesse serviço há enfermeiros e técnicos de enfermagem investidos em sua função de cuidar, mas que desistiram de fazer isso, nessa situação? Como pensar nessa equipe de enfermagem que sentenciou não haver mais solução? Como pensar nessa equipe de enfermagem que atua em um serviço de atendimento à crise, serviço de urgência, que não enxergou a urgência de abordar o excesso de parasitas como problema de enfermagem? Como pensar o preparo dos profissionais de enfermagem para atuar nesse serviço, quando eles entendem que se tratava simplesmente de conduzir B à oficina, cortar-lhe os cabelos e colocar mais medicamento? Seria o caso de instituir um protocolo de enfermagem, ou do serviço, para atendimento de portadores de sofrimento mental em crise, que incluísse um passo a passo a ser seguido, para evitar que casos assim chegassem a ficar tão graves?

Não há, aqui, a pretensão de se oferecer respostas a todos os questionamentos feitos, até porquê muitos deles carecem de respostas ainda não construídas. Também, porquê algumas dessas respostas seriam absolutamente adequadas à vida de B e em nada pertinentes à vida de tantos outros, que, como ela, padecem com esquizofrenia, problemas familiares, doenças parasitárias, dentre outros. Mas algumas ponderações serão feitas, não na qualidade de respostas prontas, mas de tentativas de pensar e contribuir para a construção desse saber de enfermagem psiquiátrica/saúde mental, em sua especificidade.

O saber de enfermagem em duas frentes: um saber para outro (Outro)?

Antes de mais nada, há que se colocar aqui que não se apresenta como sendo uma verdade que cuidar de B, enfrentando seus piolhos, seja algo específico da enfermagem. Mas, também, é certo que, de todos os profissionais que compõem a equipe multiprofissional do CAPS, o enfermeiro é aquele que, em sua formação de graduação, dedicou maior tempo estudando as doenças parasitárias e sua prevenção, bem como aquele que melhor foi preparado para atuar como educador em saúde. Possivelmente, é o único com formação generalista na área da saúde. O que, se acredita, implica esses profissionais nos problemas de B, mas com a ressalva de que não se pode, sob esse argumento, apossar-se de tudo o que os demais profissionais não conseguem lidar.

Sabe-se que, desde a constituição de um saber específico da enfermagem psiquiátrica, ocorrido a partir da década de 50, transformações profundas aconteceram no cenário político e no setor de saúde brasileiro, em especial no que diz respeito à atenção aos doentes mentais. Nas décadas de 70 a 80, com o advento da reforma psiquiátrica e constituição das equipes multiprofissionais, operando a partir de perspectiva interdisciplinar, o saber específico de enfermagem, em especial o sistematizado, passa a ser desqualificado como pouco útil(13-14) e, por vezes, reacionário.

Vale ressaltar que a questão da aplicabilidade das teorias de enfermagem aos problemas, colocados pelo cotidiano das práticas de enfermagem, pode ser pensada a partir de detalhada análise realizada acerca do saber da enfermagem e de sua dimensão prática(12). Embora essa análise tenha sido realizada pensando na enfermagem como um todo, os seus achados são bastante aplicáveis à realidade atual da enfermagem psiquiátrica/saúde mental.

Ao analisar os saberes e práticas da enfermagem como um todo, pode-se selecionar as técnicas, os princípios científicos e as teorias de enfermagem como sendo as principais formas de saberes da enfermagem(12). Numa perspectiva histórica, sabe-se que a enfermagem enfrentou, na década de 70, crise de identidade, reflexo de crise maior vivenciada pelo setor saúde. Diante dessa realidade, as teorias de enfermagem surgiram como possibilidade de autonomia e de consagração do trabalho intelectual e do ideal de cientificidade da enfermagem. Entretanto, essas teorias, exatamente por se voltarem mais ao projeto ideológico e de cientificismo, acrescido do fato de não ser uma produção autóctone, trouxeram respostas insuficientes à crise da enfermagem brasileira(12).

A enfermagem, atualmente, pode estar repetindo seu mito de origem, quando em seu processo de construção e reafirmação como ciência, em seu processo de construção e apropriação de saber, acaba atendendo mais às demandas externas, demandas que se afastam em muito de seu objeto de trabalho. 

Mas como compreender essa insuficiência de respostas, advindas das teorias de enfermagem(12-14), ou que repercussões podem advir de teorias construídas para responder às demandas externas à profissão? Ousa-se, aqui, afirmar que esse saber, nascido pelo desejo tirano de um Outro (alienistas, instituições, obrigatoriedade de se ter uma produção acadêmica, dentre outros) e validado pelos enfermeiros, comporta e produz certa imobilidade. Pensando em tal realidade, algo remete ao discurso universitário(3). Um discurso comandado por um saber que se acredita total, completo, que só pode produzir, em última análise, silêncio. Um saber comandado por outros (Outro, na linguagem lacaniana) que se dirige a um objeto, condenando o sujeito também ao silêncio. E se as práticas devem se assentar num saber, então, esse silêncio se traduz em um nada a fazer.

Se as teorias se divorciam das práticas, se os profissionais as julgam pouco aplicáveis, qual o primeiro reflexo dessa realidade nas práticas da enfermagem psiquiátrica, nesse período de consolidação da reforma psiquiátrica brasileira e construção de outros dispositivos assistenciais? Constata-se, a partir de vivências das próprias autoras, que uma lacuna se coloca toda vez em que algo da ordem do cuidado clínico e de sua desassistência entra em cena. É como se o descuido ao usuário sofredor de um transtorno mental denunciasse o equívoco de uma perspectiva que, ao negar a existência da doença mental em seu caráter de ruptura, põe em risco tudo o que está em questão. Assim, a negatividade, atribuída ao saber específico de enfermagem, mostra-se, na verdade, questão a ser problematizada em outros termos. Propriamente, naquele que se descola das idealizações e foca o osso da questão de o que é cuidar de um psicótico, com todas as nuances que a abordagem a esses pacientes pode trazer. Algo que se pode pensar a partir da cena fictícia apresentada.

Nessa cena, além da patente ruptura cuidado do corpo/cuidado da mente, vê-se algo da impossibilidade de se cuidar quando a equipe se ‘acostuma’ com a cruel realidade de B, obrigada a conviver com inúmeros piolhos. De outra forma, B, em franca crise, parecia, à primeira vista, alheia a tudo, meio anestesiada com o que se passava ao seu redor, meio anestesiada ao tamanho incômodo de tanto parasita e as lesões por eles causadas, meio alienada numa vida sexual sem limites, quase nunca se dando ao trabalho de falar espontaneamente. Ainda assim, ela tinha algo a dizer. Havia um desejo claro de que não lhe cortassem os cabelos, havia um incômodo pela crítica severa dos demais usuários do serviço, havia algum sentido nessa tamanha falta de sentido. Era preciso abrir espaço para que B falasse de si. Há muito uma teórica de Enfermagem advertia que a enfermeira não pode saber o que está ‘na mente’ do paciente até que ele fale de si(5).

Toda a tecnologia disponível para o combate aos parasitas humanos havia se mostrado ineficaz, a despeito de abordagem absolutamente correta do ponto de vista médico (contra piolhos). Mas havia. também, nessa situação, abordagem bastante equivocada, do ponto de vista do cuidado ao corpo, de uma portadora de sofrimento mental em crise. À enfermagem desse serviço era preciso apresentar a precursora da enfermagem moderna(15), que, em 1859, advertia contra a ideia de que medicar, em detrimento de outras medidas ambientais, significaria fazer tudo o que pode ser feito pelo enfermo. Seria interessante também que conhecessem melhor a definição de enfermagem na qual a mesma é considerada uma arte em que só se faz pelo paciente aquilo que ele não é capaz de fazer(16).

É comum que, diante de impasses ou problemas identificados por nós, enfermeiros, no cuidado aos pacientes, tenha-se o ímpeto de pensar algo que sirva de antídoto definitivo contra essas iatrogenias, acontecendo cotidianamente, tal como ilustra a cena apresentada. Assim, pensar em protocolos, rotinas, padronizações pode ser uma saída plausível e tentativa de todos fazerem tudo da mesma forma, em qualquer parte do mundo, algo que equivale à busca por uma língua comum “(...)como um esperanto que pudesse terminar com o ‘mal-entendido’ próprio à comunicação”(17). Isso se constitui num equívoco.

Há, entretanto, que se vigiar atentamente para que essas padronizações sejam feitas em nome de cuidado com qualidade, em função de alguma organização e orientação, para aqueles que chegam ao serviço, em nome de formalizar algo que, após intensa discussão em equipe, após pesquisas e estudos conjuntos, seja entendido pela equipe como uma ‘boa conduta’. É preciso desconfiar das padronizações quando surgem apenas de um esforço individual, quando não contemplam as especificidades daquele serviço, daquela realidade, quando elas surgem como uma resposta a todos os problemas, quando se configuram como forma de não cuidado, quando não deixam espaço para que algo do particular apareça. Seja do particular do profissional ou daquele que precisa do cuidado de enfermagem.

Algo que ora se apresenta, nessa cena, que, embora fictícia, repete-se em suas variantes em diferentes serviços de saúde mental, remete aos primórdios da enfermagem psiquiátrica. Há uma frente do saber, construído na prática cotidiana, formalizado e acrescido de alguns elementos do saber médico psiquiátrico (uma esquizofrênica desorganizada, ou seja, uma louca sem vontades, alguém a ser guiado, alguém que não tem quereres). Um saber que tudo sabe, de uma verdade totalitária, um saber completo, sem faltas. Uma vez tentados todos os caminhos, que eles acreditavam serem aqueles propostos pela ciência, a equipe só pôde concluir que não havia nada mais a se fazer, quase dizendo que há algo errado com a paciente, com os piolhos, menos com esse saber instituído, cristalizado.

O saber de enfermagem em duas frentes: um saber ‘de antemão’?

Como apontado anteriormente, o saber de enfermagem se desenvolve, desde os primórdios em duas frentes. A segunda frente desse saber, presente desde os primórdios de dessa profissão, embora nunca tenha se consolidado, nem seja reconhecido como científico, é também o que ainda, muitas vezes, respalda as práticas engendradas, até mesmo nos novos serviços. Tal saber é perpetuado por auxiliares/técnicos de enfermagem e enfermeiros que “sabem” de antemão. “Sabem” quando o paciente vai agitar, por sinais que são absolutamente intuitivos e que são descritos pelos agentes de enfermagem como “ah, a gente sabe”. “Sabem” quando algo não tem mais solução, mesmo quando não foram tentadas outras possibilidades. “Sabem” quando os familiares não vão cooperar mesmo antes de conhecê-los. “Sabem” o que é melhor para o paciente (no caso, cortar os cabelos para acabar com piolhos). Saberes que não passam por qualquer teorização nos moldes em que foi descrita ou classificada como tal. Saberes que conferem um lugar na equipe, nos serviços, lugar confortável, um lugar imóvel, um lugar de não trabalho.

Arriscar-se-ia dizer que o escravo hegeliano, em seu processo de tomada de consciência, tornou-se senhor. Mas, diferente da apropriação que fez Lacan da dialética hegeliana do senhor e escravo para propor seu discurso do mestre, discurso aqui entendido como forma de fazer laços sociais, esse saber que sabe de antemão, que sabe por antecipação, não produz laços sociais. Construído por cada um dos trabalhadores com matérias-primas absolutamente individuais (experiência, valores, conceitos e preconceitos) esse saber também completo, que a tudo responde, e que, por não conter lacunas, não conduz ao trabalho, à investigação clínica, à pesquisa, à reunião de discussão clínica, ao desejo de saber mais. Um saber que é tratado como objeto e não um meio a ser mobilizado para sustentar as práticas da enfermagem.  Possivelmente, esse saber seria só mais um objeto. Ou, ainda, um saber que, por seu esvaziamento, assume um lugar de lei, algo que comanda esse discurso(3,17)

Assim, cada trabalhador, munido desse seu saber objeto, segue absolutamente só, cercado de outros profissionais acreditando que trabalha em equipe. E, quanto mais se desqualifica o saber da especificidade da enfermagem mais se abre espaço para que esse outro saber/objeto se torne possível ou para que outros e Outro venham dizer o quê e como fazer.

A enfermagem psiquiátrica (na) e a reforma psiquiátrica brasileira: que cuidado? Que saberes?

O cuidado de enfermagem psiquiátrica/saúde mental busca estar em consonância com os princípios da reforma psiquiátrica brasileira. Dentre outros, é preciso pensar que o cuidado deve levar em conta a cidadania, a autonomia, os direitos de quem se cuida. Algo que, considerando a definição de enfermagem oferecida por Wanda Horta(16), guarda total coerência. Assim, cuidar de B deve necessariamente comportar trabalhar com ela sua autonomia. Não se produz autonomia sem se considerar o desejo. Considerar o desejo significa ir bem mais além do que fazer aquilo que o usuário quer. Implica buscar compreensão acerca da situação clínica daquele sujeito, buscar possíveis significados de coisas incompreensíveis ou incoerentes, escutar, construir juntamente com o paciente propostas para seu cuidado. Esse é um cuidado que se afina em muito com as ideias antimanicomiais.

Sabe-se que a enfermagem psiquiátrica, em sua origem, recebeu forte influência das ideias acerca do tratamento moral(2). Sabe-se que, apesar das mudanças nas políticas e das propostas de mudanças e das mudanças já realizadas nas práticas em saúde mental, a simples construção de novos serviços não serve como garantia de que os ideais reformistas se tornaram realidade. Um enfermeiro pode atuar em um serviço substitutivo, realizar suas funções como técnico de referência, realizar suas funções como referência técnica da equipe de enfermagem, realizar oficinas terapêuticas, grupos de pacientes e nada disso significar cuidado que vá além daquele que autores(18) denominaram como sendo acolher com garantias.

Nesse sentido, e considerando as reflexões feitas a partir da cena, está-se afirmando que nada mudou? Que ao longo desses anos apenas se repetiram os cuidados e foram validados saberes constituídos a partir da década de 50? Sim e, terminantemente, não.

As análises aqui empreendidas levam a algumas constatações. Ponderando acerca dos saberes da enfermagem psiquiátrica, encontram-se diversos pontos de convergências entre as as práticas e saberes atuais e aqueles constituídos em tempos passados. Por si só isso pode não significar muito. Avançou-se, é certo, mas é também certo que, por vezes, retrocedeu-se, ou simplesmente se parou. Talvez esse seja movimento inerente à produção de saberes. Mas é preciso reconhecer que hoje, em 2010, há um quantitativo significativo de pesquisas em enfermagem psiquiatria/saúde mental que diagnosticam uma situação que se coloca a partir do início da efetivação das propostas de reforma psiquiátrica brasileira: premência de se construir novos saberes e fazeres. Já se tem pesquisas suficientes que comprovam isso(19-50).

É preciso dizer também que existem iniciativas exitosas acerca da atuação da enfermagem psiquiátrica, de acordo com os ideais reformistas. Algumas tímidas, outras pontuais, mas iniciativas realizadas e publicadas. Esse é um caminho. Entretanto, tais iniciativas se configuram em esforços localizados, até mesmo individuais. Do ponto de vista da categoria há muito a ser feito. É fundamental que se apresse, na perspectiva do trabalho em equipe (de enfermagem), para dizer sobre a especificidade, sob pena de novamente se ter outros externos (ou um Outro) que tragam essas respostas.

Do ponto de vista da categoria, carece-se de existir enquanto especialidade reconhecida pelos pares. Carece-se de definição do nome a ser dado a essa especialidade (enfermagem psiquiátrica? enfermagem em saúde mental? outro?). Carece-se de espaços de formação e de interlocução específicos. No Brasil, o “encontro de pesquisadores em saúde mental e especialistas em enfermagem psiquiátrica”, há muito, é o único evento dessa área de conhecimento. E mais, é necessário buscar respostas com pesquisas e práticas, respostas que não impliquem uma terceirização (tal como convocou Loyola em discurso não publicado no Encontro Temático de Saúde Metal, ocorrido no 60o Congresso Brasileiro de Enfermagem, em 2008, mas que possam ser colocadas em prática (repetindo, nas pesquisas, no ensino e nas práticas assistenciais) com urgência.

Acredita–se, aqui, firmemente, na pertinência, relevância e urgência de se debruçar sobre os saberes específicos da enfermagem. Inicialmente, é preciso reconhecer que pouco dessa especificidade tem sido o motor de pesquisas. Precisa-se estudá-los (esses saberes específicos), em profundidade, de forma critica e numa atitude de reflexão. Necessita-se buscá-los em sua origem: conhecer e compreender suas bases teóricas e filosóficas de forma contextualizada. É preciso encontrar e (re)-conhecer os mestres da enfermagem e da enfermagem psiquiátrica. Precisa-se interrogar os mestres, através de suas propostas teóricas e de suas práticas, com o objetivo de produzir saberes. Nesse sentido, transitar pelo discurso da histérica**, proposto por Lacan(3).

Vale ressaltar que reconhecer o lugar de nossos mestres, ou seja, instituir mestres que sabem, é algo que não comporta a ideia de tomar aquilo que eles já produziram por verdades intocáveis, aplicáveis a qualquer contexto, em qualquer tempo.

As atuoras, aqui, estão convencidas de que, nessa jornada, serão encontrados mestres, respostas e saídas para impasses, mas, também, lacunas que conduzirão ao desejo de saber, de pesquisar, de produzir em nome de cuidado de enfermagem que se dê a partir da, e considerando, subjetividade. Um saber que se produzirá a partir das questões encetadas pelo sujeito que sofre, trazendo algumas respostas e criando novas perguntas.

 

Considerações Finais

Os impasses cotidianos, vivenciados no cuidado ao portador de sofrimento mental em crise, devem conduzir a enfermagem (e também os demais integrantes da equipe de um serviço de saúde mental) a constante e intenso esforço para repensar as práticas, discutir os problemas, estudar em conjunto, a fim de encontrar saídas aceitáveis e em total consonância com a ideia de que o lugar de um cidadão é na cidade. A partir dessa realidade, os saberes ali mobilizados devem conduzir os profissionais a compartilhá-los com os demais, através de publicações. Esse constante ensaio de construção de conhecimentos deve também conduzir à ideia de que, se o espaço/lugar do cidadão é na cidade, por vezes esse cidadão pode necessitar de real acolhimento, e, assim, é imprescindível que se tenha serviços realmente abertos para recebê-los.

Para tanto, a enfermagem, inserida e investida em cuidar daquele que porta algum tipo de sofrimento psíquico, não pode prescindir de constante movimento que leve a saber mais sobre o que se faz e sobre a profissão que se constrói.

Há muito, se sabe sobre o valor de uma observação rigorosa. Há muito, compreende-se o quanto se pode e se deve prescindir do aconselhamento, devido ao quão pouco se sabe das experiências do doente. Há muito, se recebe uma teoria que descreve em detalhes como deve se dar a relação interpessoal na enfermagem. Há muito, se conhece o dispositivo da supervisão, como forma de preparar os enfermeiros iniciantes para exercerem a enfermagem psiquiátrica.

Assim, tudo está dito? Não. Mas, muito do que foi dito precisa ser resgatado, questionado, contextualizado. A realidade do cuidado, em especial do cuidado ao psicótico em crise, constitui-se num verdadeiro osso com o qual é preciso e possível lidar. Mas, para tanto, é fundamental que não haja afastamento da clínica, do cuidado direto. A realidade atual exige inovações urgentes. E a repetição identificada, nas práticas de enfermagem, pode funcionar apenas como enorme resistência para pensar e fazer diferente, ou pode ser um caminho para que se possa elaborar. Elaborar numa perspectiva individual, mas, também, principalmente, na interlocução com os colegas enfermeiros e não enfermeiros, assim como com outras disciplinas que tornem melhores os profissionais de enfermagem.

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Endereço para Correspondência
Teresa Cristina da Silva
Avenida Professor Alfredo Balena, 190
Bairro Santa Efigênia
CEP 30130-100
Belo Horizonte, MG, Brasil
E-mail: teresac@fcm.unicamp.br / teresac@ufmg.br

 

 

*Trabalho apresentado no XI Encontro de Pesquisadores em Saúde Mental e Enfermagem Psiquiátrica. Ribeirão Preto, SP, Brasil, 2010
This study was presented in the 11st Meeting of Researchers in Mental Health and Psychiatric Nursing. Ribeirão Preto, SP, Brazil, 2010
Trabajo presentado en el XI Encuentro de Investigadores en Salud Mental y Enfermería Psiquiátrica. Ribeirão Preto, SP, Brasil, 2010
*Por exemplo, os agentes de enfermagem detinham o conhecimento sobre tudo o que ocorria com os pacientes no cotidiano. Esses agentes também definiam quais pacientes deviam ser avaliados pelo médico
Lacan propôs um modelo de quatro fórmulas, as quais apresentam as relações constantes presentes em diferentes discursos em um dado momento. “Esse aparelho de quatro patas, com quatro posições pode servir para definir quatro discursos radicais”(3). São eles: discurso do mestre, discurso da universidade, discurso da histérica (que não é um discurso relacionado à estrutura clínica da neurose) e, por fim, o discurso do analista
‡A média de atendimentos por CAPS, considerada pelo Ministério da Saúde, é de aproximadamente 3700 pessoas atendidas/mês, considerando apenas CAPS I, II e III(11)
§Trata-se de uma cena fictícia, construída a partir de distintos fragmentos de distintos acontecimentos no cotidiano de um CAPS, vivenciados por uma das autoras por ocasião de um projeto de extensão universitária

**Trata-se de forma específica de construir laços sociais a partir da realidade de um sujeito dividido que interroga seus mestres com suas questões e o faz estudar, pesquisar, escrever e produzir saberes, também incompletos, também divididos, mas saberes que dizem algo do sujeito e o levam ao movimento da produção(3).

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