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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.8 no.3 Ribeirão Preto dez. 2012

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Conceitos e preconceitos sobre transtornos mentais: um debate necessário

 

Conceptos y preconceptos sobre trastornos mentales: un detalle necesario

 

 

Maria Rosilene CândidoI; Edina Araújo Rodrigues OliveiraII; Claudete Ferreira de Souza MonteiroIII; José Ronildo da CostaIV; Geórgia Salanne Rodrigues BenícioV; Flora Lia Leal da CostaVI

IDoutoranda, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil. Professor, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, PB, Brasil
IIMestranda, Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil. Professor Auxiliar, Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil
IIIPhD, Professor Adjunto, Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil
IVEnfermeiro
VAluna do curso de graduação em Enfermagem, Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil
VIEnfermeira

Correspondência

 

 


RESUMO

Os transtornos mentais ganharam palco de discussão nos meios de comunicação do Brasil e, atualmente, muito se tem ouvido falar sobre o tema. O presente trabalho tratou das concepções de um grupo de servidores de uma instituição de ensino superior sobre transtorno mental, a fim de verificar o estigma existente e suscitar debates em torno de sua redução. Estudo qualitativo, do tipo pesquisa-ação, foi desenvolvido com dezoito servidores técnico-administrativos de uma instituição pública de ensino superior do Piauí, no ano 2009. Os depoimentos evidenciaram não haver definição clara sobre transtorno mental. Verificou-se que a ligação entre preconceito e sofrimento psíquico permanece embutida na sociedade, requerendo que o tema continue a ser discutido nos grupos sociais.

Descritores: Saúde Mental; Conhecimento; Transtornos Cognitivos; Formação de Conceito.


RESUMEN

Los trastornos mentales ganaron escena de discusión en medios de comunicación de Brasil y, actualmente, mucho se tiene oído hablar sobre el tema. El presente trabajo trató de las concepciones de un grupo de servidores de una institución de enseñanza superiora sobre trastorno mental, a fin de verificar el estigma existente y suscitar debates en torno a su reducción. Estudio cualitativo, del tipo investigación-acción, fue desarrollado con dieciocho servidores técnico-administrativos de una institución pública de enseñanza superiora de Piauí, en el año de 2009. Las declaraciones evidenciaron no haber definición clara sobre trastorno mental. Se verificó que la relación entre preconcepto y sufrimiento psíquico permanece embutida en la sociedad, requiriendo que el tema continúe a ser discutido en los grupos sociales.

Descriptores: Salud Mental; Conocimiento; Transtornos del Conocimiento; Formación de Concepto.


 

 

Introdução

Como se observa, ao longo da história da loucura, as pessoas com transtornos mentais eram qualificadas como "perigosas", "doentes", "anormais" ou "especiais". Várias eram e ainda são as concepções atribuídas a essas pessoas, o que concorre para a produção de pensamentos ambíguos em relação à temática. Contrariamente aos séculos de XV a XIX, nos quais o conceito de loucura passou de natural a patológico(1), nos debates desse século XXI discutem-se pontos nodulares entravantes pela necessidade de ressignificações sociais/culturais, sob o enfoque do novo objeto: a pessoa com o transtorno e não mais a doença e o doente mental.

Na própria trajetória acerca da história da loucura(2), nota-se que a sociedade utilizou diversas denominações para o fenômeno em questão, conforme as necessidades e os interesses dos membros das classes dominantes, fazendo com que o termo "loucura" e "louco" fossem adquirindo conotações divergentes com o passar dos anos. Não bastasse haver mudança em seus significados, também houve transformações nas práticas de cuidado da saúde, para aqueles que frequentavam o asilo, o hospital e, mais tarde, hospício ou manicômio.

A loucura que, inicialmente, era considerada fenômeno integrante da natureza humana mais tarde assumiria o papel causador de malefícios à sociedade, por meio daqueles por ela acometidos. Os alienados (loucos) eram seres perigosos por serem agressivos, fazendo com que os profissionais de saúde optassem por acorrentá-los e segregá-los em celas fortes, sob o pretexto de que o isolamento, por si só, tinha o poder de cura(3).

No Brasil, com inúmeras mortes ocorrendo nesses manicômios, e considerando inútil esse tipo de prática no tratamento do louco, os trabalhadores de saúde mental organizaram-se através de intensa mobilização em diversas cidades do país. Esse marco, conhecido como Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) culminou com um processo bastante complexo denominado Reforma Psiquiátrica(4) e com a promulgação da Lei nº10.216, de 6 de abril de 2001, que redireciona o modelo assistencial de saúde mental(5).

Por ser recente essa Lei, os passos rumo a uma nova forma de pensar e lidar com o processo de sofrimento psíquico no Brasil suscita, ainda, amplo debate, discussões e divulgações em prol da participação dos envolvidos e da sociedade, em suas instâncias democráticas, para que não seja apenas implantado o novo, mas, que seja passível de acompanhamento e gerência pela população(6).

Sob esse prisma, espera-se que os espaços de produção do saber, especialmente os ambientes universitários, estejam suscitando debates em torno dessa problemática, na busca de meios para solucioná-la, com ações que envolvam não somente as comunidades às quais alunos e docentes frequentam, por ocasião das práticas oriundas das disciplinas curriculares dos cursos da área de saúde, mas, também, no interior do ambiente acadêmico, junto aos estudantes, professores e servidores, haja vista que, onde houver relacionamentos interpessoais, necessário se faz repensar conceitos e valores e ressignificar práticas.

Todavia, frequentemente, o que se observa são projetos educativos voltados para o público externo à universidade, cujas estratégias e recursos também poderiam ser aplicados aos trabalhadores das instituições de ensino superior, a fim de que esses pudessem se tornar multiplicadores em saúde. Assim, estudos que possam verificar concepções e preconceitos em torno da temática, com esse público, poderiam servir de base para que intervenções nesse sentido pudessem ser efetivadas, o que justifica a realização do trabalho em tela.

Com essa compreensão e com o intuito de promover espaços de discussão para que reflexões constantes ocorram no sentido de reduzir o preconceito contra a pessoa acometida pelo transtorno mental, o presente trabalho buscou desvelar o estigma manifesto nos discursos de um grupo de servidores de uma instituição de ensino superior sobre transtorno mental, o que conhecem sobre as instituições que prestam assistência à saúde mental no Brasil e as possibilidades vislumbradas por eles para haver redução do estigma.

 

Materiais e Métodos

Com vistas a alcançar o objetivo proposto no presente estudo, optou-se pelo método qualitativo, que explora as compreensões subjetivas das pessoas, possibilitando captar questões muito particulares, tais como significados, crenças, valores e atitudes(7), a partir da compreensão do fenômeno pelos sujeitos que o experimentam, fazendo elo com o contexto social pertencente, tanto do pesquisado quanto do pesquisador, pois a preocupação central do método qualitativo não é o fenômeno em si, mas o que ele significa para os sujeitos(8).

Sob esses aspectos, a investigação apresentou como foco os significados atribuídos pelos participantes acerca do transtorno mental e as maneiras pelas quais eles expressam suas crenças e tabus relacionados, adentrando, assim, o campo dos fenômenos sociais, por considerar a existência de um sistema de representações oriundas dos sistemas simbólicos que exercem relações de poder no campo da saúde mental, acarretando a formação de significados e comportamentos variáveis, conforme a intensidade com que influenciam o homem.

O método de pesquisa utilizado, neste estudo, foi a pesquisa-ação, por ser um processo simultâneo de investigação e ação, através da qual os envolvidos (pesquisadores e pesquisados) discutem os problemas na busca de soluções proativas que transformem a realidade(9), no caso presente, em soluções para o problema do estigma que envolve o portador de transtorno mental. Tal estratégia, composta por doze etapas, permite que ocorra o conhecimento e a resolução do problema coletivo a partir dos fatos observados no contexto social, sítio do problema(10). No presente artigo estão apresentados apenas os resultados obtidos na fase 1 (fase exploratória).

A população alvo do estudo foi representada por servidores técnico-administrativos, convidados de diversos setores do Campus Senador Helvídio Nunes de Barros (Campus de Picos) da Universidade Federal do Piauí, selecionados a partir da listagem fornecida pelo setor de Recursos Humanos (RH), de modo que todos os setores pudessem ser representados. Compareceram e fizeram parte do estudo dezoito servidores que estavam trabalhando ativamente na ocasião do convite e que aceitaram espontaneamente participar da pesquisa, cuja execução constituiu a primeira atividade do Projeto Intervenções Terapêuticas em Saúde Mental: uma proposta para redução do estigma, financiado pelo Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo n°5752012008-8/CNPq).

Elaborou-se um questionário com perguntas abertas, aplicado durante a realização da primeira reunião do grupo, ocasião em que foram apresentadas as propostas e metas do projeto a ser desenvolvido, bem como os aspectos éticos e legais envolvidos. A reunião ocorreu no mês de abril de 2009, nas dependências do laboratório de Enfermagem do Campus de Picos, sendo os questionários disponibilizados após a leitura e obtenção da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) de cada um dos servidores presentes.

As questões que nortearam a fase exploratória desta pesquisa-ação foram: qual seu entendimento sobre saúde mental e transtorno mental? Que serviços de saúde mental são conhecidos por você? Quais as diferenças entre eles? Você já visitou uma instituição de saúde mental? Como se sentiu na ocasião? Qual o papel da universidade para a redução do estigma? O que você poderia fazer para reduzir o preconceito da sociedade em relação ao portador de sofrimento psíquico?

O presente estudo foi submetido e obteve aprovação pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Piauí, sob CAAE 0022.0.045.000-09.

 

Resultados e Discussão

O grupo de servidores foi composto por representantes dos diversos setores do Campus, cujas atividades envolvem, além do contato com os colegas, o atendimento a docentes e discentes. Desse modo, dos 18 servidores técnico-administrativos que aceitaram participar da proposta, 7 estavam lotados nos laboratórios, 4 nos setores administrativos, 3 nas secretarias de cursos, 2 na biblioteca e 2 na segurança do Campus. A faixa etária dos participantes variou de 23 a 59 anos, com média de 36,3 anos, sendo 10 do sexo masculino. Quanto ao grau de escolaridade, 8 possuíam nível superior completo, 8 ensino médio completo e 2 ensino médio incompleto.

A fim de obter um diagnóstico situacional acerca do conhecimento prévio dos participantes sobre questões relacionadas à saúde mental, alguns questionamentos foram explorados, resultando em cinco categorias temáticas, expostas a seguir. Compreende-se que tais categorias refletem marcas simbólicas de uma trajetória que ainda está se construindo com a evolução da saúde mental no país, proporcionando releitura acerca da história da loucura através dos tempos, fato bem presente nos discursos dos participantes do estudo. 

Anormalidade, fuga dos conceitos éticos de uma sociedade, alteração psíquica

Entre as diferentes formas de expressarem suas concepções sobre os transtornos mentais, os participantes os colocam como um fenômeno anormal, que fere aos padrões éticos do comportamento social. É possuir uma bagunça de pensamentos, uma inconstância comportamental, comportamentos e reações fora dos padrões conhecidos (S1). Algo que faz do ser humano sair do seu estado normal perante os outros; é uma disfunção orgânica gerada por fatores externos (ambientais), ou inerentes à própria pessoa (hereditário), fuga dos conceitos éticos de uma sociedade (S2). Alteração psíquica que deixa a pessoa fora da realidade, sem discernimento entre o certo e o errado (S3). Excepcionalidade apresentada no ser humano que, dependendo do grau, esta pode conviver em sociedade, mas existe os transtornos mentais severos que são identificados de imediato, eles sim, têm que seguir um tratamento (S4). Qualquer alteração cerebral que provoque comportamento estranho a uma pessoa, ou comportamento diferente do padrão normal (S6). São problemas que envolvem a mente, a alma [...] (S8).

Esses discursos ilustram o quanto é arraigada a concepção de que a pessoa com transtorno mental encontra-se sob condição que confere a ela anormalidade humana, colocando-a em posição de periculosidade, de incapacidade e de transgressão das normas morais sociais. Há, ainda, diferenças nas formas de compreensão do que seja o transtorno mental. Dentre os participantes há aqueles que associam o transtorno mental a qualquer comportamento que coloca a pessoa fora da realidade, em uma nítida visão de que é assim que a maioria das pessoas vê os acometidos.

Hoje é sabido que o transtorno mental encontra ancoragem nas causas biológicas, psicológicas e sociais, necessitando de atenção especializada, mas, também, de apoio familiar e social. No entanto, o processo de reinserção social é tarefa bastante difícil, pelo fato de, ainda, haver a conotação de que o portador do transtorno é alguém incapaz, anormal, um transgressor das normas sociais e, portanto, merecedor de isolamento da sociedade(11).

O conceito positivista de "doença mental", "anormalidade", "excepcionalidade" reflete uma concepção histórica acerca da loucura, transcrita nos instrumentos literários que abordam a temática(1-4), necessitando que atitudes sejam tomadas no sentido de sua ressignificação, pois os significados atribuídos pelos participantes podem expressar a visão conservadora de muitas pessoas ainda não questionadas sobre o assunto, mas que podem estar exercendo, no cotidiano, o preconceito contido em suas mentes.

Dificuldades em distinguir hospital-dia de manicômios psiquiátricos

Ainda que vislumbrem a pessoa com ranstorno mental como alguém que está fora dos padrões aceitos pela sociedade e que deve receber tratamento específico, o grupo pesquisado manifestou ser conhecedor dos modelos tradicionais de atenção à saúde mental existentes no país.

Embora existam três tipos de serviços de atenção à saúde mental no município alvo do estudo (hospital-dia, Centro de Atenção Psicossocial-álcool e drogas e leitos psiquiátricos no hospital geral), os participantes se referiram somente ao hospital-dia nos seus discursos, mencionando, também, a instituição psiquiátrica tradicional (manicômio), situada na capital do Estado (Teresina), que é referência no atendimento aos casos graves, instituições essas que foram alvo de comparação pelos participantes, que apontaram semelhanças e diferenças entre elas. No hospital-dia não se realiza internação propriamente, mas no manicômio sim (S1). Não sei a diferença não... (S3). Acho que é a mesma coisa (S9). O hospital-dia deve ser um tipo de manicômio e o manicômio é um local de tratamento de pessoas com distúrbio mental (S10). O hospital-dia é um centro de tratamento de doentes mentais, já o manicômio é um local de isolamento dos doentes mentais da sociedade (S4). Os manicômios deixam os loucos mais loucos ainda (S6). O hospital-dia trata e o manicômio retira do convívio social (S11).

Verifica-se que, apesar de todos os esforços oriundos da Reforma Psiquiátrica brasileira para transformar os modelos assistenciais vigentes e propor novas formas de atenção aos portadores de transtorno mental, os participantes tiveram dificuldades em apontar as diferenças entre esses dispositivos, chegando, algumas vezes, a considerarem as instituições similares no tocante ao tipo de atendimento prestado, denominando-as manicômios.

Tais dificuldades podem ser reflexo do intenso processo de transformação proposto pelas leis e normativas ministeriais vigentes, um processo em construção que emergiu da constante luta dos trabalhadores em saúde mental, através de um modo de atendimento que vem consolidando a mudança no paradigma "doença/cura" para "existência/sofrimento"(12).

Por outro lado, os discursos dos participantes também podem fazer supor que, embora tenha havido modificação nos modelos assistenciais vigentes no Brasil, em muitos serviços os atores permaneceram os mesmos, profissionais com formação conservadora, positivista, cujo foco da atenção é a doença, em detrimento do sujeito que sofre, resultando em práticas de saúde tradicionais nas instituições novas ou nas já existentes e que receberam nova roupagem. Talvez seja essa a razão para a sinonímia utilizada entre hospital-dia e manicômio.

No contexto sócio-histórico da saúde mental, o manicômio se traduz pela maior forma de manifestação da exclusão, controle e violência contra o ser humano em sofrimento psíquico. Sua estrutura esconde a violência física e simbólica imposta pelas formas de terapia psiquiátrica medicalizante, repressora, segregadora, poupando a sociedade de conviver com o ser em seu sofrimento manifesto(13). É, portanto, emergente que projetos e ações voltadas para a disseminação de informações sejam cada vez mais executadas, para que as pessoas conheçam o que existiu e o que ainda permanece no âmbito da saúde mental brasileira.

Outro ponto ressaltado nos discursos foi sobre o que sentiram quando visitaram instituições psiquiátricas. Relataram considerar inadequadas para a proposta terapêutica, pois perceberam que já há outras formas que promovem o cuidado de maneira mais humanista, constatação obtida quando os sujeitos discutiam sobre visitas a serviços de saúde mental, se já haviam adentrado nesses espaços e como entendiam suas funções. Inicialmente foi um choque, seguido pelo medo e uma dúvida que ainda hoje tenho: o que leva uma pessoa a ficar desse jeito? (S1). Senti-me um tanto triste por conta da forma como eram tratados os pacientes, mas, por outro lado, achei interessante o fato de que certos transtornos parecem ativar ou desenvolver habilidades específicas (S3). A reação foi involuntária, até mesmo quando você vê pessoas que você conhece bem de saúde e quando você o vê doente, se surpreende (S8). Não me incomodou porque não observei nada; estava sob efeito de medicamentos (S10).

Os discursos despertaram reflexões acerca das imagens vistas ou mesmo vivenciadas por essas pessoas, algumas surpreendidas pela aparência e comportamento da pessoa a ser visitada, enquanto outras buscaram identificar o quê de positivo há na internação.

Tratando-se do hospital psiquiátrico tradicional (manicômio), apontado pelos participantes que referiram ter conhecido uma instituição de saúde mental, compreende-se o quanto ainda é necessária, no âmbito da Reforma Psiquiátrica, a desconstrução do poder simbólico que essa instituição carrega consigo, visto que os participantes referiram ter vivenciado cenas surpreendentes, pessoas agindo de maneira diferente do habitual e o uso da contenção química como forma de terapia.

O Movimento da Reforma Psiquiátrica e o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial obtiveram contribuição fundamental no processo de mudança da saúde mental no Brasil, ao denunciarem práticas desumanas e antiterapêuticas nos hospitais psiquiátricos existentes, a exemplo, os manicômios. Esses dois movimentos foram verdadeiras sentinelas na identificação e denúncia dos movimentos que suprimiam os direitos e a autonomia dos portadores de transtornos mentais, emergindo a transformação que está se consolidando no presente momento brasileiro, não só nas instituições existentes, mas, também, de profissionais que nela prestam assistência(14).

O estigma emerge pela discriminação, pela falta de informação e pelo medo

Os participantes também discutiram acerca do preconceito existente contra as pessoas acometidas pelo transtorno mental e expressam, claramente, que a origem do preconceito encontra-se na desinformação, no desconhecimento, gerando nas pessoas a imagem e o estereótipo de periculosidade e agressividade. Fato esse gerador de medo e repulsa das pessoas. O que não se encaixa nos padrões que a sociedade dita é sempre discriminado, não só o doente mental, mas muitos outros (S1). A sociedade, de forma geral, enxerga o doente mental com uma perspectiva estereotipada (S3). Há muita falta de informação, de conhecimento do que é ser doente mental... (S5). O medo da agressão, da forma agressiva de algumas pessoas com transtornos mentais; a população tem receio... (S6). O doente mental pode causar uma situação difícil em alguns momentos, pois há casos surpreendentes... (S7). O maior preconceito é a ignorância; todos nós achamos que sabemos o que é esta doença, e discriminamos aqueles que julgamos doentes, sem mesmo saber o que realmente eles têm, não o ajudamos em nada, apenas o isolamos (S9).

Embora falem como se fossem outrem, os participantes se referem às pessoas com transtorno mental como "doente mental". Essa denominação, por si só, gera o estigma, o afastamento, o distanciamento e o medo trazido ao longo dos séculos. Entretanto, também se entende que novas denominações ainda estão em curso e vão gradativamente mudando, numa busca acelerada de uma palavra ou expressão que venha diminuir esse preconceito, que se inicia pela mudança do nome que a maioria das pessoas conhece para aqueles acometidos por transtornos mentais.

Entre as diferentes formas de expressarem o estigma, os participantes falam da falta de informação. Para eles o conhecimento é também uma maneira de inclusão. A informação em saúde mental é considerada uma necessidade, tanto para leigos quanto para profissionais da área, e base para a mudança de comportamento em relação à pessoa com transtorno mental.

Também emergiu nas falas o medo, justificado pela estreita relação atribuída entre agressividade e transtorno mental. De fato, na representação do "louco" vagando pelas ruas há no imaginário social uma expressão de perigo que advém do comportamento considerado imprevisível e violento, homogeneizando "louco" e loucura como expressão do perigo(15).

Para haver mudanças nos cenários tradicionais de cuidado em saúde mental é necessário, primeiramente, que sejam conhecidas as âncoras do preconceito, bem como quem são os seus atores contribuintes, independente de serem gestores ou sociedade leiga. Uma prova disso foi a realização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorrida em Brasília, no ano 2010, que congregou diversas esferas sociais, governantes dos diversos Estados brasileiros e autoridades estrangeiras, todos com vistas a ampliar esforços na consolidação da Reforma Psiquiátrica, a partir da ótica de que os problemas do campo da saúde mental devem ser vislumbrados como problemas do campo da saúde pública e, portanto, articulados de maneira intersetorial(16).

Uma proposta para redução do estigma

A estigmatização da loucura no ocidente encontra-se transcrita nas produções literárias, enfatizando que seu estopim ocorreu no século XVIII, por ocasião da sua patologização, que passou a denominar-se doença mental, agregando, com essa nova denominação, o poder do saber psiquiátrico, prática medicalizante, vigilância e isolamento(17).

Considerando que a compreensão do estigma existente sobre o portador de transtorno mental é condição sine qua non para que haja mudança de pensamentos e atitudes e, portanto, sejam viabilizadas medidas para sua redução, necessário se faz identificar estratégias que estejam ao alcance da comunidade local e que tenham poder de transformação nas condutas dessas pessoas, a fim de ampliar os espaços de debate e minimizar atitudes discriminatórias.

Frente a essas considerações, foi discutido com os servidores o que fariam para mudar o preconceito existente contra pessoas com transtorno mental, no município, caso tivessem o poder governamental de mudança. Os discursos foram ambíguos: ora apontando para ações de redução do preconceito ora enfatizando a segregação entre a pessoa com o transtorno mental e a sociedade, reforçando o aspecto excludente ainda vigente no país. Ah, eu faria campanhas de conscientização e apoiava instituições que trabalham com essas pessoas (S1). Procuraria uma interação maior entre a sociedade e o doente mental para que pudessem mudar a concepção sobre doente mental... (S3). Para a sociedade, melhoraria a saúde, educação, urbanização... para o doente mental, construção de clínicas especializadas (S4). A favor da sociedade, procurava realizar campanhas para atender estes adultos e crianças de rua. A favor do doente mental, ter um hospital ou casa que pudesse atender estes doentes... (S5). Mudaria a educação, pois é a base de tudo e nos prepararia melhor para enfrentar  as dificuldades com muito mais naturalidade (S7). Tentaria divulgar o máximo possível sobre esta doença e suas formas, pois a informação é uma das principais armas na luta pela inclusão na sociedade (S8).

Embora alguns discursos apontem, ainda, para um contexto de supervalorização da patologia e criação de locais para tratamento, as atitudes manifestadas pelos participantes enveredaram para uma promissora via de desinstitucionalização psiquiátrica, onde o caminho primário seria a informação e a disseminação, em larga escala, do que é o transtorno mental e de como as pessoas podem conviver com os sujeitos em sofrimento psíquico. Tais observações são essenciais para que as pessoas possam melhor definir, olhar e compreender o fenômeno do adoecer psíquico, ampliando-a para além da patologia(18).

Os discursos se misturam entre criar espaços especializados, porém, sem uma definição clara do que consideram "especializados" e um olhar já mais humanizado que passa pela reflexão da educação, do conhecimento e da inclusão. Observa-se, assim, que, embora os passos da reforma psiquiátrica estejam ainda em construção e muito mais quando se trata de buscar essas novas mudanças em cenários interioranos, os participantes deste estudo vislumbram que há necessidade de olhar para essas pessoas com sentimentos mais humanitários e oferecer-lhes assistência de melhor qualidade.

Compreendendo que é a sociedade a instituição suprema que pode atribuir à vida cotidiana seu sentido maior, promovendo um espaço para a expressão plena da liberdade(19), entender que todos podem contribuir para a redução do estigma é requisito fundamental para haver atitudes positivas em relação à minimização do preconceito existente.

O papel da universidade na redução do estigma

No bojo das discussões também foram comentadas questões referentes ao papel da universidade, como campo formador, por excelência, de profissionais, sobre redução do preconceito existente no campo da saúde mental. É abrir os muros do conhecimento, ou seja, levar uma mentalidade nova a todos, partindo dos funcionários, pois é certo que os alunos se espelham muito no corpo docente e técnicos das universidades (S1). Através de projetos que abordem o tema, tais como este (S2). Mostrando para a comunidade que estas pessoas podem viver em sociedade, sem nenhum perigo para esta. Isto aconteceria através de seminários, minicursos e proporcionando encontros de convivência (S4). Construção de grupos para dar palestras nas escolas e instituições, e criar uma fundação com este objetivo (S8). Continuar a desenvolver projetos como este. A universidade, como instituição de ensino, pesquisa e extensão, tem a obrigação de desenvolver projetos de inclusão social (S11).

Embora os participantes tenham apontado oportunamente qual papel a universidade poderia desempenhar na redução do preconceito contra a pessoa com transtorno mental, não ousaram fazer tal interseção com os cargos ocupados por eles na mesma instituição, fazendo supor que a responsabilidade de mudança cabe, somente, a docentes e alunos, e não aos servidores. Os participantes não se perceberam fazendo parte do grupo universitário e, portanto, capazes de promover também ações e executarem projetos que reduzam o estigma, quer seja no ambiente acadêmico quer seja nos grupos sociais dos quais fazem parte.

Os discursos apontam, entretanto, com muita clareza, as ações que devem ser executadas para a diminuição do estigma que perdura em relação aos transtornos mentais e às pessoas acometidas por eles. É sabido que quando se integram grupos de pessoas em seminários, oficinas e outras formas de discussão e informação, os resultados são considerados encorajadores no processo de mudança para os quais se propõem os focos centrais. Assim, os participantes compreendem a importância desses encontros e avaliam na indicação de suas falas quais seriam as ações relevantes no processo de mudança, quando o assunto é transtorno mental, estigma e inclusão social.

É importante salientar que somente as instituições educativas formais, mesmo que essa tarefa seja atribuída somente a professores e alunos, não conseguirão transformar as percepções constituídas no campo da saúde mental, nem desconstruir os preconceitos que se encontram nelas arraigados, embora se entenda que as concepções que os educadores possuem acerca dessa temática será estruturante para embasar o ensino relacionado e assim promover a sensibilização necessária aos seus educandos para haver redução do estigma(20).

Além disso, entende-se, também, que o ensino superior ainda não está plenamente adaptado à política de saúde mental brasileira, situação que confronta muitas vezes os textos literários estudados nas salas de aula e as experiências práticas advindas dos profissionais e dos serviços de saúde mental disponíveis(21). Decorre daí a formação centrada no excesso de conteúdos, na abstração das discussões, em detrimento das especificidades e dos desafios que ainda perduram nas instituições de atendimento à clientela em sofrimento psíquico.

 

Considerações Finais

O estigma que emerge nos cenários deste século ainda adota os termos doente e doença mental como rótulos indissociáveis à condição de exclusão e de anormalidade, mesmo quando a voz coletiva provém de grupos sociais com maior grau de escolaridade, a exemplo, os trabalhadores de instituições de educação superior.

Necessário se faz compreender que amplos e permanentes debates sobre a saúde mental são imprescindíveis para reduzirem o preconceito existente contra o portador de sofrimento psíquico, o que deve ocorrer em todos os segmentos sociais, englobando desde os menos instruídos até os que habitam os espaços de produção do saber, posto que o conhecimento tem como premissa o acesso à informação.

A quebra das barreiras culturais em torno da saúde mental, por meio de sujeitos multiplicadores, aponta horizontes correspondentes às expectativas que se têm quanto à redução do estigma, já que não se ensinam ou se repassam fórmulas prontas, mas se oferecem oportunidades de os próprios agentes sociais construírem suas concepções em torno da percepção do "louco" como ser-existente. Isso requer que o tema continue a ser discutido nos diversos grupos sociais e que projetos/ações para redução do preconceito consigam transformar concepções tradicionais/conservadoras em um novo paradigma de saúde mental.

 

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Correspondence
Maria Rosilene Cândido Moreira
Universidade Federal de Campina Grande
Rua Sérgio Moreira de Figueiredo, s/n
Casas Populares
Cajazeiras, PB, Brasil
E-mail: rosilenecmoreira@gmail.com

Received: Oct. 30th 2010
Accepted: Jan. 25th 2013