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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.8 no.2 Ribeirão Preto ago. 2012

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Cuidar e ser cuidado: a opinião de acadêmicos de enfermagem sobre um projeto de saúde mental

 

Cuidar y ser cuidado: la opinión de académicos de enfermería sobre un proyecto de salud mental

 

 

Marcelle PaianoI; Beatriz de Carvalho CiaciareII; Maria Angélica Pagliarini WaidmanIII; Lílian Cristina BentoIV; Bruna da CostaV

IDoutoranda, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil
IIEnfermeira, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
IIIPhD, Professor Adjunto, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil
IVEnfermeira
VAluna do curso de graduação em Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil

Endereço

 

 


RESUMO

Objetivou-se apreender a opinião dos acadêmicos de enfermagem que participaram do projeto "Assistência à Saúde Mental do Acadêmico de Enfermagem" sobre a importância desse para a sua formação. O estudo, descritivo, de natureza qualitativa, foi realizado com 42 acadêmicos. Os dados foram apresentados em duas categorias temáticas: falando da saúde mental e compreendendo o outro e a si mesmo a partir das relações interpessoais. Verificou-se que o acadêmico sente-se feliz ao ser cuidado e que nesse conceito de felicidade vem embutida a competência; por isso, pode-se dizer que quem cuida bem de si tem melhores condições de cuidar do próximo.

Descritores: Saúde Mental; Assistência à Saúde; Enfermagem.


RESUMEN

Se objetivó aprehender la opinión de los académicos de enfermería que participaron del proyecto "Asistencia a la Salud Mental del Académico de Enfermería" sobre la importancia de eso para su formación. El estudio, descriptivo de naturaleza cualitativa, fue realizado con 42 académicos. Los datos fueron presentados en dos categorías temáticas: "Hablando de la salud mental" y "Comprendiendo el otro y a sí mismo desde las relaciones interpersonales". Verificamos que el académico se sienta feliz al ser cuidado y que en ese concepto de dicha viene a embutida la capacidad, por eso podemos decir que quien cuida bien de sí tiene mejores condiciones de cuidar del próximo.

Descriptores: Salud Mental; Prestación de Atención de Salud; Enfermería.


 

 

Introdução

A formação de um profissional competente para o exercício da enfermagem tem sido um dos objetivos dos cursos de graduação. Percebe-se que a grande preocupação dos acadêmicos durante o curso está relacionada à sua capacitação técnica; porém, acredita-se que, para uma formação adequada, é igualmente necessário o desenvolvimento de outras habilidades, como a empatia, a comunicação, o relacionamento interpessoal e outras.             

É possível verificar que muitos acadêmicos encontram dificuldades em desenvolver as atividades de cuidado, tanto em relação a si como em relação ao paciente, e que, muitas vezes, essas dificuldades estão ligadas a questões pessoais. Preocupada com essa problemática, em 1998, a Universidade Estadual de Maringá (UEM) desenvolveu um projeto de ensino "Atenção à Saúde Mental do Acadêmico de Enfermagem", que pretendia ofertar ao acadêmico a oportunidade de expressar suas dificuldades, sabendo que serão compreendidos na sua singularidade, evitando, assim, o comprometimento de sua saúde mental.

Segundo se observou no contato com esses acadêmicos, por vezes eles apresentam problemas que comprometem sua saúde mental e, em determinados casos, precisam ser encaminhados para tratamento, enquanto outros conseguem superar tal condição simplesmente participando do projeto.

O foco central deste projeto é o cuidado(1), atividade sobre a qual Leininger, uma estudiosa da enfermagem, ao pesquisar sobre o cuidado, identificou 175 tipos diferentes de cuidado, mostrando que esse conceito varia entre as diferentes culturas. Neste estudo, adotar-se-á o conceito de cuidado que contempla: "Assistir aos outros, ser autêntico(a), envolver-se, estar presente, confortar, preocupar-se, ter consideração, ter compaixão, expressar sentimentos, fazer para e com, tocar, amar, ser paciente, proteger, respeitar, compartilhar, ter habilidade técnica, demonstrar conhecimento, segurança, valorizar o outro, ser responsável, usar o silêncio, relacionar-se espiritualmente e ouvir atentamente"(1).

A partir dessa concepção de cuidado, refletindo acerca da qualidade do profissional que se está formando, conclui-se que é necessário formar um enfermeiro competente, e que, para ter essa competência, esse precisa saber cuidar. Por outro lado, se cuidar é tudo o que se arrolou anteriormente, crê-se que esse aluno precisa ter a experiência de ser cuidado para se sentir feliz e cuidar satisfatoriamente.

O conceito de felicidade que se adota e que é aqui referido traz embutido, em si, a competência técnica, científica e humana, pois, quando as pessoas se encontram felizes, desempenham suas atividades com amor, responsabilidade e habilidade(2), qualidades ou aptidões que são imprescindíveis para o bom desempenho do cuidado.

Ao proporcionar ao acadêmico a oportunidade de refletir e discutir sobre seu modo de relacionar-se e as dificuldades que encontra em seu processo de viver, oferece-se a ele a oportunidade de se autoconhecer para, assim, poder se relacionar com os outros de maneira satisfatória, com vistas ao melhor cuidado de si e do outro.

No processo de formação do enfermeiro, a busca pelo autoconhecimento é fundamental, pois o acadêmico, como ser humano, experimenta várias crises, ou possibilidades de crise, e essas experiências, querendo-se ou não, podem influenciar no encontro com o seu cliente(3). Estão incluídos aqui todos os problemas existenciais, conflitos não resolvidos ou mal resolvidos e muitas outras dificuldades vivenciais para cuja superação, obviamente, o curso não ofereceu subsídios.

Assim sendo, este estudo teve por objetivo apreender a opinião dos acadêmicos de enfermagem que participaram do projeto de ensino "Assistência à Saúde Mental do Acadêmico de Enfermagem", sobre a importância desse projeto na sua formação.

 

Material e Métodos

No presente estudo, que é descritivo, de análise qualitativa, foram entrevistados 42 alunos matriculados em todas as séries do curso de enfermagem da UEM, no ano 2007. Para isso, selecionaram-se os acadêmicos que participaram do projeto nos anos 2005 e 2006.

Para a coleta de dados, utilizou-se um roteiro semiestruturado e autoexplicável. elaborado pelas autoras, o qual solicitava informações sobre: idade, sexo, dados familiares, ingresso na universidade, dados sobre moradia, relacionamentos, atividades físicas e de lazer, a compreensão de saúde mental, motivo da participação e opinião sobre o projeto. O questionário foi aplicado aos acadêmicos que participaram do projeto no período estipulado. Para a coleta de dados, que ocorreu em março de 2007, foi programado e realizado um encontro individual com cada aluno participante da pesquisa.

Para a análise, utilizou-se como referencial a análise de conteúdo(4), considerada como um excelente método para analisar e interpretar mensagens. Essa análise é compreendida como um conjunto de técnicas de análise de mensagens, cuja preocupação está por trás dos conteúdos manifestos, ou seja, vai além das aparências do que está sendo comunicado. A análise de conteúdo pode abranger três fases: 1) pré-análise, 2) exploração do material e 3) tratamento e interpretação dos resultados obtidos. Essa parte foi exaustiva e complexa e nela se tentou obter dos dados a subjetividade necessária para a interpretação e inferência que a análise desse tipo de estudo exige.

Os dados, inicialmente, foram colocados numa planilha em que se deixava um espaço para os pesquisadores fazerem as anotações pertinentes. Na primeira análise, realizou-se uma leitura preliminar, atentando para os pontos que eram de maior interesse e respondiam aos objetivos do estudo. Em seguida, realizou-se uma segunda leitura, em que se atentava para os pontos relevantes e eram grifadas as partes de interesse. Na terceira leitura escreviam-se, ao lado das falas, palavras denominadas códigos, as quais deveriam, na fase seguinte, remeter ao conteúdo expresso. Posteriormente, esses códigos foram agrupados, analisados e interpretados, gerando duas categorias: 1) falando da saúde mental e, 2) compreendendo o outro e a si mesmo a partir das relações interpessoais.

Foram levados em consideração todos os preceitos éticos exigidos pela Resolução 196/96, do Ministério da Saúde(5), ou seja, todos os alunos participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aceitando participar da pesquisa. O projeto foi apreciado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Maringá, que lhe deu Parecer favorável nº0349/98. Nos discursos apresentados, os acadêmicos estão identificados por números (Ac1, Ac2,...), para preservar seu anonimato.

 

Resultados e discussão

Dos alunos entrevistados, 15 tinham menos de 19 anos, 26 tinham entre 20 e 23 anos e um tinha mais de 24 anos; 17 estavam no primeiro ano do curso, 12 no segundo ano, nove no terceiro ano e quatro estavam no quarto ano. Quanto ao gênero, 38 eram do sexo feminino. Em relação à procedência dos acadêmicos, 11 eram de Maringá e moravam com seus familiares, 26 eram de outras cidades e moravam sozinhos em pensionatos ou dividiam apartamento com colegas e/ou familiares, e cinco omitiram esse dado.

É possível afirmar que o fato de estar longe da residência induziu o acadêmico a buscar ajuda no projeto, demonstrando que a ausência da família contribuiu para o aumento das dificuldades encontradas na universidade, as quais estariam ou não relacionadas a problemas de relacionamento. [...] foi muito bom para questões de mudança (cidade, curso e amigos novos) [...] porque colocava todas as dificuldades que um estudante de enfermagem passa [...] (Ac1). Aqui a gente pode falar das coisas da gente... (Ac12).

O ingresso na universidade em busca de uma carreira profissional é um passo importante na vida do ser humano e tem acontecido cada vez mais cedo. Verificou-se que a maioria dos estudantes participantes desta pesquisa (22 acadêmicos) ingressou na universidade com idade entre 17 e 18 anos, 12 com idade entre 19 e 22 anos, e, os demais, com mais de 23 anos de idade. Acredita-se que a insegurança relacionada à imaturidade, muitas vezes, pode levar esses acadêmicos a sofrerem pelas decisões que às vezes precisam tomar e, em alguns casos, a distância da família ou de pessoas de confiança com quem possam dividir suas dificuldades agrava ainda mais a situação. Observa-se, assim, que eles encontram no projeto o espaço para discutir suas ansiedades e angústias e abordar os temas que os afligem, inclusive problemas relacionados à profissão que escolheram e à vida acadêmica.

Falando da saúde mental

A partir da análise das mensagens, observou-se que, em sua maioria, os alunos, ao falarem de sua saúde mental, compreendem-na como um estado de bem-estar físico e mental, associando essa sensação às condições de vida. É quando se está bem consigo e com os outros. É conseguir enfrentar os problemas sem que eles interfiram na vida social (Ac8). É a manutenção do bem-estar mental, que favorece todo o organismo. Creio que seja a parte fundamental para que o restante também funcione bem (Ac17).

Define-se saúde mental como um sucesso simultâneo no trabalho, no amor e na criação, com a capacidade de resolução madura e flexível de conflitos entre instintos, consciências, outras pessoas importantes e a realidade; ou como um estado dinâmico em que se demonstram pensamentos, sentimentos e comportamentos compatíveis com a idade e congruentes com as normas sociais e culturais(6). Saúde do pensamento, de espírito, uma forma de organizar nossos sentimentos e lidar com eles (Ac30).

Observou-se, durante a realização das atividades do projeto, que a maior preocupação dos acadêmicos refere-se ao desempenho na faculdade. Esse estresse gera ansiedade, desânimo, dificuldade para dormir e cansaço. Alguns também referem não estar se alimentando bem e observa-se, durante os grupos realizados no projeto, que alguns apresentam carência afetiva, choro fácil, sensibilidade aguçada e outras manifestações.          

Os acadêmicos percebem o projeto como um espaço onde podem desabafar, compartilhar medos e angústias relacionados à sua vida pessoal, acadêmica e profissional. Referem ainda sentir-se à vontade, pois, nos grupos, as pessoas podem falar, ser ouvidas e compreendidas. [...] a gente pode falar dos problemas sem medo de uma reação contraditória (Ac14) .

Revelam que existe uma relação de confiança, a qual se deve à [...] maneira como a professora abordou o grupo, dando um imenso carinho e atenção a cada um [...] (Ac19). Existe companheirismo e a atenção, porque ninguém estava preocupado em ver se o outro estava certo ou não, mas simplesmente se propuseram a ouvir e procurar compreender (Ac20).

Os entrevistados referiram que esse cuidado do professor e dos próprios colegas ajuda em sua saúde mental, ensinando-os a se conhecer melhor, a lidar com seus problemas, e que as atividades do projeto ajudam a diminuir a carga imposta pela realidade universitária. [...] falar de algumas coisas aqui serve para aliviar um pouco o estresse e preocupação das provas e estágio (Ac5).

Relataram ainda que o espaço desenvolvido pelo projeto os faz compreender melhor a sua realidade e a dos outros, permitindo-lhes, assim, cuidar de si e do outro. [...] é muito importante cuidarmos de nós mesmos... pois, assim temos condições de cuidar dos outros [...] (Ac11).

Saber ouvir ou ouvir reflexivamente é um processo ativo e requer concentração de atenção e de energia. É necessário tentar compreender o que existe nas entrelinhas; ao ouvir, é necessário estar atento para não julgar(7), é preciso tentar compreender o outro e usar a empatia como instrumento terapêutico. Essa habilidade de saber ouvir é desenvolvida por todos os participantes, quando se propõem a estar com o colega no grupo. Acredita-se que é nesse processo de aprender a ouvir e a se comunicar que o acadêmico cresce e se autoconhece.

Todos os participantes classificaram sua saúde mental como boa e, para mantê-la, nas horas vagas eles assistem televisão, namoram, dormem e saem com os amigos. Quanto à realização de atividades físicas, 30 entrevistados relataram não praticar esportes e atribuem isso à falta de tempo causada pela carga horária extensa na universidade, a qual envolve aulas em período integral.

Compreendendo o outro e a si mesmo a partir das relações interpessoais

A comunicação e o relacionamento interpessoal são processos e habilidades comunicativas entre pessoas e grupos com a finalidade de ajustamento, integração e desenvolvimento(8).

A experiência da autoria, aqui, funda-se em vários teóricos que trabalham com o relacionamento, no entanto, Joyce Travelbee tem sido a escolhida, por causa da abrangência com que aborda o tema. Nesse estudo, relacionamento interpessoal está definido como "[...] un proceso interpersonal mediante el cual la enfermera ayuda a una persona, familia o comunidad con el objeto de promover la salud mental, prevenir o afrontar la experiencia de la enfermedad y el sufrimiento mental y, si es necesario, contribuye a descubrir un sentido a estas experiencias... constituye un proceso interpersonal que se ocupa de personas. Estas personas pueden ser pacientes individuales, familias o grupos que necesitan la ayuda que la enfermera puede oferecer"(9).

Assim, com base no referencial adotado, ao oferecer ao aluno a oportunidade de expressar seus sentimentos, verificou-se que o ajudamos a melhorar sua saúde mental e superar suas dificuldades de relacionamento, conforme relato abaixo. [...] ajudou a solucionar problemas de comportamento e relacionamento com as pessoas que convivo (familiares, namorado e amigos) (Ac3). [...] me ajudou a ver algumas coisas de formas diferentes, sobre como lidar com as pessoas e os aspectos que as envolvem de forma mais compreensiva, apesar do jeito de cada um pensar ser muito difícil de mudar completamente (Ac7).

Proporcionou ainda aos alunos o autoconhecimento, e o fato de participarem em grupo, trocando experiências e diferentes visões sobre problemas e até mesmo sobre a vida. Fez com que amadurecessem como seres humanos. Ajudou a perceber coisas simples como relação interpessoal, e a valorizar a simplicidade de um abraço e muito mais [...] (Ac12). [...] este projeto me ajudou a me sentir melhor e mais feliz, fazendo dar mais valor às coisas boas do que às ruins; ajudou a aliviar um pouco do estresse e preocupação das provas e estágio (Ac15).

A comunicação consigo mesmo é o caminho adequado que o indivíduo possui para se ajustar, pois esse processo ajuda a se compreender melhor, conhecer seus limites e as forças que interagem dentro de si(10).

As atividades desenvolvidas no projeto (grupo) foram ressaltadas pelos acadêmicos, os quais relataram que as técnicas e dinâmicas utilizadas foram bem recebidas, permitindo que eles manifestassem seus problemas de maneira natural. A identificação de problemas comuns entre os participantes também é um fator de coesão e aproximação. Segundo seu relato, a percepção de que os problemas que vivenciavam eram os mesmos que enfrentavam outros colegas da mesma idade, e na mesma situação, ajudou-os a enfrentar a situação com menor sofrimento. Em alguns casos, quando alguém notava que o problema do colega era mais sério que o seu, encorajava-o a não desanimar e a perceber que estava atribuindo um valor muito alto a determinadas coisas que não mereciam tanto investimento e sofrimento psíquico.

Os grupos de apoio ou terapêuticos têm como principal objetivo ajudar os participantes a lidar com o estresse emocional, enfocando as relações que podem dar origem a problemas de saúde mental(11). O grupo não é um mero somatório de indivíduos, pelo contrário, constitui-se como uma nova identidade, com mecanismos próprios e específicos, e, para ser considerado como grupo, todos os indivíduos que o compõem devem estar reunidos em torno de uma tarefa ou de um objetivo comum. Apesar de ter o grupo uma identidade comum grupal genuína, é indispensável ficar claro que a identidade de cada componente do grupo deve ficar preservada(11). [...] vejo que passei a refletir mais sobre as coisas [...] trabalhar em grupo é uma experiência rica, pois podemos compartilhar muitas formas de encarar uma mesma situação. A diversidade de pensamentos só tende a acrescentar modos de ver a vida e parece que me sinto menos sozinha (Ac24).

Outro problema apontado pelos acadêmicos que moram nas chamadas "repúblicas" refere-se à dificuldade inicial de ficar longe da família e aprender a conviver com o diferente (outras pessoas, outra cidade, outros costumes). Eles relatam que as atividades do projeto, as dinâmicas de grupo e as discussões sobre relacionamento intrapessoal e interpessoal os ajudaram a superar as dificuldades encontradas. [...] choro, ansiedade, são decorrentes de saudade que tenho de casa e de minha família. Quando iniciei, esperava que o projeto me auxiliasse em encontrar respostas para os problemas, já que nesse projeto outras pessoas com situação semelhante à minha também iriam participar, era uma oportunidade para trocar ideias (Ac29).

O sistema de valores de um indivíduo é estabelecido no início de sua vida e tem suas bases no princípio de valores acumulados ao longo do viver(6). Esse sistema de valores é sustentado culturalmente pelas crenças, costumes e atitudes; por isso, o esclarecimento e o reconhecimento dos valores e costumes levam o ser humano a adquirir consciência de si mesmo e a aceitar melhor sua condição de vida(6). Acredita-se que, ao falar das dificuldades encontradas para conviver com o diferente, o acadêmico comece a refletir sobre sua vida, o que o leva a respeitar e compreender a unicidade de cada ser humano e a desenvolver suas atividades com maior zelo e responsabilidade, de forma que ele realmente realize o cuidado(12), zelando por seu próprio bem-estar e pelo do outro(13).

Outro ponto ressaltado pelos acadêmicos foi a troca de experiências entre os acadêmicos a partir da comunicação e do relacionamento desenvolvido durante as atividades de grupo do projeto (oito encontros, sendo um por semana). Referiram que os conselhos e orientações dados pelos colegas ou professores proporcionaram crescimento e equilíbrio pessoal. Ressaltaram que essa vivência provavelmente facilitará a sua habilidade para cuidar, tornando cada um deles um profissional que valoriza o ser humano na sua unicidade e integralidade. [...] uma maior compreensão de mim mesma e como precisamos nos relacionar bem com as pessoas, pois necessitamos de uma convivência harmoniosa com aqueles que estão à nossa volta (Ac15). [...] vejo que é muito importante cuidarmos de nós mesmos antes de cuidarmos do próximo [...] (Ac33). [...] Esse projeto nos ajuda a pensar melhor em nós mesmos e nas ações que cometemos; nos auxilia a termos uma boa saúde mental, para que assim possamos ter condições de cuidar dos outros (Ac42).

É possível observar que o próprio acadêmico reconhece que o projeto é o local para ele conhecer a si mesmo e ao outro e, dessa forma, vivenciar uma experiência empática e de crescimento, pois a empatia é a habilidade de o ser humano usar seu conhecimento sobre relacionamento e colocar-se no lugar do outro como se fosse esse outro, mas fazê-lo sem jamais perder sua identidade enquanto ser humano(7).

Essa experiência de crescimento e desenvolvimento também faz parte do cuidar, pois a essência do cuidado está em ajudar o outro a crescer e se realizar. Nesse processo, o cuidar consiste em estar com a pessoa, em seu mundo, ou seja, em promover o crescimento e desenvolvimento do outro, o que envolve a amizade e, principalmente, a habilidade de fazer o outro feliz(13). É preciso compreender que o ser humano vive o significado da própria vida e que, quando cuida, ele está sendo cuidado. Na relação entre o eu e o outro, ambos precisam um do outro; no entanto, para que isso aconteça, é necessário desenvolver uma relação baseada na confiança e não no uso do poder, reconhecendo as necessidades e direitos dos envolvidos e fazendo-os tornarem-se responsáveis pelo cuidado oferecido ou recebido.

O ser humano precisa ter consciência de sua necessidade de crescimento (autocuidado), no sentido de buscar a completude de sua condição. Cuidar do outro é a antítese de manipulação para atender ao seu próprio prazer. Os principais ingredientes do cuidar são: o conhecimento, os ritmos alternados, a paciência, a honestidade, a confiança, a humildade, a esperança e a coragem(13). Dessa forma, a partir do que foi pesquisado com os acadêmicos, acredita-se que eles, nas suas vivências no projeto, conseguiram cuidar e ser cuidados, sempre em busca da habilidade de ser feliz e fazer o outro feliz, a partir das habilidades e competências adquiridas na formação.

Os acadêmicos mostraram que consideram o projeto como um ambiente de cuidado e um meio de aprender a cuidar, o que vem ao encontro da percepção de alunos de uma pesquisa realizada, os quais consideraram o ambiente de cuidado como o local que estrutura o cuidar e proporciona interações entre os sujeitos do cuidar e ser cuidado, possuindo características próprias que se unem e se complementam(14).

Nesse sentido, concorda-se com outros autores(15) ao referirem que a adoção de uma prática não excludente e ações promotoras da saúde mental são fundamentais na formação básica do enfermeiro, o que remete à necessidade de convergência entre o ensino e a prática. Isso vem reforçar a importância do projeto ora realizado e analisado pelos entrevistados e a relevância de se ter na universidade um espaço para receber um cuidado que possa ser aplicado à prática.

Com base nos dados aqui apresentados, pode-se inferir que a experiência de ser cuidado confere ao futuro profissional a consciência de que ele deve cuidar do outro com a mesma qualidade com que cuidaram dele.

 

Considerações finais

O propósito do presente projeto é dar ao acadêmico a oportunidade de expressar suas dificuldades sabendo que será compreendido em sua singularidade e que sua identidade não será comprometida. Objetiva também dar o suporte ao aluno do curso de enfermagem com dificuldade de relacionamento, acreditando que isso poderá influir no processo de ensino-aprendizagem. Não obstante, na percepção dos alunos, os objetivos alcançados foram além dos propostos, pois permitiram refletir sobre sua existência enquanto ser que cuida e é cuidado.

Verificou-se, também, que o acadêmico sente-se feliz ao ser cuidado da forma proposta pelo projeto, e constatou-se, em algumas falas e nas observações realizadas durante os encontros dos grupos, que nesse conceito de felicidade vem embutida a competência, por isso, pode-se dizer que, com a ajuda desse projeto, é possível formar profissionais mais habilitados na relação interpessoal e mais capacitados para cuidar de si mesmos e do próximo.

Foi possível observar que é possível fazer os acadêmicos perceberem que todos têm angústias, medos e inseguranças e que precisam falar e ser ouvidos com carinho e atenção, para poderem aliviar esses sentimentos e, posteriormente, trabalhar para sua superação.

Os acadêmicos relataram que muitas coisas observadas e realizadas nos estágios (práticas) não são discutidas e trabalhadas adequadamente, durante essa fase da formação, e que isso gera angústia, ansiedade e sofrimento. Na opinião deles, o espaço que o projeto oferece para falarem da própria vida se configura como um lugar onde podem desabafar, compartilhar medos e angústias relacionadas às questões pessoais, acadêmicas e profissionais, e isso, direta ou indiretamente, ajuda a melhorar a sua vida, repercutindo tanto no aprendizado científico (notas, construção do conhecimento) quanto no aspecto pessoal (melhora dos relacionamentos, amadurecimento).

Entre as limitações deste estudo pode-se apontar o fato de que o mesmo reflete uma realidade local, investigada numa perspectiva qualitativa, inviabilizando generalizações. No entanto, como profissionais da área de saúde, atuantes em instituição de ensino superior, verificou-se nesses sete anos, tempo de atuação do projeto, que se contribuiu para a formação integral dos acadêmicos; por isso, recomenda-se que outras instituições ofereçam a seus estudantes de enfermagem espaços dessa natureza.

 

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Marcelle Paiano
Universidade Estadual do Maringá
Av. Colombo, 5790
Jardim Universitário
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E-mail: marcellepaiano@hotmail.com

Recebido em: 13/10/2010
Aprovado em: 25/01/2013