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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.8 no.3 Ribeirão Preto dez. 2012

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Esposas de alcoolistas: relações familiares e saúde mental

 

Esposas de alcohólicos: relaciones familiares y salud mental

 

 

Joseane de SouzaI; Ana Maria Pimenta CarvalhoII; Maycoln Lêoni Martins TeodoroIII

IPhD, Pesquisador, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
IIPhD, Professor Associado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IIIPhD, Professor Adjunto, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Esposas de alcoolistas têm sido apontadas pela literatura como tendo mais vulnerabilidade para o desenvolvimento de alguns distúrbios psiquiátricos, como a depressão. O estudo objetivou descrever: características sociodemográficas, relação com marido e filho e o histórico familiar de esposas de alcoolistas. Participaram do estudo quatorze esposas. A coleta de dados foi realizada através de duas visitas domiciliares, sendo utilizados os seguintes instrumentos: roteiro de identificação, inventário de depressão de Beck, entrevista semiestruturada sobre histórico de vida e o familiograma. Resultados demonstraram que as esposas apresentaram sinais de depressão, conflito na relação conjugal e relacionamento mais próximo com o filho.

Descritores: Saúde Mental; Saúde da Mulher; Alcoolismo; Psicologia; Relações Familiares.


RESUMEN

Esposas de alcohólicos han sido apuntadas por la literatura como teniendo más vulnerabilidad para el desarrollo de algunos disturbios psiquiátricos como la depresión. El estudio objetivó describir: características socio-demográficas, relación con su esposo e hijo y el histórico familiar de esposas de alcohólicos. Participaron del estudio catorce esposas. La recogida de datos fue realizada a través de dos visitas domiciliares, siendo utilizados los siguientes instrumentos: guión de identificación, inventario de depresión de Beck, entrevista semi-estructurada sobre histórico de vida y el familiograma. Resultados demostraron que las esposas presentaron señales de depresión, conflicto en la relación conyugal y relación más próxima con el hijo.

Descriptores: Salud Mental; Salud de la Mujer; Alcoholismo; Psicología; Relaciones Familiares.


 

 

Introdução

Estudos têm mostrado que esposas de alcoolistas vivenciam mais problemas mentais e físicos, problemas de comunicação, baixa atividade social e insatisfação conjugal(1-2). Apontam, ainda, que o cuidado com o alcoolista, a administração financeira e educação dos filhos são delegados à esposa. Essas mulheres centralizam suas vidas no cuidado dos filhos e do marido, não falam das suas dificuldades e não conseguem pensar em sua vida(2).

Um estudo avaliou as diferentes atitudes do esposo e da mulher diante da discórdia conjugal, percepções, injustiça e relações alternativas, para observar quais dessas atitudes poderiam estar associadas à separação conjugal(3). Os resultados mostraram que a ausência de violência no casamento está associada a baixos índices de dissolução do casamento. Por outro lado, o uso de drogas ou álcool, por parte do marido, não está associado a alto índice de dissolução do casamento.

Em outro estudo, pesquisadores entrevistaram 16 mulheres de alcoolistas, todas inseridas no Programa de Atendimento ao Alcoolista e seus familiares (PAA), vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo(4). A idade média das entrevistadas era de 40 anos e o tempo médio de convivência conjugal de 16 anos. Os dados mostraram que elas levaram, em média, 10 anos para "acreditar" que o problema de seus parceiros era alcoolismo. Os autores concluíram que elas minimizavam ou justificavam as consequências do alcoolismo por se tratar de uma doença progressiva. A convivência cotidiana acarreta a conjugação de afetos positivos e negativos, mediados pelo consumo de álcool e pelo adiamento do enfrentamento do problema. No momento em que o segredo é revelado, o alcoolismo do cônjuge fica relacionado a outros eventos de caráter negativo para a família.

A presença da violência nos primeiros anos de casamento, associada ao uso de álcool por parte do marido, foi tema de outro estudo(5). Os autores observaram a presença de mais violência nos casais, nos quais o marido era usuário bebedor e a esposa não fazia uso de drogas, e os episódios de violência aconteciam nos primeiros anos de casamento e assim sucedia nos próximos anos. Maridos que eram violentos nos primeiros anos apresentavam maior probabilidade de serem violentos nos últimos anos. Outra pesquisa analisou a violência intrafamiliar e o uso de drogas. Os resultados apontaram que o ciúme e a dificuldade financeira eram as causas mais frequentes de violência contra mulheres e estavam relacionadas ao consumo de álcool(6). Os autores concluíram que o consumo de álcool e drogas é considerado fator de risco para a ocorrência de violência intrafamiliar. 

Pesquisa, ao entrevistar um grupo de mulheres, cujos maridos eram filhos de alcoolistas e desenvolveram a dependência ao álcool, evidenciou que os maridos eram alcoolistas funcionais, isto é, eles ainda conviviam com a família e trabalhavam(7). As mulheres apresentaram três vezes mais chance de fazer uso abusivo de álcool quando comparadas com mulheres de maridos não alcoolistas. Pesquisas também apontam que mulheres, cujos parceiros tinham problemas de álcool, tinham mais chances de experiência de vitimização, danos, distúrbios do humor, transtornos de ansiedade(8). Mas, dados de outra investigação revelou que as mulheres não apresentaram maior índice para depressão e transtorno bipolar do que aquelas casadas com não alcoolistas(9).

A qualidade de vida e depressão em mulheres vítimas de violência foi avaliada e os autores observaram que 70% dos agressores eram alcoolistas e o motivo que elas referiam como sendo causadores da agressão eram ciúmes e o uso de álcool(8). Dessas mulheres, 61% obtiveram pontuação acima de oito no inventário de Beck, o que sugere depressão moderada ou grave.

Os resultados descritos mostram a importância da realização de estudos direcionados para o conhecimento da realidade das esposas de alcoolistas. Tendo em vista essa necessidade, o presente estudo teve como objetivos: 1. identificar a percepção das esposas de alcoolistas sobre a existência de afetividade e conflito na relação conjugal e com os filhos, 2. verificar se as esposas tinham histórico de uso de álcool familiar e 3. avaliar a saúde mental das esposas, verificando os sintomas de depressão. Este estudo faz parte do projeto de pesquisa "alcoolismo parental e dinâmica familiar".

 

Método

Local: o estudo foi realizado em um município do interior do Paraná, localizado na região centro-oeste do Paraná, Brasil.

Participantes: foram entrevistadas quatorze esposas de alcoolistas, cujo marido tinha recebido diagnóstico de alcoolismo, segundo o CID 10 na categoria F.10. Essa classificação abrange os transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de álcool, e com eventuais comorbidades, por exemplo, tabagismo, depressão, ansiedade e comportamento antissocial e esposa sem histórico de uso de drogas.

Procedimento: após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, foram realizadas visitas aos serviços de saúde que ofereciam atendimento para dependentes químicos. Por meio do contato com os pacientes alcoolistas, foi possível localizar as respectivas esposas. Após a identificação dos pacientes alcoolistas entrou-se em contato com as esposas, através de visitas domiciliares para realizar as entrevistadas. Foram selecionadas quatorze esposas. Dos quatorze maridos, sete tinham recebido tratamento em uma unidade hospitalar que oferecia internação para dependentes químicos e os demais estavam sendo acompanhados no Caps.

Instrumentos: utilizaram-se os instrumentos para a coleta dos dados, mostrados a seguir.

1. Roteiro de identificação e de verificação da ausência de dependência química na esposa. Elaborado com algumas questões sobre as características sociodemográficas com base no CCSEB - Critério de Classificação Socioeconômica do Brasil. Esse instrumento possibilita o estabelecimento de parâmetros de renda familiar de cada classe social brasileira - A, B, C, D ou E, composto por um sistema de pontuação baseada na posse de bens de consumo duráveis, ou grau de escolaridade e condições de moradia(10). Foram acrescentadas também quatro questões do Cage(11) (Cut-down, Annoyed, Guilt e Eye-opener), traduzido e validado no Brasil(12), para identificar, ou não, sintomas de dependência de alcoolismo e tabagismo nas entrevistadas.

2. Montagem do genograma: foi estabelecido com apoio de entrevistas semiestruturas que abordavam as questões do histórico de vida e do relacionamento conjugal(13).

3. Inventário de depressão de Beck: o inventário de depressão é uma escala que consiste de 21 itens, incluindo sintomas e atitudes, cuja intensidade varia de 0 a 3(14). Os itens referem-se à tristeza, pessimismo, sensação de fracasso, falta de satisfação, sensação de culpa, sensação de punição, autodepreciação, autoacusações, ideias suicidas, crises de choro, irritabilidade, retração social, indecisão, distorção da imagem corporal, inibição para o trabalho, distúrbio do sono, fadiga, perda de apetite, perda de peso, preocupação somática, diminuição de libido. Segundo o autor do instrumento(14), a escolha do ponto de corte adequado depende da natureza da amostra e dos objetivos do estudo. Outro autor(15) aponta diferentes pontos de corte para avaliar a intensidade da depressão em pacientes deprimidos: 0-9, depressão mínima; 10-16, leve; 17-29, moderada; 30-63, severa. Se o objetivo é detectar o número máximo de pessoas deprimidas, os pontos de corte deveriam ser baixados, para minimizar falsos negativos. Mesmo que o número de falsos positivos aumente, esse método será útil na triagem de possíveis casos de depressão. Para este estudo, o qual teve por objetivo verificar sinais de depressão nas esposas, o ponto de corte utilizado foi considerado acima de nove. 

4. Familiograma: instrumento construído para avaliar a afetividade e conflito nas relações familiares(16). Afetividade foi definida como um conjunto de sentimentos positivos existentes entre as pessoas. Já a negatividade foi definida como o total de sentimentos, que podem ser considerados fontes estressoras, demonstrados entre os membros da família. Os adjetivos utilizados foram selecionados por um grupo de pesquisadores, baseando-se, em parte, nos descritores de personalidade selecionados. São eles: amável, afetivo, amoroso, carinhoso, alegre, feliz, atencioso, animado, agradável, distante, nervoso, agressivo, estressante e tenso. Na folha de resposta eram combinados os adjetivos referentes a um dos membros da família, onde a pessoa que está avaliando sua relação com esse membro deve responder de acordo com cinco categorias variando de "não corresponde" até "corresponde totalmente" (escala tipo Likert, variando de 1 a 5). As pesquisas com o instrumento familiograma, aplicado em universitários, revelou que para a díade filho/mãe foi encontrado um alpha de Cronbach de 0,95 para o fator afetividade e de 0,87 para o fator conflito, díade filho/pai apresentou um alpha de Cronbach de 0,96 para o fator afetividade e de 0,91 para o fator conflito, díade mãe/pai obteve um alpha de Cronbach de 0,97 para o fator afetividade e 0,91 para o fator conflito. Todo procedimento durou, em média, de 10 a 15 minutos.

Análise dos dados

Foram realizadas análises quantitativas do familiograma e qualitativa das informações obtidas a partir das entrevistas, sendo que essas foram organizadas em categorias. A análise dos dados do familiograma foi feita através de testes não paramétricos, de testes pareados, testes para amostras relacionadas por meio do SPSS, versão 14.0, –(Statistical Package for the Social Sciences). Foi utilizado o seguinte teste não paramétrico: teste de Wilcoxon para duas amostras relacionadas. Os dados das entrevistas foram organizados em categorias: características sociodemográficas, histórico de vida, relacionamento conjugal e relacionamento com os filhos. O inventário de Beck foi avaliado conforme instruções do instrumento padrão.

 

Resultados

Os resultados foram organizados em categorias para descrever, de forma mais clara, as características das esposas. Abaixo estão relacionadas as categorias.

1. Características sociodemográficas - faixa etária de 30 a 50 anos, pertencentes à classe social D e E, a maioria com baixo nível de escolaridade, 21,42% não era alfabetizada e 78,58% tinham ensino fundamental incompleto, 50% exerciam atividades profissionais de: domésticas e balconista e 50% não exerciam atividades profissionais e tinham, em média, quatro filhos.

2. Histórico da família de origem - a maioria apresentou histórico de alcoolismo do pai ou do irmão e relacionamento distante ou conflitivo com a família de origem, e as famílias eram chefiadas pela mãe. O pai, segundo as participantes, era controlador, autoritário e agressivo, só uma esposa relatou que sua mãe era alcoolista e agressiva e seu pai não tinha problemas com álcool. A fala das esposas descreve isso. Pai severo qualquer coisa entrava no laço, a mãe era pacenciosa (Esposa 3). Pai não deixava eu sair de casa (Esposa 5). Pai bateu na mãe e quase a enforcou, e aí meu irmão mais velho foi defender a mãe e bateu no pai (Esposa 1).

Algumas esposas referiram que não sentiram o apoio dos pais e sentiam-se sozinhas. Pode-se perceber que elas vivenciaram relacionamentos familiares distantes, sentimento de abandono e reclamaram da falta de suporte emocional dos pais. Esses sentimentos podem ser observados nas falas a seguir. Não posso contar com minha família, só com Deus (chorou ao falar da família) (Esposa 3). Depois que a mãe morreu o pai abandonou a família, eu não tenho mais contato com minha família (Esposa 2).

Referiram perdas financeiras e o fato de o pai ser violento, como consequência do alcoolismo. Mas muitas delas falaram do pai com certo sentimento de "compaixão", devido ao sofrimento que ele vivenciou. Mesmo elas sendo adultas e tendo a própria família, se dispuseram a cuidar do pai nos momentos em que ele esteve doente. Portanto, pode-se dizer que, na sua família de origem, elas assumiram o papel de cuidadoras. Nas seguintes falas observa-se o sentimento de compaixão e o cuidado que elas tinham com o pai. Pai e mãe é sagrado. Há! Pai coitadinho. O alcoolismo destrói a família (Esposa 1). Ele bebia socialmente. Era paizão nunca deixou faltar nada na família (Esposa 2). Eu cuidava do pai e trabalhava para ajudar a mãe porque ele era doente (Esposa 5).

Percebe-se que muitas tiveram o modelo do pai severo e violento e da mãe cuidadora. Vivenciaram momentos de confusão de sentimentos em relação ao pai. Ora sentiam medo do pai e talvez raiva diante das atitudes agressivas, direcionadas à mãe e a elas mesmas, e ora o percebiam como alguém que precisava de ajuda e, então, cultivavam sentimentos de solidariedade e compaixão. Talvez esse conflito as impulsionasse a cuidar do pai, motivadas pela compaixão do sofrimento do pai ou/e também pelo sofrimento da mãe.

A convivência com o alcoolismo do pai repetiu-se na convivência com o marido alcoolista(17). A infância e a adolescência delas estiveram centralizadas no alcoolismo de um familiar.

3. Relacionamento conjugal - todos os maridos estavam desempregados, a média de tempo de casamento era de 15 anos, e, em média, depois de 10 anos elas perceberam o alcoolismo como problemático. Dos quatorze maridos, somente quatro estavam na fase de abstinência. Expressaram que as situações que mais as angustiava eram as tentativas de suicídio do marido, às vezes presenciadas por um filho, e reações de agressão do mesmo com a esposa e filhos. Também relataram sentimentos de vergonha, culpa, impotência por não saberem como lidar com o marido alcoolista e as reações emocionais e comportamentais dos filhos. A fala desta esposa expressa claramente o sentimento de culpa e vergonha. Eu podia ter feito alguma coisa poderia ter evitado tudo isso, eu fui deixando. Se eu tivesse internado ele, poderia ter evitado. Mas eu esperei ele tomar consciência (Esposa 2). Tinha vergonha do alcoolismo dele. Um dia tentaram colocar fogo no corpo dele, ele tava caído na rua (Esposa 1).

A maioria das esposas relatou que seus maridos eram agressivos devido ao ciúme que sentiam delas e ao uso abusivo do álcool, 60% foram vítimas de agressão. Algumas esposas já tinham vivenciado episódios de separação, mas retornaram por sentir pena do esposo. Muitas assumiram o papel de cuidadoras da mesma forma como assumiram na sua família de origem. Outras afirmaram que já foram traídas e que hoje não têm convivência de marido e mulher, somente moram na mesma casa. Elas vivenciam uma confusão de sentimentos em relação ao marido assim como viveram na relação com seus pais. O conflito vivido na relação conjugal pode ser observado através desta fala: Às vezes eu brigo com ele e depois me arrependo. A gente dorme em quarto separado (Esposa 4). Gostava dele, mas com os anos transformei isso em pena e raiva. Quando ele não bebe é normal. Eu achava que ele tinha outra mulher. Discutimos sempre quando ele bebe. Não suporto ele. É um sossego quando ele tá longe (Esposa 5). Briga por ciúme, desde o começo, ciúme doentio (Esposa 6). Quando tem briga ele sai bebe. Briga é por causa dos filhos (Esposa 7). Ele acha que eu sou ruim. Hoje vivemos sem conversa. Ele me traiu com outras mulheres no bar. Faz três anos que ele dorme em quarto separado. Tentei separá ele saiu de casa várias vezes (Esposa 8). Quando ele bebe ele fica violento. Quando ele bebe eu durmo até separada. Fora da bebida ele é carinhoso (Esposa 9).

Elas ainda qualificam a relação conjugal como distante, muito estressante, tensa e pouco amorosa. Segundo os dados do familiograma elas percebem a relação com seu filho como sendo mais afetiva que a relação com seu marido (p=0,003). Há, ainda, tendência a perceber mais conflito na relação com seu marido alcoolista do que na relação com seu filho (p=0,065).

Na organização dessas famílias, as esposas, além de cuidarem das crianças com relação às questões educacionais, elas tinham assumido também a manutenção financeira da família, pois muitos esposos encontravam-se desempregados. Portanto, era da responsabilidade delas decidirem e resolverem a maioria dos problemas familiares. Os maridos tinham papel mais passivo, nessas questões. O acúmulo de responsabilidades assumidas pela mulher e o alcoolismo do marido são fatores de estresse familiar que estão afetando as relações conjugais e até mesmo as relações entre pais e filhos, levando, possivelmente, as mesmas a apresentar sintomas de depressão(18).

4. Relacionamento com os filhos - referiram que, devido ao alcoolismo, seus filhos apresentavam medo, nervosismo, envolvimento com brigas com colegas da escola, dificuldade de aprendizagem, resultando em reprovação, reações psicossomáticas (dificuldade de digestão, de alimentação e perda do controle dos esfíncteres). A fala desta esposa mostra essas reações dos filhos. Aos cinco anos meu filho voltou a fazer xixi e cocô na calça. Hoje com 8 anos a professora disse que ele tinha aprendizagem lenta (Esposa 1). O bebê de três anos tinha medo dele e até hoje tem. A filha de 10 anos ficava nervosa e brigava na escola (Esposa 2). Desde o nascimento ela é traumatizada. Ela é nervosa e chora bastante (Esposa 3). Quando ele (filho) via o pai alcoolizado ele ficava com medo e chorava (Esposa 9).

Os dados do familiograma mostraram que a maioria das mulheres tem relacionamento amoroso, afetivo e atencioso com seu filho. Muitas afirmaram que a relação com os filhos é mais afetiva do que com o seu marido (p=0,003).

5. Sinais de depressão - todas as mulheres obtiveram pontuação acima de oito no inventário para depressão de Beck. Os resultados demonstraram que 90% das mulheres apresentaram sinais de depressão, segundo o ponto de corte igual e maior que 10(15). Os itens mais assinalados, cuja pontuação contribuiu para o escore final no inventário de depressão de Beck foram perda da libido e reações de irritabilidade.

 

Discussão

Confirmando dados da literatura, as esposas da presente pesquisa demonstraram sinais de depressão e qualificaram a relação conjugal como estressante e conflituosa(1-2). Os sinais de depressão provavelmente eram decorrentes dos conflitos da relação conjugal e da sobrecarga de tarefas que elas têm assumido. Esposas de alcoolistas apresentam sinais de ansiedade, depressão e agressividade e prejuízos cognitivos como indicativo de alto nível de estresse psicológico(19).

Os dados da família de origem confirmaram que a maioria das esposas de alcoolistas eram filhas de pais alcoolistas. A literatura aponta que o filho alcoolista tem dificuldade de se diferenciar de sua família de origem e uma das formas de pseudodiferenciação é casar com um alcoolista podendo, assim, perpetuar um papel familiar de funcionamento super-responsável(20). Quando as esposas de alcoolistas assumíam o papel de cuidadoras de seus maridos e se responsabilizam pelo sustento financeiro, elas estavam repetindo o mesmo processo que vivenciaram com seus pais, o que leva a pensar que elas buscaram uma pseudodiferenciação de sua família de origem(17).

Filhos de alcoolistas têm mais chance de se casar com um alcoolista que filhos de não alcoolistas(21). Crescer na presença do alcoolismo parece condicionar as mulheres para constituírem suas famílias com alcoolistas(22).

Além do alcoolismo paterno estar associado aos prejuízos do desenvolvimento das crianças(23-25), as relações conjugais insatisfatórias também podem ocasionar nas crianças problemas físicos e psicológicos, dentre eles: problemas de saúde, depressão, baixa competência social, baixa performance acadêmica e vários outros distúrbios de conduta correlacionados.

Mulheres(9) vítimas de violência têm mais chances de desenvolver depressão, confirmando os dados desta pesquisa que apontou esposas vítimas de violência conjugal apresentarem mais sinais de depressão. O uso de álcool pode ser considerado um fator de risco para ocorrência de violência intrafamiliar e, consequentemente, o aparecimento de depressão nas esposas(5). Com relação à identificação de sentimentos, direcionada para seu cônjuge, elas vivenciam uma confusão de sentimentos mediada pelo alcoolismo de seu marido corroborando outros estudos(4).

A associação entre insatisfação conjugal e alcoolismo, percebida por essas mulheres ao relatarem a presença de conflito na relação com seu marido alcoolista e mais afetividade com seu filho, é confirmada em outras pesquisas(12). Provavelmente os conflitos conjugais direcionam a esposa para uma relação mais afetiva e próxima com o filho como uma das formas de compensar a vivência da insatisfação conjugal.

 

Considerações Finais

Obter informações sobre dados da história de vida das familias de esposas de alcoolistas, por meio do genograma e do familiograma, pode ajudar na compreensão da dinâmica familiar. E também na elaboração de programas de intervenção direcionados para trabalhar com as relações familiares conflitivas, no contexto do alcoolismo, as quais se não forem resolvidas tendem a se repetir nas futuras relações.

A sociedade, de modo geral, e os profissionais de saúde depositam nas esposas de alcoolista a tarefa de cuidado e de proporcionar apoio emocional para o alcoolista, principalmente no momento de sua recuperação. Porém, poucos estudos têm avaliado se elas têm recursos psicológicos para assumir essa tarefa. O presente estudo mostrou que essas mulheres, ao conviverem com as situações estressantes do alcoolismo do marido, apresentam sintomas de depressão e um histórico familiar de dificuldades de relacionamento provavelmente associado às suas dificuldades pessoais. Os dados confirmam que elas necessitam de atendimento especializado para melhorar sua qualidade de vida, pois, assim, estarão capacitadas para auxiliar na recuperação do alcoolista.

Os dados do presente estudo não podem ser generalizados, sendo impossível afirmar que o comportamento das esposas de alcoolista desse grupo é um padrão, já que o estudo não realizou uma análise comparativa com esposas de não alcoolistas. Sugere-se a realização de pesquisas comparativas, longitudinais com abordagem interativa para verificar a associação das relações familiares e da saúde mental dos familiares com o alcoolismo. Elaborar e testar um programa de intervenção com esposas de alcoolistas também é importante.

Conclui-se que realizar intervenções com as esposas de alcoolistas, capacitando-as para lidar com o estresse da convivência com o cônjuge dependente químico, poderá contribuir no tratamento do alcoolista e melhorar as relações familiares e diminuir os prejuízos emocionais e comportamentais das crianças que convivem nesse ambiente.

 

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Correspondence
Ana Maria Pimenta Carvalho
Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas
Av. Bandeirantes, 3900
Bairro: Monte Alegre
CEP: 14040-902, Ribeirão Preto, SP, Brasil
E-mail: anacar@eerp.usp.br

Received: Jan. 17th 2011
Accepted: Apr. 9th 2013