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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

On-line version ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.9 no.1 Ribeirão Preto Apr. 2013

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Representações do uso de tatuagem e piercing

 

Representaciones del uso de tatuaje y piercing

 

 

Aline Cristina DadalteI; Marina de Carvalho MarianoII; Luiz Jorge PedrãoIII; Gabriela Bazan PedrãoIV; Enio José Porfirio SoaresV

IDoutoranda, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto,  Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IIPsicóloga
IIIPhD, Professor Doutor, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IVMSc
VMestrando, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo investigou diversas representações identitárias da tatuagem e do piercing para seus usuários, bem como os preconceitos relacionados a esses. Para isso, foram entrevistados 10 sujeitos portadores de tais adornos. Os resultados apontaram três diferentes categorias de representações para os portadores de adornos: complemento estético, significação pré-estabelecida do desenho e marca permanente de um momento significativo na vida. Divergências nas representações desses tipos de enfeites são responsáveis por gerar atitudes preconceituosas para com aqueles que os possuem. Mesmo frente à discriminação e ao caráter estigmatizado trazido pelos adornos, os entrevistados relataram não terem se arrependido por optar pelo seu uso, o que pode ser considerado um fator constituinte da identidade, seja essa pessoal ou grupal.

Descritores: Ego; Tatuagem; Piercing Corporal; Preconceito.


RESUMEN

El presente estudio investigó diversas representaciones de identidad a través del tatuaje y del piercing para sus usuarios, así como los preconceptos relacionados a éstos. Para eso, fueron entrevistados 10 sujetos portadores de tales adornos. Los resultados apuntaron tres diferentes categorías de representaciones para los portadores de adornos: complemento estético, significación pre-establecida del dibujo y marca permanente de un momento significativo en la vida. Divergencias en las representaciones de estos tipos de adereces son responsables de generar actitudes prejuiciosas para con aquéllos que les poseen. Mismo frente a la discriminación y al carácter estigmatizado traído por los adornos, los entrevistados relataron no haber arrepentimiento por optaren por su uso, lo que puede ser considerado un factor constituyente de la identidad, sea esta personal o grupal.

Descriptores: Ego; Tatuaje; Perforación del Cuerpo; Prejuicio.


 

 

Introdução

A concepção de identidade surge simultaneamente na Antropologia e Psicologia como respostas diferenciadas à problemática do agir humano(1) e a identidade explica o sentido pessoal e a consciência da posse de um "eu", de uma realidade individual que torna cada sujeito único diante de outros "eus". O conceito identidade agrupa inúmeras ideias, entre elas, a de que existem pontos de referência que não se alteram com o passar do tempo, o que permite uma relação com os outros, possibilitando o reconhecimento de si(2). Um paralelo teórico entre identidade e economia é feito baseado na constatação de que ambos os territórios se estruturam por meio de relações de troca(3).

A identidade, neste estudo, é considerada, portanto, a permanente construção de uma consciência do eu a partir das relações desse com o outro. Durante esse processo contínuo, há momentos em que ocorrem mudanças de forma intensa, confusa e angustiante. Nas sociedades de consumo, onde tudo é efêmero e em constante transformação/adaptação, em acordo com o conceito de "modernidade líquida"(4), isso ocorre em uma velocidade assustadora, propiciando grandes crises de identidade.

A individualidade, no contexto da modernidade líquida, certifica que ao se olhar o outro com distanciamento, ou ignorância, não se percebem os detalhes, os pormenores e, assim, tem-se a ilusão de vislumbrar uma obra de arte coerente e unitária. "Essa obra de arte que queremos moldar a partir do estofo quebradiço da vida chama-se 'identidade'"(4).

Buscar uma identidade seria a tentativa de frear, de solidificar o fluxo de experiências pessoais. É tentar alcançar uma harmonia, uma lógica e consistência impossíveis no viver, é o que defende o autor e conclui: "Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma; tentamos desviar os olhos de vistas que eles não podem penetrar ou absorver. Mas as identidades, que não tornam o fluxo mais lento e muito menos as detêm, são mais parecidas com crostas que vez por outra endurecem sobre a lava vulcânica e que se fundem e dissolvem novamente antes de ter tempo de esfriar e fixar-se"(4).

Dentro de tal transitoriedade e diante da fluidez da sociedade de consumo atual, realizar a fantasia da identidade está vinculada à "capacidade de 'ir às compras' no supermercado das identidades"(4) e a moda é um instrumento perfeito nesse processo contínuo de criação e destruição de identidades. Mas, como a tatuagem, aparentemente sólida, fixa, que teoricamente duraria "para sempre", entra nesse jogo? Mais adiante as entrevistas realizadas neste estudo fornecerão pistas para a resposta.

Não se conhece ainda uma cultura em que o povo não tenha enfeitado o corpo de diversas maneiras por diferentes razões. Desenhos, materiais ou objetos que transformam o corpo numa peça de arte temporária ou permanente são linguagens simbólicas e representam marcas de identidade, seja ela individual ou social. Se o impulso de criar arte é um dos sinais que definem o ser humano, o corpo pode ter sido a primeira tela(5).

O primeiro registro literário da tatuagem foi em 1769. Trata-se do relato do navegador inglês James Cook sobre o que viu ao chegar ao Taiti, na Polinésia. Os nativos usavam uma finíssima espinha de peixe, ou ossos de passarinho, para perfurar a pele e injetar um pigmento feito à base de carvão e ferrugem. Surge daí também a palavra tatoo, do taitiano, que quer dizer desenho na pele(5).

No Brasil, o precursor da tatuagem moderna foi um dinamarquês chamado Knud Harald Lukke Gegersen, em 1959. Foi notícia em vários jornais e, em 1975, o jornal "O Globo" o considerou como sendo o único por um bom tempo, até que aos poucos foram surgindo seguidores(6).

A decoração do corpo em rituais é uma expressão de tradição e crença em várias partes do mundo. Fotografias de índios do Amazonas, vistas em exposição, mostram como algumas tribos costumavam pintar de preto o corpo dos meninos para simbolizar a morte deles antes do renascimento como adultos. Em algumas regiões da África, a pele lisa não desperta a menor atração; por isso, as pessoas costumam fazer tatuagens com cortes, controlando, com certas substâncias, o processo de cura das escoriações para formarem saliências(7).

Ao longo da história, as tatuagens também têm sido frequentemente associadas à punição e a comportamentos marginais. Em presídios do mundo inteiro, os próprios detentos se tatuam para diferenciar os crimes cometidos e as facções a que pertencem. Um outro exemplo disso é a famigerada Yakusa, máfia japonesa, cujos integrantes tatuam grande parte do corpo como prova de coragem e fidelidade ao grupo(8). Vale destacar, então, a relação entre a determinação de uma escrita corporal e a singularidade de um traço perante o olhar do outro(9).

"[...] o corpo, ao ser sucessivamente marcado, vem refletir uma estratégia de confrontação social cada vez mais informada, consciente e reflexiva acerca dos potenciais efeitos transformadores decorrentes dessa mesma intervenção"(10).

Como todas as atitudes, o preconceito é um misto de convicções, emoções e predisposições à ação. Uma maneira de simplificar o mundo é categorizar as coisas. Ao categorizar as pessoas em grupos, muitas vezes são criados estereótipos, os quais podem conter um germe de verdade, mas, ainda assim, distorcem a percepção de muitos. Quando se categoriza algo, a margem para a exclusão aumenta e geralmente o diferente é segregado, gerando o preconceito(5).

Nesse ponto surgem os estigmas: atributos sociais que um indivíduo ou grupo carregam e cujos valores podem ser negativos ou pejorativos. Esses atributos determinam um destino de exclusão ou perspectiva de reivindicação social pelo direito de ser bem tratado e ter oportunidades iguais. O estigma revela que a sociedade tem dificuldades para lidar com o diferente. Essa dificuldade se perpetua ao longo de gerações, o que leva à construção de uma carreira moral, para o indivíduo estigmatizado, isto é, sua identidade vai incorporar esses atributos, e a esses atributos corresponde um valor social negativo. Os atributos visíveis da identidade são sinais importantes para iniciar a longa trajetória de descoberta do outro, mas não são suficientes(2).

Para os significados das representações, entende-se que são compreendidos e constituídos pela realidade social, sendo, portanto, explicativos e prescritivos dessa. Intimamente articuladas às teorias científicas, as representações submetem conhecimentos elaborados pelas ciências a um processo de ressignificação, visto que são negociados e recriados no bojo das teorias populares(11). Um dos elementos fundamentais da teoria das representações é a interligação possível entre cognição, afeto e ação no processo de representação(12). Destaca-se, ainda, que as representações, de modo geral, funcionam como um sistema de interpretação da realidade, o qual rege as relações dos indivíduos no seu contexto físico e social e determina os seus comportamentos e práticas, guia as ações e as relações sociais, orienta-as, constituindo um universo de opiniões e de crenças organizadas em torno de uma significação central e em relação a um objeto determinado(13).

Assim sendo, constituíram-se em objetivos do presente estudo verificar as representações da tatuagem e/ou piercing na identidade de seus usuários e os preconceitos produzidos por tais adornos.

 

Método

O projeto da presente pesquisa foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, sob Protocolo nº0543/2005.

A aproximação dos participantes com a pesquisa ocorreu em um estúdio de tatuagem e/ou piercing de uma cidade do interior do Estado de São Paulo, Brasil, em um período estipulado de 15 dias, ocasião em que as pessoas que buscavam algum tipo desses adornos foram convidadas a participar. Dentre as que aceitaram o convite, foram inclusas, de forma aleatória, um número de 10, considerado adequado aos objetivos propostos. Cumprido esse processo de inclusão, os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foram submetidos a uma entrevista semiestruturada, com roteiro composto por uma parte com as características gerais dos participantes e, por outra parte, com 7 questões que buscaram contemplar os objetivos do estudo.

O roteiro foi testado com 3 pessoas que procuraram o estúdio em questão na busca pelos mesmos adornos, e não fizeram parte da amostra definitiva inclusa para fins de análise. O teste não apontou nenhuma dificuldade dos entrevistadores, que foram os próprios pesquisadores, em realizar a entrevista, e não apontou, também, nenhuma dificuldade dos entrevistados em respondê-la.

As entrevistas foram realizadas de forma individual, em uma sala adequada do próprio local, e as respostas foram registradas pelos pesquisadores, por escrito, no mesmo momento da realização da entrevista; posteriormente, foram sintetizadas e analisadas à luz da análise qualitativa-descritiva(6). Os resultados foram apresentados para cada uma das questões, com a utilização de trechos de falas dos participantes, de forma ilustrativa, seguidos de discussão.

 

Resultados e discussão

A Figura a seguir mostra as características gerais dos participantes da pesquisa.

 

Figura 1

 

Com relação ao gênero, o grupo estudado mostrou-se bem equilibrado, e a idade apontou para um grupo jovem com graus de escolaridade que variaram entre o segundo e o terceiro graus. As profissões foram diversas, inclusive com três sem emprego no momento, e a maioria de solteiros. Essas variações são de importância ímpar, pois apontam para um grupo heterogêneo com grandes chances de ser representativo de um grupo maior de pessoas que procuram estúdios, na busca por adornos para modificar, de alguma forma, a aparência de seus corpos, e, ainda, uma forma também de exteriorizar uma identidade que palavras e gestos certamente não exteriorizariam de forma tão autêntica. É de se supor que o adorno supera outras formas de expressão, pelo fato de sua firmeza estática transmitir uma resposta ao olho do outro sem propor nenhum tipo de explicação.

Dessa forma, utilizando a fala, mas apenas pela forma escolhida para a coleta de dados do presente estudo, que foi a entrevista, a questão inicial constituiu-se em: quem é você? A intenção foi a de abordar a representação da identidade dos entrevistados, pois constituir uma identidade implica definir quem a pessoa é, quais são seus valores e que caminhos pretende seguir(14). Ou, ainda, quais serão as posições assumidas frente ao que a sociedade espera, quais são os conceitos que o sujeito intenta polemizar ou harmonizar, que "ilusão" de identidade a pessoa aceitou para si.

O sentimento de ter uma identidade pessoal dá-se de duas maneiras: perceber-se como sendo o mesmo, contínuo no tempo e espaço e perceber que os outros reconhecem essa semelhança e continuidade(15). As pessoas apresentam grandes dificuldades em falar sobre as representações que fazem de si mesmas e como a sociedade as percebe. Dois entrevistados não responderam à pergunta.

Uma das respostas: "sou cheio de adornos", expressou por meio de uma imagem física uma representação da identidade. Evidencia-se aqui uma fuga da essência. O adorno assume papel tão imprescindível no processo de autoidentificação que o sujeito já não consegue reconhecer-se e até mesmo descrever-se por outros símbolos, traços de personalidade etc. Nota-se que o fixo exterior, paradoxalmente cristalizado nos adornos, esses vinculados à ocasião, agora imiscuídos de perenidade, esse fixo ilusório assume o papel que o interior, agora líquido, fluido, já não suporta(4).

Outra categoria de respostas remete à relação do indivíduo com a sociedade: "(...) de fácil comunicação, possuo vários amigos e gosto de festa". "Adoro fazer amizades (...)". "Sou uma pessoa que adora sair, fazer amizades, mas às vezes me sinto um peixe fora d'água, mas logo passa". É central nesse conjunto de respostas a representação da amizade e diversão como constituintes da identidade, comum na faixa etária dos entrevistados (18 a 31 anos). É interessante perceber que, na fala, há uma reafirmação da tendência a fazer amizade utilizada para justificar os momentos de solidão, de não identificação.

O canal de identificação que se abre entre o sujeito e seu grupo, os tatuados, ao mesmo tempo em que gera uma socialização, gera também uma diferenciação diante dos não tatuados e os estranhos, abrindo entre ambos a porta do preconceito.

"(...) nível 4 de transtorno obsessivo-compulsivo", diferente da maioria das pessoas, este entrevistado utilizou um diagnóstico psiquiátrico como forma de se diferenciar. O fixo, cristalizado em métodos diagnósticos e procedimentais, historicamente aceito e cientificamente comprovado. Um sólido que pode servir como raiz de uma identidade que vaga por um mundo desajustado, fluido. O próprio diagnóstico da busca obsessiva, compulsiva por uma marca de personalidade.

A maioria dos sujeitos utilizou adjetivos para falar da identidade: "Sou uma pessoa honesta, sensível e com alma de artista". "Sou uma pessoa feliz". "Sou uma pessoa tímida (...)". "Sou um cidadão honesto (...)". "Sou um cara trabalhador (...)". Esses clichês apresentados funcionam muito bem como a negação dos estereótipos geralmente emergidos do preconceito.

Ainda nessa categoria, uma resposta que chamou muito a atenção, pois a representação das qualidades descrita pela entrevistada não condiz com a imagem que passa é: "Eu sou uma pessoa muito romântica, muito sincera, sou muito carinhosa". CZL tem muitas tatuagens com desenhos de caveiras e demônios, vários piercings, veste-se sempre com roupas pretas com correntes e espetos, passa uma imagem agressiva que não condiz com sua representação de identidade. Os falsos autorretratos remetem a um mundo feito de imagens, a uma despersonalização, uma concepção de identidade como encenação(17). Na sociedade de consumo atual, no processo de individualização que se dá em um mercado em cujas prateleiras está o "verdadeiro eu", disponível para todos os gostos, com frequência, o simples ato de escolher já é um valor em si mesmo, pois "a ação de escolher é mais importante que a coisa escolhida"(4), por isso o descompasso entre figura externa e personalidade.

Na questão de número 2 perguntou-se: você se identifica com algum grupo? Sente-se pertencente a ele? O intuito foi verificar o sentimento de pertencimento a algum tipo de grupo em extensão à identidade individual. Dentre os entrevistados, quatro sujeitos disseram não se identificavam com nenhum grupo. Essa categoria de resposta mostra uma representação  de grupo como algo estruturado, remetendo à concepção de grupos secundários, nos quais os relacionamentos são formais, impessoais, segmentares e instrumentais. Dentro dessa visão, a família, os amigos, colegas de trabalho e outros de contato próximo não são considerados grupos.

Outra classe de respostas refere-se à multiplicidade de grupos. Os entrevistados têm a representação de grupos de referência. Não há necessidade de ser membro de um grupo para dar valor a seus padrões. Grupos aos quais as pessoas gostariam de pertencer podem influenciar o comportamento tanto quanto dos que participam dele. "Me identifico com vários grupos, mas passo a maior parte do tempo com os 'muito loucos'. Nem sempre me sinto pertencente a ele". "Na verdade me identifico com vários grupos da sociedade e não me sinto pertencente a nenhum especificamente". "Me identifico com os profissionais liberais, mas sou bem eclético em meus relacionamentos". "Sou eclético". Vale dizer que uma pessoa tem tantos "eus" quanto grupos – um eu um tanto diferente para cada grupo. Tornando-se socializados através da experiência de grupo. Essa é uma posição sobre a autoria dos discursos que está, muitas vezes, predeterminada, pronta. Basta que o sujeito assuma a posição(18). Dentro dessa modernidade líquida, o sujeito troca de posições como a água se ajusta ao seu recipiente(4). Um grupo já não é o bastante para essa personalidade.

Dois entrevistados classificaram-se em grupos específicos e manifestaram sentimento de pertencimento a eles: "Acho que os maconheiros... sim, sou pertencente". "Eu me identifico com o movimento underground me sinto pertencente e participante ativo". Ambas as respostas são representações sociais de estilos de vida, que expressam uma parcela significativa da identidade dos sujeitos.

A terceira questão buscou investigar a influência do grupo no "visual" dos entrevistados. Através da pergunta: as pessoas com quem se identifica compartilham de seus ornamentos? Apenas duas entrevistadas afirmaram que não. Em uma categoria intermediária enquadraram-se quatro participantes: "Algumas sim. Mesmo as que não possuem o ornamento participam da escolha dos meus". "Alguns sim e outros não". "Alguns, é muito difícil obter unanimidade se você se relaciona com uma gama muito grande de pessoas". "Nem todas as pessoas com quem me identifico possuem tatuagens".

Na quarta questão, em que momento de sua vida optou pelo uso da tatuagem e/ou piercing? Cinco dos entrevistados usaram representações cronológicas para descrever o momento de decisão: "(...) Quando tinha vinte anos resolvi colocar um piercing porque se eu quisesse poderia tirá-lo (...)". "Depois de adulto, já com vinte e três anos". "Durante a adolescência". "(...) quando tinha doze anos (...)". "Há doze anos atrás fiz a primeira" (esse entrevistado está com vinte e cinco anos).

Dentre os que usaram descrição cronológica, a maior parte relatou a adolescência como período no qual as pessoas passam por modificações físicas e psicológicas e que contribuirão fortemente na constituição definitiva de suas identidades. A construção da identidade pessoal é considerada a tarefa mais importante da adolescência, o passo crucial da transformação do adolescente em adulto produtivo e maduro(14), adolescente esse que está exposto a situações de vida para as quais nem sempre está pronto ou se acha capaz de enfrentar(19).

Em uma das respostas foi utilizada uma ação que simbolizou o momento: "Depois que comecei a trabalhar com ornamentos". Uma última categoria pode ser estabelecida, a de sentimentos que seus usuários tinham no momento. "Faz muito tempo, em uma fase meio complicada...". "Em um período de incertezas". "Quando tive coragem". As assertivas evidenciam momentos de passagem, de incertezas, de uma fluidez interior, de identidade em transformação, que uma forma de sedimentar um ponto de apoio está na tatuagem, no adorno, esse que, em muitos casos, tem um caráter reversivo.

Qual o significado de seus adornos? O que sente em relação a eles? Essas questões, pertencentes à de número 5, foram elaboradas com o intuito de explorar a representação do adorno para seu usuário. Foi possível discriminar três classes. Na primeira estão respostas referentes a representações dos adornos como complementos estéticos: "Somente estética como o próprio nome diz, adorno. Me sinto bem em relação à minha tatuagem". "Minhas tatuagens não têm nenhum significado especifico, são somente ornamentos para complementar minha beleza". Na segunda estão as representações relacionadas à significação atribuída aos desenhos das tatuagens: "uma das tatuagens é meu signo estilizado e a outra é uma feiticeira que é meu número no tarô. Minhas tatuagens são nas costas e às vezes nem me lembro delas, mas gosto muito delas". "São vários desenhos em um trabalho de free-hand, com animais, horóscopos, frases muito loucas que inventei. Não sou exibicionista, mas gosto de me olhar no espelho e vê-los". Na terceira, estão respostas que trazem os adornos como representações de momentos da vida quem marcam seus usuários: "Minhas tatoos, a maioria tem a ver com meu modo de pensar e com vários momentos bons da minha vida e também com a música". "Cada tatuagem é um momento de sua vida ou de sua personalidade em que você tenta expressar em forma de enfeite". Nessas falas, observa-se a tentativa de marcar, de forma duradoura, com pontos de um desenho, a figura sempre em formação da personalidade, mas essas marcas estão submetidas àquele eu ideal que se busca, estão relacionadas afetivamente à vida e aos afetos como, no caso, a música.

Outro fator estudado é o preconceito, com a sexta questão: você sente os efeitos do preconceito? Em caso afirmativo, como é este preconceito? Metade dos entrevistados afirmou já ter sofrido os efeitos do preconceito. "Sim, as pessoas olham como se eu fosse maloqueira, como alguém que não tem futuro profissional e outras coisas mais". "Sinto. Uma senhora quase me atropelou e me chamou de maloqueiro, e eu que estava certo". "(...) houve vez que precisei esconder, em alguns trabalhos de recepcionista em festas, que possui um público mais velho!". Essas falas representam a visão de uma sociedade que, ao longo dos tempos, percebe a tatuagem e o piercing como expressão do "maloqueiro", desocupado e sem futuro, ou seja, ambas são vinculadas à marginalidade. Mas há aí também uma evidência reveladora de que o preconceito não está apenas no outro. Está, muitas vezes, na forma como se imagina que o outro avaliará. Esconder seus adornos em um trabalho com um "público mais velho" revela o preconceito do próprio tatuado com relação ao outro. O preconceito é alimentado em uma via de mão dupla.

Na sétima e última questão perguntou-se: em algum momento se arrependeu de ter feito tatuagem e/ou piercing? As respostas mostraram uma grande identificação dos sujeitos da pesquisa com seus adornos, pois foram unânimes em afirmar que não se arrependeram de tê-los feito.

 

Considerações finais

Pode-se considerar que as representações de adornos como tatuagem e/ou piercing não são as mesmas para quem os possui e para quem os vê. Essa multiplicidade de representações se dá também entre os usuários de ornamentos. Pode-se dizer que, na presente pesquisa, o complemento estético, a significação pré-estabelecida do desenho e marca permanente de um momento significativo na vida, traduzem, de modo geral, as representações que usuários de tatuagem e/ou piercing fazem, na tentativa de estabelecer uma constante de identidade e marcas de personalidade.

A identificação com grupos também mostra ser um canal que gera atitudes preconceituosas. Os indivíduos são cooperativos em direção aos seus grupos e tendem a menosprezar os membros de outros grupos. Tal processo psicológico conhecido como diferenciação intergrupal seria um dos principais fatores que propiciam o surgimento de fenômenos sociais, tais como a formação de estereótipos e preconceitos. Mesmo que o indivíduo circule por grupos diversos, há choques de leitura.

A identidade recebe a influência de fatores intrapessoais (capacidades inatas do indivíduo e características adquiridas da personalidade), de fatores interpessoais (identificação com outras pessoas) e de fatores culturais (valores sociais a que uma pessoa está exposta, tanto globais como comunitários). O visual é o modo mais fácil que se tem para mostrar a diferenciação do sujeito, sendo, inclusive, o único para algumas pessoas, pois, racionalmente, não sabem como fazer. A moda é um instrumento perfeito nessa identificação fugaz, pois insere marcas de identidade com prazo de validade. Não por incompetência, mas por demanda de um mundo que flui ininterruptamente.

 

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Correspondence
Luiz Jorge Pedrão
Av. Bandeirantes, 3900
Bairro: Monte Alegre
CEP: 14040-902, Ribeirão Preto, SP, Brasil
E-mail: lujope@eerp.usp.br

Received: Apr. 27th 2012
Accepted: Apr. 23rd 2013