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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

On-line version ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.8 no.2 Ribeirão Preto Aug. 2012

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Relação de ajuda com paciente psiquiátrico: além do paradigma médico

 

Relación de ayuda con paciente psiquiátrico: además del paradigma médico

 

 

Renata Marques de OliveiraI; Antônia Regina Ferreira FuregatoII

IMestranda, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IIPhD, Professor Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil

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RESUMO

Estudo de caso exploratório-descritivo com o objetivo de analisar interação não diretiva da enfermeira com uma portadora de esquizofrenia. A interação foi gravada, transcrita e submetida à análise temática. Foram identificados cinco temas, os quais foram discutidos com base na literatura científica sobre relacionamento interpessoal e relação de ajuda não diretiva. Os resultados permitiram identificar a importância da escuta, do interesse genuíno e da disponibilidade do profissional que, ao ser reconhecida pela paciente, favorece a identificação e a abordagem de suas verdadeiras necessidades. O estabelecimento do vínculo se mostrou capaz de estimular a confiança do paciente no profissional.

Descritores: Relações Interpessoais; Esquizofrenia; Enfermagem Psiquiátrica.


RESUMEN

Estudio de caso exploratorio descriptivo con el objetivo de analizar una interacción no directiva de la enfermera con una portadora de esquizofrenia. La interacción fue grabada, transcrita y sometida a lo análisis temática. Fueron identificados cinco temas, quiénes fueron discutidos con base en la literatura científica sobre relación interpersonal y relación de ayuda no directiva. Los resultados permitieron identificar la importancia de la escucha, del interés genuino y de la disponibilidad del profesional que, cuando reconocidos por el paciente favorecen la identificación y el abordaje de sus verdaderas necesidades. El establecimiento del vínculo se mostró capaz de estimular la confianza del paciente en el profesional.

Descriptores: Relaciones Interpersonales; Esquizofrenia; Enfermería Psiquiátrica.


 

 

Introdução

O transtorno mental é condição associada a intenso sofrimento para seu portador e familiares. O sofrimento é decorrente não apenas das alterações psíquicas vivenciadas, mas, também, dos prejuízos nas relações pessoais, na vida social e afetiva. Em decorrência das mudanças ocorridas, o indivíduo passa a perceber que o transtorno é repleto de angústias e limitações. Portanto, o sofrimento é reconhecido como um processo subjetivo, social e cultural que transpassa a dimensão orgânica(1-3).

Desse modo, entende-se que a abordagem com os portadores de transtorno mental deve ser mais ampla que a abordagem puramente biológica, defendida pelo paradigma médico e adotada pelo modelo manicomial. Nesse paradigma em que a relação profissional/paciente é verticalizada, o indivíduo vivencia o transtorno de forma passiva, sem assumir sua autonomia no processo de adoecimento. Constitui-se em uma visão reducionista e estritamente biológica, assumindo a doença como foco de intervenção, sendo uma prática opressiva e desumanizada(4-5).

O paradigma biopsicossocial, por sua vez, é mais complexo na medida em que necessita de um olhar multiprofissional para o transtorno mental, pois reconhece a subjetividade e o sentido atribuído ao sofrimento pelo seu portador, considerando a relação profissional/paciente horizontalizada, com reconhecimento das potencialidades e corresponsabilização do indivíduo no seu plano terapêutico, sendo, portanto, sujeito de sua história(6-9) .

O relacionamento profissional/paciente é essencial no cuidado de enfermagem na reabilitação biopsicossocial do portador de transtorno mental. A relação terapêutica ajuda o portador de transtorno mental a expressar melhor seus sentimentos e a compreender a experiência vivenciada, na medida em que reproduz as experiências positivas da relação profissional/paciente nas demais relações interpessoais(8,10-13).

A preocupação do profissional no processo de conhecimento do paciente e da realidade vivenciada é compreender o que ele lhe comunica, identificar suas necessidades, apoiar suas decisões e orientar quando necessário. O objetivo maior de todas essas ações é ajudar a pessoa para que ela mesma encontre recursos para superar suas limitações e dificuldades(8,10-14).

A abordagem centrada na pessoa é um modo de cuidar que transcende o paradigma tradicional da psiquiatria e se concretiza por meio da relação de ajuda não diretiva. É reconhecida como uma filosofia de vida que acredita no potencial de crescimento, recuperação e superação do ser humano, portanto, não se limitando ao ambiente da terapia(8,15-16).

Nesse tipo de abordagem, não existe espaço para atitudes paternalistas por parte do profissional. Reconhece-se que os mecanismos mais eficazes para ajudar o outro não se encontram nas condutas profissionais, mas no próprio indivíduo, sendo o profissional apenas um facilitador desse processo de descoberta dessas potencialidades(8,15).

Existe grande resistência por parte dos profissionais e dos serviços de atenção à saúde em se adotar a abordagem centrada na pessoa, pois ela contraria e desafia o tradicional paradigma médico da psiquiatria, caracterizado pelo distanciamento profissional, pelas atitudes julgadoras, pelo estabelecimento de rótulos diagnósticos e pela linguagem puramente tecnicista. Portanto, é necessário que estudos mostrem os efeitos terapêuticos da relação de ajuda, fundamentada na abordagem humanista, centrada na pessoa sob os cuidados do profissional enfermeiro.

Desse modo, este estudo teve como objetivo analisar uma interação não diretiva da enfermeira com uma portadora de esquizofrenia.

 

Metodologia

Este trabalho foi desenvolvido no decorrer da disciplina "Relacionamento interpessoal enfermeiro/paciente", ministrada no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP/USP). É parte integrante da pesquisa intitulada "Pesquisa e ensino das relações interpessoais na enfermagem", com autorização do Comitê de Ética da EERP/USP, Protocolo nº0151/01.

Para alcançar os objetivos propostos, foi utilizada a pesquisa qualitativa na vertente estudo de caso exploratório-descritivo. O estudo de caso é uma modalidade de pesquisa que se propõe a pesquisar um fenômeno complexo com número limitado de indivíduos ou grupos.

A partir do estudo de caso, são reconhecidas as duas abordagens metodológicas: a pesquisa exploratória e a descritiva. A pesquisa exploratória considera a prévia inserção do pesquisador no campo onde a pesquisa será realizada e seu contato com o fenômeno a ser estudado. Esse permite levantar hipóteses e reflexões.

Na pesquisa descritiva, o pesquisador procura compreender o fenômeno estudado e, com base nessa compreensão, descrever esse fenômeno em toda a sua nuance e complexidade, bem como os fatores a ele associados. Portanto, um estudo de caso exploratório-descritivo é um estudo em que, com base na exploração de um determinado fenômeno, a partir da experiência do pesquisador no campo da pesquisa, procura-se descrever de modo compreensível uma realidade delimitada(17-18).

O instrumento desta pesquisa foi uma interação não diretiva, com duração de aproximadamente 40 minutos, no domicílio de uma paciente portadora de esquizofrenia, localizado na área de abrangência de uma Unidade de Saúde da Família (USF), do interior do Estado de São Paulo. A paciente foi escolhida para a realização da interação, pois já tinha vínculo pré-estabelecido com a enfermeira, que a havia acompanhado por período de quatro meses, durante um estágio curricular do curso de graduação.

Primeiramente foram explicados à paciente o objetivo da interação e os aspectos éticos referentes à sua participação. Após compreensão e esclarecimento de dúvidas, foram assinadas duas vias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A interação foi gravada, transcrita na íntegra, com identificação das falas da enfermeira com a letra "E" e as falas da paciente com a letra "P", e, posteriormente, discutida na disciplina com as docentes e os alunos, tendo por base o conteúdo teórico da não diretividade da terapia centrada na pessoa.

A interação foi realizada na sala da casa da paciente, enfermeira e paciente sentadas frente a frente com distância não superior a um metro, de modo a se evitar o estabelecimento de relação assimétrica pelo empoderamento da figura da profissional.

A paciente é dona M, 59 anos, sexo feminino, divorciada, mãe de quatro filhos, residente no município de Marília há três anos. Reside atualmente em dois cômodos alugados. Possui relacionamento distante com seus familiares, que residem em outra cidade. Diagnósticos médicos: calculose urinária, colelitíase sem cirurgia, diabetes mellitus, esquizofrenia, hipertensão, hipotireoidismo, retardo mental leve e varizes dos membros inferiores. Faz uso das seguintes medicações: atenolol 50mg (1-1-0), castanha-da-índia 280mg (1-0-1), enalapril 20mg (1-1-1), haloperidol 10 gotas cedo e noite, omeprazol 20mg (1-0-0), prometazina 25mg (0-0-2) e puran 25mg (1-0-0).

Dona M é usuária assídua da USF. Frequenta a unidade diariamente, no período de acolhimento e, sempre que possível, no horário reservado para consultas agendadas. Mostra-se sempre poliqueixosa, requerendo atenção dos profissionais. Como não reside com a família e possui certa limitação para administrar sua própria medicação, a equipe da USF se encarrega de preparar seus medicamentos para uso diário. Dona M tem um vínculo muito forte com os profissionais, possivelmente para suprir a falta de seus familiares.

Para a análise da interação realizada entre a enfermeira e essa paciente, foram selecionados fragmentos do texto, agrupados em unidades temáticas, a partir das quais foram criados diálogos com a literatura científica sobre relacionamento interpessoal e relação de ajuda não diretiva.

 

Resultados

Durante a interação realizada com a paciente dona M, não foi percebido nenhum tipo de inibição ou receio no discurso perante o gravador de voz. No entanto, alguns assuntos considerados importantes pela paciente, como sua insatisfação com a moradia, não puderam ser amplamente discutidos, pois, embora a interação tenha ocorrido em um ambiente mais reservado, houve o receio de que a proprietária da casa adentrasse o recinto. Isso é reconhecido na literatura científica quando se afirma que o local onde as interações ocorrem pode influenciar positiva ou negativamente o desenrolar de uma interação(10).

Ao analisar a interação transcrita foi possível a identificação de cinco temas, os quais abordam o relacionamento profissional/paciente, medicações utilizadas, ansiedade, problemas com a moradia e sofrimento em razão das relações familiares.

Relacionamento profissional/paciente

Foi possível constatar alguns fatores que contribuíram para o desenvolvimento da interação: o vínculo enfermeira/paciente pré-estabelecido, a disponibilidade de tempo e a disponibilidade interna para escutar o outro. Esses fatores contribuíram de tal modo que foi possível abordar algumas experiências e percepções da paciente que, em quatro meses de acompanhamento, não tinham sido abordadas ou não haviam sido devidamente valorizadas.

É importante ressaltar que, embora já tivessem ocorrido interações anteriores com a paciente, cada interação realizada possui características próprias graças à singularidade de cada encontro, o que faz pensar que o relacionamento profissional/paciente não é algo simples e imediato, mas construído gradualmente na medida em que se dá a convivência(10,19).

A paciente referiu sentir-se cuidada pela enfermeira quando a apresentou a uma terceira pessoa que apareceu no decorrer da interação.

P: [...] é a menina do posto que cuidava de mim.

O vínculo que ficou evidente na interação é reconhecido como parte do plano de cuidados, visto que contribui para maior satisfação e adesão do paciente ao serviço de saúde. Normalmente, ele surge desde o primeiro contato, sendo o acolhimento entendido não apenas como alguma atividade de sala de espera, mas, também, como gestos e atitudes. O cuidado não é algo passivo, mas um processo ativo, quando o profissional reconhece no paciente seu direito de ser tratado com dignidade e respeito, valorizando sua autonomia e singularidade(19).

Ao analisar os detalhes da interação enfermeira/paciente, foi possível perceber que o fato de ambas terem tido um contato prévio intenso favoreceu a criação, na paciente, de ideia supervalorizada e de proximidade com a enfermeira, quando a chama utilizando algumas expressões características.

P: [...] Essa noite eu não preguei os olhos, menina!

P: [...] Nem tá certo, menina, ainda vou lá com acompanhante.

P: Quem que não tem, fia?

P: Ô, R do céu! [risos]

Medicações utilizadas

Na interação foi possível perceber alguns assuntos recorrentes utilizados pela paciente, sendo um deles o uso da medicação. É interessante observar que, logo ao início da interação, quando a enfermeira pede para a paciente contar como está, de modo a permitir que ela abordasse algum assunto de maior relevância e significado, segundo sua percepção, a questão da medicação é introduzida de modo a justificar seu estado atual.

E: Dona M, vou pedir para a senhora me contar como está. Faz tempo que não vejo a senhora...

P: Eu tô indo... Eu não tô indo muito bem, R., porque eu tô com insônia! Não consegui o prazolan ainda!

E: O alprazolam?

P: O alprazolam. Uma [médica] torce pra outra, uma empurra pra outra e vai ver a dona M fica sem dormir [fala acelerada].

E: Mas desde aquela época, dona M?...

P: Desde aquele tempo eu tô sem dormir, menina! [fala exaltada] Eu faço chá de capim-santo, ó lá, tem até capim-santo ali, mas não resolve. Eu tenho que tomar um calmante.

Nesse trecho fica evidente que o fato de a enfermeira e a paciente terem tido contatos prévios, ao longo de um acompanhamento de quatro meses, facilitou o início da interação. Chamar o paciente pelo nome desde o início valorizou seu modo de ser único, refletiu na maneira como a paciente se referiu à enfermeira, chamando-a, também, pelo nome, no decorrer de toda a interação.

Quando a paciente introduziu o assunto da medicação, a enfermeira apenas questionou o nome através da técnica da reiteração, o que permitiu que a paciente continuasse sua narração, mostrando a questão que mais a afligia, ou seja, o fato de não estarem prescrevendo a referida medicação.

As técnicas utilizadas pelo profissional durante uma interação não são predeterminadas. Surgem conforme a necessidade do momento, desde que se tenha claro que o objetivo maior é levar o paciente a refletir e a encontrar significado para suas experiências. Não se deve dar respostas prontas. Por meio da reiteração, o profissional apenas chama a atenção do paciente para determinado assunto, sendo que o próprio paciente decide continuar ou não a falar, conforme sua necessidade e vontade(15).

A questão da medicação é percebida como claramente associada à proteção para as relações familiares, mostrando dependência psicológica da medicação.

P: Se ela passasse o alprazolam pra mim eu até ia pra casa do meu filho agora; ficava pelo menos oito dias lá.

Ao longo da interação não foi possível entender completamente a questão da medicação referida pela paciente, pois ora ela se referia à medicação alprazolam e ora à medicação clonazepam. Frente a esse impasse, a enfermeira utilizou a técnica do esclarecimento com o intuito de compreender a mensagem transmitida(10-11,15).

E: Desculpa, dona M, mas deixa eu entender uma coisa... Por que tirou o alprazolam e mudou pra esse remédio [clonazepam]?

P: Porque o alprazolam quem passava pra mim era o doutor J. [...] E já esse aí foi a Dra. S... Não! Foi uma nova que veio no lugar da S. Entendeu? Veio uma doutora aí nova.

E: E aí nunca mais voltou para o outro?

P: Nunca mais voltou pro alprazolam.

E: A senhora não se adaptou com este aqui [clonazepam]?

P: Se eu consegui dormir com esse aqui? Consegui dormir.

Embora a enfermeira tenha se utilizado de algumas perguntas fechadas, o que pode induzir respostas, isso permitiu que ela compreendesse a questão envolvida com a medicação.

E: Agora eu estou começando a entender... A senhora está assim porque está sem o remédio. Faz quanto tempo que a senhora está sem o remédio?

P: 30 dias tô sem o remédio [...] Ai, minha Nossa Senhora! Então, R, se a Dra. S fizesse a receita do alprazolam.

E: Deixa eu explicar uma coisa para a senhora, dona M. O alprazolam, eu não sei o motivo pelo qual não quiseram mais continuar com ele. Para ser sincera com a senhora, eu não sei por quê. Mas, esse clonazepam tem função parecida com o alprazolam. Por que a senhora está ficando ansiosa e não está dormindo? Porque não está tomando.

P: É não tô tomando, não acalma a cabeça.

E: Se a senhora estivesse com o alprazolam e não estivesse tomando, a senhora estaria do mesmo jeito.

P: É?

E: Não adianta ficar só querendo a receita do alprazolam, se a senhora não está tomando esse [clonazepam] direito; não vai resolver mesmo.

Nesse trecho, a enfermeira tenta ajudar a paciente a compreender a necessidade da medicação e o fato de que o clonazepam foi receitado com o intuito de substituir o alprazolam, considerando-se que ambos têm a mesma finalidade. Interessante observar que a confusão que a paciente faz entre essas duas medicações a levou a ficar muito tempo sem a medicação, pois, para os profissionais da USF, não estava claro que quando a paciente solicitava o alprazolam, na realidade ela não estava conseguindo fazer distinção entre as duas medicações.

Ansiedade

Ao longo da interação, foi percebida grande ansiedade na paciente, a qual ficou evidente por meio da comunicação verbal e não verbal.

P: [...] eu tô super assim, sabe... Ansiosa! Fiquei nervosa, pensei que fosse operar e ficar boa logo, né, sem cafifar. Então, e não consegui, não... Ficou pra daqui 30 dias. Falei pra assistente social: marca! "Ah, não, é o médico que mandou".

E: Mas, dona M, esta ansiedade da senhora é por causa dessa cirurgia ou tem mais alguma coisa acontecendo?

P: Não, é devido só à insônia. Eu não consigo dormir e aí eu quero só fazer serviço, trabalhar, eu não posso ficar parada. Eu não sou de ficar encostada porque eu preciso reagir. A doutora falou "que coragem, dona M! Eu nunca vi uma mulher com um espírito assim". Eu falo pra ela: "doutora, a senhora tá me devendo a receitinha do prazolam". E ela fala: "é a outra [médica], é a outra!". E vai me enrolando...

A paciente mostra não ter compreensão a respeito da resistência das médicas em prescrever a medicação solicitada. O fato de ela não fazer parte de seu plano terapêutico, seja por dificuldade dos profissionais em inseri-la no plano de cuidados ou por dificuldade de compreensão e aceitação da conduta por parte da paciente, contribui para aumentar sua ansiedade.

Quando a paciente conta que a cirurgia foi desmarcada por ordem médica e que se sente "enrolada" em relação à não prescrição da medicação, fica evidente sua percepção acerca da hierarquia e do distanciamento da figura do profissional que assume, nesse caso, uma conduta paternalista ao decidir o que acredita ser melhor para a paciente, sem levar em consideração sua autonomia e direito de ter parte no processo de decisão.

Quando questionada a respeito do motivo da ansiedade, a paciente a atribui à insônia; porém, no decorrer da interação, surgem diversas explicações para essa condição.

Ao perceber a ansiedade da paciente durante o relato e seu inconformismo em relação à não prescrição da medicação, a enfermeira procura conter essa ansiedade fazendo perguntas de forma a tentar esclarecer o conteúdo da conversa que, pela paciente, é apresentado de modo confuso.

E: A outra que a senhora fala é a médica do ambulatório, não é?

P: É a da saúde mental.

E: E ela não quer dar o alprazolam?

P: Não quer...

E: E a Dra. S [médica da USF] também não?

P: A Dra. S também não. Fica num empurra pra outra, empurra pra outra e o tempo tá passando.

E: O que a senhora está pensando disso?

P: O que você acha, ô, R?

E: Eu quero saber o que a senhora está pensando... Porque olha só, desde a época que a gente se conhece do posto, nenhuma das médicas queria dar a receita para a senhora...

P: Eu sei lá, R...

E: E a senhora bate na tecla que quer o remédio.

P: [Risos] Eu não sei, R, se elas não quer que eu tomo, talvez vai prejudicar a cabeça que já não anda boa.

Ao ser questionada com o intuito de clarificação do rumo da conversa, a paciente responde aos questionamentos de modo mais compassado, na medida em que é convidada a fazer uma revisão da situação atual. Um momento importante é quando a enfermeira pergunta o que ela está pensando sobre a resistência das médicas em prescrever a medicação, quando, em um primeiro momento, ela devolve a pergunta com o intuito de saber a opinião da enfermeira. Ao retornar a responsabilidade da reflexão para a paciente, ela parece ter um insight da situação, o que somente foi possível depois que sua ansiedade foi contida e ela pôde assumir sua autonomia, ao ter a oportunidade de reflexão acerca da realidade vivenciada.

Problemas com a moradia

Ao longo da interação, a paciente mostrou ter mais confiança na enfermeira, quando surgem assuntos abordados durante o período de acompanhamento anterior.

P: E aqui, R, é dois cômodos, uma cozinha e um quarto... Ali tem um quartão, mas ela [dona da casa] tomou.

E: Eu não sabia que a senhora morava com outra pessoa.

P: Ela é a dona da casa, eu pago 120 nos dois cômodos. Eu tenho minha cama de casal, tá lá em cima do guarda-roupa pra armar aqui tudo certinho. Ela falou: "não fica espaço, M! Não fica espaço!". Ai, menina, então, eu sei que é o sono, o sono tá me prejudicando...

E: A senhora começou a ficar assim depois que ficou sabendo esse negócio da cirurgia?

P: Foi, aí eu não dormia mais, não.

Ao perceber que a paciente introduziu espontaneamente o assunto da moradia, demonstrando insatisfação com a situação, a enfermeira incentivou a continuidade do relato ao verbalizar desconhecimento da situação. No entanto, quando a paciente parece terminar de falar sobre a moradia e se queixa novamente do sono, a enfermeira muda o foco da conversa e pergunta de modo diretivo se a paciente começou a ter dificuldade para dormir depois que ficou sabendo do adiamento da cirurgia, o que a paciente responde confirmando, já que foi realizada uma pergunta indutiva.

Um pouco mais adiante, a paciente reintroduz a questão da moradia.

E: E a senhora fica pensando em que à noite?

P: Não consigo dormir, R, eu passo a noite aqui em claro. Meu Pai do céu! [diminui o tom da fala]. Eu fico pensando em casa pra mudar, entende? Eu fico pensando numa casa pra arrumar, pra ficar mais em dia. Tava tudo pra lá minhas coisas [em outro quarto], até a B [auxiliar de enfermagem da USF] veio aqui e achou minha casa bonitinha. Tava tudo certinho, agora, menina, tá tudo apertado. Não tem como, né...

E: Então, a senhora está pensando em outro lugar?

P: Uma casa maiorzinha, né, ou se não, ir lá ficar um pouco com os filhos. Vamos ver o que eu resolvo.

Parece ter ficado mais claro para a enfermeira a necessidade de a paciente falar sobre a moradia, quando ela, utilizando a técnica da reiteração, favorece a continuidade da fala da paciente e a introdução de um segundo fator de grande importância da vida dela, a sua família.

Sofrimento decorrente das relações familiares

Como a paciente mencionou os filhos ao se queixar da moradia, a enfermeira aproveitou a oportunidade para tentar compreender as relações familiares dessa senhora.

E: Os filhos da senhora moram onde?

P: Moram na fazenda, R. [...] Tenho quatro filhos, o outro mora com o pai, o doentinho. Eu tenho um filho doentinho mental com problema na cabeça.

E: Ele mora com quem?

P: Com o pai... Eu sou separada.

E: A senhora é separada há quanto tempo?

P: 15 anos.

E: Bastante tempo, né, dona M!

Embora a enfermeira tenha tentado incentivar a paciente a continuar falando sobre sua família, a paciente fica reflexiva por um momento, ao pensar no tempo, e parece não conseguir conter a ansiedade gerada, quando acelera a fala e muda o foco da conversa totalmente para a enfermeira.

P: Faz tempo, R, muito! Então... Faz tempo... [acelera a fala]. Então você se formou mesmo?! Eu não tava mais vendo você aí, eu lembrei de você essa semana que eu tive lá. Eu falei: "eu não tô vendo mais aquela branquinha aqui", mas eu esqueci o seu nome, eu tô com a cabeça ruim. E você lembra de mim?...

E: Lembro...

P: Eu reconheci você pelo rostinho, a menina do posto.

Delicadamente, a enfermeira tenta tirar o foco de si e volta para a família da paciente.

E: Mas, dona M, voltando nesta questão dos filhos e pensando em outro lugar pra morar, por que a senhora não mora com seus filhos? O que acontece?

P: Ah, então, R, porque eles moram longe do posto, eles moram retirado [...] E eu tenho que ficar aqui quieta, menina!

É curioso que, embora em um primeiro momento a paciente tenha sugerido a possibilidade de ir morar com seus filhos, quando o assunto é abordado pela enfermeira, parece não conseguir controlar sua ansiedade e desconforto perante a situação, de modo a tentar encerrar o assunto, afirmando que precisa ficar quieta onde está, parecendo pedir para finalizar o assunto.

Ao perceber a resistência da paciente em falar sobre sua família, a enfermeira deixou o assunto, respeitando o limite da paciente, demonstrado pelo seu alto grau de ansiedade e resistência. Ela procurou então introduzir outros assuntos.

P: Ontem eu tentei mudar aquelas planta ali, mas ai meu Deus do céu! Começou a doer de pegar aquelas plantas ali da área.

E: Mudou de lugar?

P: Mudei, coloquei tudo lá fora só pra jogar uma aguinha. Eu gosto de planta, eu morava no sítio e era tudo planta, horta...

Como a paciente fez menção ao passado, a enfermeira aproveitou a oportunidade para tentar reintroduzir o assunto do casamento e parece ficar mais clara a ligação que a paciente faz entre as relações familiares, moradia anterior e moradia atual.

E: Isso na época em que a senhora era casada?

P: Era casada... Vixi, menina! Minha casa era um brinco, era um brinco, os alumínio era um espelho!

E: Tem saudade dessa época?

P: Eu tenho! [responde prontamente] Como! Porque era tudo em dia, casa encerada, oito cômodos, eu cuidava... Eu tenho saudade e como! Quem que não tem, fia? Agora eu tenho que ficar aqui; benza Deus! Aqui é muita coisa [diminui tom da fala]...

E: Mas a senhora teria condições de ir para outro lugar?

P: Eu vou ver se eu acho, né, R, por aqui perto... Aqui apertada não dá pra ficar, não. Eu quero armar minha cama, guardei o colchão lá em cima. Quero armar minha cama, ver se eu consigo dormir. Eu preciso reagir! Poxa, meu marido me abandonou, mas eu preciso reagir, né?

No início, a paciente mostrou-se totalmente resistente ao falar sobre sua família. Como a enfermeira respeitou seu limite e interesse, o assunto voltou a ser tocado de modo sutil pela própria paciente. Dessa vez, quando a enfermeira faz a abordagem, a paciente discorre sobre o motivo da separação, verbalizando seu sofrimento.

E: A senhora ainda tem contato com seu marido?

P: Tem nada! Ele tá com outra e eu não topo mais ele. Nem se ele voltaria pra chamar eu não volto mais pra ele. Eu quero ver o meu filho.

E: O que aconteceu pra vocês se separarem?... Se a senhora não se importar de falar...

P: Não... É porque ele começou a beber e a me judiar. Judiava de mim por isso que eu fiquei com o pensamento assim ruim.

E: Como assim judiava?

P: Ele me agredia! Ele judiava, menina, ele batia. Eu tomei raiva dele. Não gosto mais dele de jeito nenhum.

Fica evidente o sofrimento vivenciado quando a paciente atribui o transtorno mental, referido como "pensamento ruim", às atitudes que o marido teve para com ela no passado. Essa abertura da paciente só foi possível porque a enfermeira soube respeitar o seu tempo para falar sobre o assunto, o que, certamente, aumentou a confiança da paciente na enfermeira. Parece que ela tem um misto de frustração pelo rompimento do casamento com distanciamento da família e um sentimento de luta parar mostrar que é capaz de ficar bem sozinha.

 

Conclusão

Nesta pesquisa foi possível identificar que o estabelecimento do vínculo é capaz de estimular a confiança da paciente, portadora de esquizofrenia. Na relação de ajuda não diretiva, um outro instrumento terapêutico utilizado no cuidado é o próprio enfermeiro e não apenas as medicações e os procedimentos técnicos, amplamente difundidos no paradigma médico.

Observa-se, dessa forma, a humanização do cuidado de enfermagem. Na interação, realizada com a paciente portadora de esquizofrenia, percebeu-se a importância da escuta, do interesse genuíno e da disponibilidade do enfermeiro, cuidados que, sendo reconhecidos pelo paciente, favorecem a identificação e a abordagem das verdadeiras necessidades da pessoa que necessita de ajuda, o que caracteriza o relacionamento terapêutico.

 

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Endereço
Antônia Regina Ferreira Furegato
Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas
Av. Bandeirantes, 3900
Bairro: Monte Alegre
CEP: 14040-902, Ribeirão Preto, SP, Brasil
E-mail: furegato@eerp.usp.br

Recebido em: 30/9/2010
Aprovado em: 28/9/2012