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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versión On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.7 no.3 Ribeirão Preto dic. 2011

 

ARTIGO ORIGINAL

 

O cuidado aos usuários de um centro de atenção psicossocial álcool e drogas: uma visão do sujeito coletivo

 

El cuidado a los usuarios de un centro de atención psicosocial alcohol y otras drogas: una visión del sujeto colectivo

 

 

Fernanda Gonçalves de MouraI; Josenaide Engrácia dos SantosII

ITerapeuta Ocupacional, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, BA, Brasil
IITerapeuta Ocupacional, Mestre em Saúde Coletiva, Professor Assistente, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, BA, Brasil. E-mail: josenaidepsi@gmail.com

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O consumo de substâncias psicoativas constitui-se em complexa problemática experenciada nas sociedades contemporâneas. Assim, esta pesquisa teve por objetivo analisar a percepção de usuários acerca do cuidado ofertado no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. Utilizou-se como metodologia o discurso do sujeito coletivo. Foram entrevistados dez usuários que são acompanhados pelo serviço, localizado na cidade de Salvador, BA. Há reconhecimento, pelos usuários, acerca do cuidado ofertado como humanizado, consideram que a estratégia de tratamento adotada tem impacto no consumo e na redução de agravos causados pelo uso abusivo de drogas.

Descritores: Acolhimento; Saúde Mental; Usuários de Drogas.


RESUMEN

El consumo de sustancias psicoactivas representa una problemática compleja vivida en las sociedades contemporáneas. Así, la finalidad de esta investigación fue analizar la percepción de los usuarios sobre la atención ofrecida en el Centro de Atención Psicosocial de Alcohol y Drogas. La metodología empleada fue el Discurso del Sujeto Colectivo. Fueron entrevistados diez usuarios acompañados por el servicio, ubicado en Salvador-BA, Brasil. Entre los usuarios, hay un reconocimiento sobre el cuidado que se ofrece como humanizado y se considera que la estrategia de tratamiento adoptado tiene un impacto en el consumo y la reducción de los daños causados por el consumo abusivo de drogas.

Descriptores: Acogimiento; Salud Mental; Consumidores de Drogas.


 

 

Introdução

O consumo de álcool e outras drogas constituem-se em complexa problemática nas sociedades contemporâneas. Sabe-se que, historicamente, o uso de drogas tem marcado a relação existente entre os seres humanos, estando presente em diferentes contextos, com objetivos e motivações diversas, como remédio ou como veneno, de forma divina ou demonizada. Cerca de 10% das populações dos centros urbanos de todo o mundo, independente da idade, sexo, nível de instrução e poder aquisitivo, consomem abusivamente substâncias psicoativas(1).

No Brasil, tornou-se imprescindível a criação de uma rede de assistência para desenvolver ações pautadas no princípio da integralidade, objetivando a reabilitação psicossocial dos usuários do uso de álcool e outras drogas. Para tanto, foi formulada a Lei 10.216/01, marco legal da Reforma Psiquiátrica Brasileira(1), com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial, inclusive o de Álcool e Drogas (CAPSad), sendo considerados serviços estratégicos de saúde mental, importante ferramenta nas ações de prevenção e promoção da saúde.

Esses dispositivos devem adotar como referência a lógica da redução de danos, a qual se caracteriza como estratégia de saúde pública e de autocuidado, imprescindíveis para diminuição da vulnerabilidade a situações de risco, que visa reduzir os agravos causados pelo uso abusivo de álcool e outras drogas, sem a preconização imperativa da abstinência.

A complexidade dos diversos fatores envolvidos no cuidado aos usuários, que fazem uso e abuso de substâncias psicoativas, tornou-se mais concreta para a autora, a partir de uma vivência, enquanto residente na área de Saúde Mental do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). O campo de estágio e trabalho foi o CAPSad, localizado na cidade de Salvador, Bahia, o qual permitiu a aproximação ao cotidiano dos usuários desse serviço. Partindo desse pressuposto, suscitou o questionamento: o que pensam os usuários sobre a assistência que recebem no CAPSad?

Buscou-se, com este trabalho, analisar as percepções de usuários acerca do cuidado ofertado no CAPSad, localizado na cidade de Salvador, Bahia. Para tanto, foi preciso conhecer o significado das atividades ofertadas pelo CAPSad, identificar quais os recursos utilizados no CAPSad que mais emergem na fala dos usuários, que são atendidos no serviço, e identificar quais os limites e os alcances do cuidado ofertado.

 

Métodos da pesquisa

Optou-se pelo discurso do sujeito coletivo (DSC) como abordagem metodológica para orientar a pesquisa, porque permite correlações do discurso individual com o da coletividade. O DSC trata-se de um eu que, ao mesmo tempo em que sinaliza a presença de um sujeito individual do discurso, expressa uma referência coletiva, na medida em que fala pela ou em nome de uma coletividade(2). O modelo metodológico do DSC é reunião, num só discurso-síntese, de vários discursos individuais emitidos como resposta a uma mesma questão de pesquisa, por sujeito social institucionalmente equivalente, ou que fazem parte de uma mesma cultura organizacional e de um grupo social homogêneo, na medida em que o indivíduo que faz parte desse grupo ocupa a mesma, ou posições outras, num dado campo social(2).

O campo empírico da pesquisa foi o CAPSad, situado no Distrito Sanitário Cabula Beiru, Salvador, BA. Foram selecionados 10 usuários que estavam sendo acompanhados no CAPSad. Consideraram-se como critérios de inclusão: serem maiores de 18 anos, estarem em tratamento no período mínimo de três meses, apresentando condições físicas e psíquicas consoantes à condição de decidir sobre a aceitação e não aceitação em participar do estudo, história de inserção nas diferentes modalidades de assistência - semi-intensiva e intensiva - critério esse que possibilita melhor percepção sobre o cuidado por estarem por maior período em contato com o serviço, bem como a saturação das informações.

A pesquisa atendeu aquilo que preconiza a Resolução nº196/96 do Conselho Nacional de Saúde(3), que regulamenta os aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, e foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Santa Cruz - Uesc, Parecer Consubstanciado 315/09.

Para coleta de dados, o instrumento utilizado foi a entrevista semiestruturada, que possui a vantagem de permitir diálogo mais profundo e rico, apresentando os fatos de forma mais próxima à sua complexidade. A identificação dos entrevistados foi mantida em sigilo, sendo que todos que aceitaram participar assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. As entrevistas foram realizadas no próprio serviço, pela autora, sendo realizadas em um único encontro, com duração média de sessenta minutos cada. Cada entrevista foi gravada em áudio e, posteriormente, transcrita.

Para a análise dos dados utilizou-se a metodologia do DSC, onde se trabalham algumas figuras metodológicas: as expressões chave, que se constituem de pedaços, trechos ou transcrições literais do discurso, sublinhadas pelo pesquisador que revelam a essência do depoimento; as ideias centrais, que elucidam o conteúdo das expressões chave(2), e a construção dos discursos dos sujeitos coletivos, a partir dos discursos individuais semelhantes ou complementares coletados.

 

Resultados dos discursos coletivos

Esta pesquisa tem raízes num processo de investigação que foi realizado durante nove meses, e vêm sendo tecidas a partir de infindáveis escutas, leituras e mais leituras e indagações sobre a percepção do usuário do CAPSad e os alcances e limites das práticas desse serviço, trazendo, nas entrevistas, as imagens e memórias, retratadas nos discursos em um lugar comum a todos. Aqui se apresentam sete discursos compostos de expressões chaves e ideias centrais, fruto de imagens e memórias que foram analisadas.

1. Discurso dos usuários acerca do acolhimento, relação de reconhecimento, afeto, apoio e seu impacto

Ideia central - o acolhimento como uma dádiva, um momento de escuta, de recepção, respeito, cuidado humanizado e a eficácia dessa ação na redução do uso de substância psicoativa. ...Aqui eu tenho apoio, apoio humano. Os profissionais que tem aqui, a maioria, todos, tem uma postura muito humana... Essas pessoas são abraçadas aqui, são aceitas, acolhidas... quando eu chegar lá fora eu também vou botar em prática o amor que eu tenho aqui... Eu acho que se fosse fazer uma bandeira aqui eu fazia: CAPS - amor, carinho e afeto... Sou bem atendido na enfermaria, sou bem atendido por vocês, técnicas, eu digo graças a Deus, porque eu tenho gente pra me apoiar, então eu acho ótimo... Graças a Deus o CAPS é com qualidade, pô, estou me sentindo um ser humano agora.... Eu acho que é o amor que vocês tratam a gente, o respeito, o carinho, acho que é o respeito que vocês dão à gente. Me traz autoestima, é você dizer, pô gente, quer ser um ser humano, mude, e com jeitinho especial... Depois você vai tendo confiança nos profissionais, vai vendo a amizade que eles têm, o carinho, começa a confiar mesmo, aí você começa a sentir efeito em você mesmo, a diminuição do uso da substância, você vai percebendo que vai desenvolvendo estratégia pra não se envolver mais, a ter recaídas, e isso tudo com a ajuda dos profissionais...

O serviço de saúde assume sua função precípua, a de acolher, escutar e dar uma resposta positiva, capaz de resolver os problemas, devem ser dados por parâmetros humanitários, de solidariedade e cidadania(4). É a possibilidade de criar vínculos que implicam em se ter relações tão próximas e tão claras, através das quais os profissionais da saúde se sensibilizem com todo o sofrimento daquele outro, sentindo-se responsável pela vida, possibilitando intervenção nem burocrática e nem impessoal(5).

O discurso do coletivo reflete acerca do acolhimento de forma vigorosa, estando presente no encontro, na conversa, na atitude do profissional que busca discretamente reconhecer, para além das demandas explícitas, as necessidades dos sujeitos que buscam os serviços como um espaço para construção do sujeito focada na sua autonomia. Atitude pautada no respeito à diferença; ética para fornecer melhor beneficência, buscando-se respeitar o potencial de autonomia do usuário; de empatia ao sofrimento vivenciado por ele; de capacidade de acolhê-lo em seu sofrimento. O acolhimento é ação que valoriza a democratização da gestão do cuidado pela participação dos usuários nas decisões sobre a saúde que se deseja obter. Essa forma de cuidado favorece a construção do vínculo, bem como possibilita a responsabilização e o compromisso no tratamento(5).

2. Discurso acerca da corresponsabilidade dos usuários no tratamento

Ideia central - para o serviço ser eficaz é necessário a corresponsabilização, além de que, para sustentar o tratamento de álcool e outras drogas, é preciso ter força de vontade, esforço e atitude. ... Atitude. A partir do momento que nós tomamos a atitude, nós conseguimos ter força pra lutar contra o vício... Agora depende muito de você. Você tem que ser disciplinado, tem que seguir as regras que eles colocam, porque senão o tratamento não vai pra lugar nenhum, né? A pessoa tem que se esforçar pra se manter estável... Aqui no CAPS é tudo ótimo, mas muitos não presta atenção, aí digo pela minha parte, porque não adianta a pessoa ficar participando de um centro, sendo que trabalha com redução de danos, tem que ter a força de vontade. Você se esforce e depende de você, porque não adianta os profissionais estarem aqui, como sempre estão, apoiando os usuários e tudo, e muitas das vezes, eles não levam a sério, muitos saem por aí pra fazer o uso de drogas e tudo, sem prestar atenção no tratamento... É ótimo aqui, mas depende dos próprios usuários se esforçarem...

A corresponsabilização é uma das diretrizes no serviço especializado como o CAPS, o que é muito evidente no discurso dos usuários. Não basta apenas os profissionais passarem informação nas oficinas, nos atendimentos, oferecerem apoio, é preciso que os próprios usuários se dediquem e que tenham clareza do que consiste o tratamento. Essa corresponsibilização se configura, através das necessidades representadas pela conquista de controle de sofrimento e/ou de produção da saúde, que se faz presente no encontro sustentado nas relações de escutas e responsabilizações, e que é articulado com a constituição dos vínculos e dos compromissos dos projetos de intervenções e de cooperação.

O discurso do coletivo reflete que o compartilhamento de responsabilidades deve ter a participação dos usuários de álcool e outras drogas, na medida em que devem ser implicados como responsáveis por suas próprias escolhas. Esse compartilhamento de responsabilidades é uma maneira de se manter relação de cuidado, é interação entre dois ou mais sujeitos, visando o alívio de sofrimento ou o alcance de bem-estar, sempre mediado por saberes, especificamente, voltados para essa finalidade(6).

3. Discurso dos usuários acerca do tratamento singular do CAPSad

Ideia central - a saúde tratada respeitando as relações de raça, religião e classe, não apenas de usuários de drogas, mas de suas necessidades específicas. ...O tratamento que as pessoas têm com a gente. Trata todo mundo de igual pra igual. Isso é muito bom, porque tem gente que só porque a pessoa tem um problema, já trata diferente, né, e aqui não. Aqui eu não vejo isso. Aqui todo mundo me trata bem... Não há ninguém melhor que outros aqui, não há pessoas mais queridas que outro aqui... Eles são acessível a todo mundo, entendeu, não existe diferença de nível social, cultural, entendeu, eles têm uma estratégia feita pro tratamento... É um centro que tem total atenção ao tratamento de um ser humano, não é só do tratamento do psique desse ser humano prejudicado devido ao uso das drogas, mas o tratamento do ser humano como um todo...

A voz dos usuários remete à natureza do cuidado, que o tratamento é visto como a construção de oportunidades de encontros capazes de favorecer intersubjetividades ricas e plurais que engendram, mutuamente, o mundo e o sujeito. Pode-se afirmar que é um tratamento que extrapola o procedimento técnico simplificado e passa a ser uma ação integral, que tem significados, sentidos, voltados para compreensão de saúde como o direito de ser e pensar(7), é ter cuidado com as diferenças dos e entre sujeitos apresentados nos relatos do discurso coletivo.

Segundo o princípio da equidade, os "serviços de saúde devem considerar que em cada população existem grupos que vivem de forma diferente, que cada grupo ou classe social ou região tem seus problemas específicos, têm diferenças no modo de viver, de adoecer e de ter oportunidades de satisfazer suas necessidades de vida"(8). Assim, o CAPSad deve saber quais são as diferenças dos grupos da população e trabalhar para cada necessidade. Os relatos dos usuários sinalizam a respeito da atenção integral e da integralidade no cuidado, devendo o tratamento fundamentar-se nos aspectos biológicos, psíquicos e sociais, sendo capaz de responder às particularidades do indivíduo, do grupo, considerando sua história, sua cultura e sua vida cotidiana.

4. Discurso dos usuários acerca dos objetivos e diversidade das oficinas como estratégias do tratamento

Ideia central - as oficinas são espaços de diálogo e discussão sobre o enfrentamento diário para reduzir danos, além de ampliar o conhecimento acerca do uso das drogas e consequentes danos. ... As oficinas orientam, você vê que a experiência de um que é pior que a sua, você vê a experiência de outro que é melhor que a sua, entendeu, e tudo isso você vai guardando, você vai refletindo, você vai juntando as peças, os quebra-cabeças. O objetivo principal é a perda de danos. A perda de danos é o carro-chefe do CAPS. Porque geralmente os usuários têm muitas perdas, tanto emocional, quanto material, quanto familiar, quanto social também, então perda de danos é o carro-chefe de qualquer oficina daqui. Agora, cada oficina tem seu objetivo. Um é mostrar a concentração, no caso o origami, tem a oficina de jogos, tem a oficina de futebol, esportes, tem oficina só de álcool, tem oficina de todas as drogas, tem oficina só de drogas, tipo, crack, cocaína, essas mais pesadas que o álcool... É muito bom. Porque pelo menos as palestras são boas, principalmente a de redução de danos... As oficinas são boas porque são sobre tudo... sobre doenças sexualmente transmissíveis, sobre camisinha, camisinha feminina... redução de danos... E o tratamento é as oficinas, pra tirar sua mente das drogas e te dar novos hábitos, novas opções...

Uma das atividades mais marcantes no discurso são as oficinas, que possibilitam novas formas de ser - escutar e ser escutado, dar conselhos, mostrar estratégias adotadas por cada usuário, falar de suas melhoras, fazer suas próprias construções, o que vai garantindo confiança em si que transcende o serviço e passa a propiciar existência mais ativa. Além disso, as oficinas têm a função de estabelecer relação de pertencimento a um determinado grupo, bem como relação de cuidado e valorização da contribuição de todos no processo de trabalho.

O discurso demonstra que as atividades do CAPS são complexas, pois contempla a pluralidade e, simultaneamente, a singularidade que o constitui, colocando-o como espaço de produção de novas práticas sociais para lidar com o sofrimento psíquico de modo diferente da tradicional, caracterizado pelo desejo de "fazer diferente". As oficinas são consideradas espaços de criação, expressão, transformação, humanização, experimentação, socialização e convivência(9). É possível perceber, através do discurso do sujeito coletivo, que as oficinas caracterizam-se como propulsoras de mudanças subjetivas, que produzem efeitos narrativos determinados, embora imprevisíveis. Esses dispositivos são "máquinas de fazer ver e de fazer falar (10)".

5. Discurso dos usuários sobre a oficina redução de danos enquanto tratamento

Ideia central - a redução de danos como uma estratégia do CAPS que tem impacto no consumo, bem como na redução de agravos causados pelo uso abusivo de álcool e outras drogas, sem a preconização imperativa da abstinência. ...Redução de danos é pra pessoa diminuir mais, né, de beber, de usar a droga, aquele tempo que a pessoa fica aqui dentro mesmo é uma redução de danos, né, tá aqui dentro, não tá lá na rua, eu acho que é isso... Traz resultados, porque se eu não tivesse aqui eu tava lá fora fazendo o quê? Tava bebendo... Reduzir danos é massa... e redução de danos não é só isso, é você prestar atenção na sua própria saúde... se eu soubesse que redução de danos era assim, eu já tava aqui há muito tempo. Eu vou reduzir danos, dano financeiro, emocional, todas as áreas... esse critério de Redução de Danos é a única maneira de tratar um viciado em drogas... Agora, o que eu acho legal o tratamento aqui, é que eles não obrigam você parar, entendeu, como o AA. Eles preparam você pra você diminuir e ter controle consciente...

Os discursos trazem o reconhecimento de que, para o serviço, o princípio fundamental que o orienta é o respeito à liberdade de escolha, à medida que os estudos e a experiência dos serviços demonstram que muitos usuários, por vezes, não conseguem ou não querem deixar de usar drogas e, mesmo assim, precisam ter os riscos decorrentes do seu uso minimizados. É indefectível que a abstinência não pode ser o único objetivo a ser alcançado nos serviços de saúde oferecidos aos usuários de drogas, daí a oficina de redução de danos. A redução constitui um conjunto de medidas de saúde pública voltadas a minimizar as consequências adversas do uso de drogas. A lógica da redução de danos "baseia-se nos princípios de tolerância (aceita a escolha do outro em continuar usando drogas), solidariedade (estabelece uma relação de ajuda entre iguais morais) e confiança (acredita que o usuário seja capaz de cuidar de si)(11)". Essa definição retrata os discursos coletivos por trazer à tona uma interlocução franca e respeitosa com os usuários, possibilitando que eles tenham autonomia para tomar decisões referentes à forma de uso, no lidar diário de suas dificuldades, e em relação como irão nortear seu tratamento.

A abordagem da redução de danos põe em ação estratégias de autocuidado imprescindíveis para diminuição de vulnerabilidade, além de ser apontada como forma de intervenção em saúde pública que remete à promoção da saúde, pois possibilita que indivíduos e coletivos aumentem o controle sobre os determinantes da saúde, visando, dessa maneira, o sentimento de maior controle sobre a própria vida.

6. Discurso dos usuários acerca das parcerias estabelecidas pelo CAPS

Ideia central - os encaminhamentos para outras instituições de saúde se enquadram no princípio da integralidade, cuidando do indivíduo de forma ampliada. ... Entrei e fui recebida pela Assistente Social de lá que disse que eu pertencia ao CAPS Álcool e Drogas - Pernambués e fez o meu encaminhamento para aqui... E a princípio, fui muito bem recebido, certo, começou o tratamento, já fiz exames médicos, né, exames clínicos, aqui o CAPS eles têm convênio com a clínica de Pernambués, eles levam a gente, né, então a assistência aqui é muito boa... Digamos que você tenha uma gripe, ou um problema neurológico, essa central de atendimento aqui - o CAPS, tem especialistas para detectar e para encaminhar você para tratamento, levar, buscar e fornecer medicação... Não pega fila, a Kombi vai e leva, traz, é o maior carinho, o motorista dá risada junto com a gente. Poxa, aqui é demais, aqui é maravilhoso. O CAPS é um lugar dado por Deus...

Nos discursos coletivos identificou-se algo que é caro na atenção à saúde que é a forma de cuidar. O acompanhamento acontece a usuários por uma equipe multidisciplinar, que permite troca de práticas e saberes diversos, visando promover cuidado amplo e integral. A integralidade e a acessibilidade são dois princípios importantes do SUS, porque apresentam a dimensão de ética em cuidados que deve se fazer representar nas ações desenvolvidas pelas pessoas e serviços que constroem uma rede de atenção integral(12).

Assim, as parcerias estabelecidas funcionam dentro da concepção de clínica ampliada, partindo do princípio que trabalha com a intervenção tanto no plano subjetivo como na rede de relações, nas quais os sujeitos estão envolvidos - família, trabalho, lazer, dentre outras relações. Percebe-se, nos discursos dos usuários, que essas parcerias possibilitam, ainda, que se crie um conjunto de intervenções baseadas nas demandas dos mesmos. Esse tipo de intervenção nas diversas dimensões da vida, ganha um contorno todo especial e potente de sentido e significado para a clínica com sujeitos. Ficam mais perceptíveis as instituições que transcendem a vida do sujeito, abrangendo, sobretudo, sua família, seu papel social e sua cultura.

7. Discurso dos usuários acerca do CAPS como lugar que deveria disciplinar e estabelecer normas

Ideia central - o CAPS, por ser uma instituição de saúde e visar o tratamento, é visto como lugar de proteção que não atribui limites e que deveria assumir esse lugar. ...É o seguinte: no caso aqui que eu falo, não é o caso do tratamento em si, é a respeito dos indivíduos que são tratados no centro, no caso um cidadão que não se controla, e que tiverem fazendo uso, vindo pra cá, seria bom como acontece, serem advertidos, até tomar suspensão, se for o caso, a pessoa deveria tomar uma advertência, uma punição, nem sempre acontece da pessoa ser pego usando, com cheiro de álcool, ou com aquele fedor do capim, como diz o público da massa, se é um tratamento, porque vem fazer o uso? Porque muitos tiram pra puder fazer o uso aqui, porque sai por aí e quando pensa que não, já chega travado... Botar ordem na direção, conferir a bolsa, a mochila de alguns... Cobrar mais da gente. Determinar mesmo. Junta o útil ao agradável. Quinze dias faltou, exclui, porque quem quer vem mesmo. Se não quer, não vem, entendeu?...

As normas são percebidas como normais e necessárias pelos usuários, entretanto, no discurso coletivo fica evidente que a cobrança pelo seu cumprimento deve ser mais rigorosa quando relacionada à assiduidade e à implicação no tratamento, até mesmo como forma de possibilitar a convivência coletiva. Provavelmente essa exigência do cumprimento das normas esteja marcada historicamente nas instituições de saúde mental, forma essa utilizada para manter a ordem e a disciplina. Segundo o discurso coletivo, constitui-se indisciplina situações relacionadas - ao tempo (atrasos, ausências, interrupção das tarefas), às atividades (desatenção, negligência, falta de zelo), à maneira de ser (grosseria, desobediência), aos discursos (insolência, tagarelice), ao corpo (atitudes "incorretas", gestos indevidos), à sexualidade (imodéstia, indecência)(13), cogita-se, também, que essas normas sejam utilizadas a título de punição. Contudo, não se pode esquecer que a disciplina "fabrica" indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumento de seu exercício.

 

Discussão: os sentidos dos discursos

Os discursos produzem sentidos na medida em que os sujeitos se posicionam nas relações que estabelecem com o cotidiano do CAPSad e se presentificam, por meio do discurso. A interconexão dos discursos do sujeito coletivo está no eixo de construção de narrativas que criam elos entre eventos vividos e sentidos, verdadeiros diálogos, nos quais há o reconhecimento acerca do cuidado ofertado no CAPSad como humanizado. É como se se confirmasse que a humanização pode ter incidência sobre a lógica do sistema de organização das práticas de saúde e que trazem impacto para a eficácia da ação de redução do uso de álcool e outras drogas.

Na sociedade, o usuário de drogas ou, simplesmente, a categoria drogado, compreende uma acusação moral e médica, na qual o aspecto de doença é dado de antemão(14). Essa concepção orienta as práticas que serão tomadas como oficiais - exclusão daqueles que não se mostram adequados e a surpresa dos usuários diante da possibilidade de novos modos de cuidado, baseados na produção de vida e subjetividades, corresponsabilização, sustentada nas relações de escutas, a partir dos vínculos e dos compromissos nos projetos de intervenções.

O sentido do cuidar do usuário aparece como importante fator de efetivação da assistência humanizada, os discursos fazem referência à oficina de redução de danos como estratégia de tratamento adotada pelo CAPS que tem maior impacto no consumo, bem como na redução de agravos causados pelo uso abusivo de substâncias psicoativas, sem a preconização imperativa da abstinência. Essa estratégia de tratamento possibilita que os usuários tenham autonomia para tomar decisões referentes à sua forma de uso.

A redução de danos substitui a repressão pura e simples ao uso de substâncias psicoativas, compondo um conjunto de estratégias para a inclusão social do usuário de drogas. A redução de danos está pautada em cinco princípios básicos: 1) é uma alternativa de saúde pública para os modelos moral, criminal e de doença; 2) reconhece a abstinência como resultado ideal, mas aceita alternativas que reduzam os danos; 3) surgiu principalmente como abordagem "ascendente", baseada na defesa do dependente, em vez de uma política "descendente", promovida pelos formuladores de políticas de drogas; 4) acesso a serviços de baixa exigência como alternativa para abordagens tradicionais de alta exigência e 5) baseia-se nos princípios do pragmatismo empático versus idealismo moralista(15).

Os encaminhamentos para outras instituições de saúde se enquadram no princípio da integralidade, cuidando do indivíduo de forma ampliada. É a integralidade pensada em rede, como objeto de novas práticas da equipe de saúde, é a compreensão de que a integralidade que acontece a partir do CAPSad não se dá nunca em um lugar só, porque a melhoria das condições de vida e saúde é tarefa de esforço intersetorial(16). Assim, pode-se verificar nos discursos que as parcerias com outras instituições permitem que se crie um conjunto de intervenções baseadas nas demandas dos usuários.

Apesar de os discursos fazerem referência ao cuidado humanizado oferecido no CAPSad, o coletivo pontua, como um limite do serviço, a necessidade de mais disciplina e normas, para manter a ordem, principalmente quando relacionada à assiduidade e à implicação no tratamento, até mesmo como uma forma de possibilitar a convivência coletiva. O poder da norma e da disciplina prescinde as diferenças individuais induzindo que o serviço funcione dentro de um sistema homogêneo.

Os discursos não deixam dúvidas de que a atenção e a disponibilidade dos profissionais de saúde são fatores determinantes para a qualidade dos serviços, o que possibilita tecer, junto com o usuário, novas redes sociais e de saúde, para os quais os investimentos passam a ter sentido. Dessa forma, o indivíduo motivado para a assistência pode rever seus conceitos e planejar mudanças que o ajudem a estabelecer outras prioridades em sua vida que não seja o consumo de drogas.

 

Considerações finais

A intenção era desenvolver uma pesquisa que pudesse coletar informações sobre as atividades e características do CAPSad, para subsidiar tomadas de decisões futuras na atenção ao usuário de álcool e outras drogas. A proposta metodológica foi de fundamental importância para esta investigação, pois, por essa via, permitiu compreender como os usuários percebem o serviço.

Com base nos discursos coletivos, acredita ser necessário que o CAPSad aprofunde discussões acerca da real missão dos serviços para com a população de usuários e deve reconhecer as dificuldades e necessidades desse grupo. É nesse palco de contradições e sobre esse fio chamado vida que os usuários vão equilibrando, passo a passo, suas trajetórias, fontes de alimentação para fazer frente aos inúmeros desafios de um mundo pouco protagonizado por eles. É nessa corda bamba do uso das drogas, que eles mostram o encanto pela vida e pela liberdade, e também fazem vislumbrar a esperança de que é possível encontrar outros lugares cada vez mais dignos e condizentes à complexidade do uso de drogas.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Josenaide Engrácia dos Santos
Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Ciências da Vida
Rua Silveira Martins, 2555
Bairro: Cabula
CEP: 41195-001, Salvador, BA, Brasil
E-mail: josenaidepsi@gmail.com

Recebido em: 12/6/2010
Aprovado em: 19/11/2010