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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.9 no.2 Ribeirão Preto ago. 2013

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Representação da recaída em dependentes de crack

 

Representación de la recaída en dependientes de crack

 

 

Manuel Morgado RezendeI; Bruno PeliciaII

IPhD, Professor Titular, Faculdade de Psicologia e Fonoaudiologia, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP, Brasil
IIAluno do curso de graduação em Psicologia, Faculdade de Psicologia e Fonoaudiologia, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O crack tornou-se, nas últimas décadas, uma problemática de saúde pública, na sociedade brasileira. Esta pesquisa teve como objetivo verificar as representações da recaída em dependentes de crack à luz da teoria de Moscovici. O estudo foi realizado com seis participantes, que estavam em tratamento de dependência química em uma residência terapêutica. Para coleta de dados foi utilizada uma entrevista semiestruturada; o tratamento dos dados foi feito com a Análise de Conteúdo. Os resultados apontam a dificuldade de os entrevistados ultrapassarem a desintoxicação e a meta da abstinência. Conclui-se que a idealização da meta da abstinência é indissociável da constante ameaça de recaída, representada como qualquer consumo de substância psicoativa durante ou após o tratamento.

Descritores: Comportamento Social; Recidiva; Cocaína Crack.


RESUMEN

El crack se volvió, en las últimas décadas, una problemática de salud pública, en la sociedad brasileña. Esta investigación tuvo como objetivo verificar las representaciones de la recaída en dependientes de crack a la luz de la teoría de Moscovici. El estudio fue realizado con seis participantes, que estaban en tratamiento de dependencia química en una residencia terapéutica. Para recogida de datos fue utilizada una entrevista-semiestructurada, el tratamiento de los datos fue hecho con el Análisis de Contenido. Los resultados apuntan la dificultad de que los entrevistados sobrepasen la desintoxicación y la meta de la abstinencia. Se concluye que la idealización de la meta de la abstinencia es indisociable de la constante amenaza de recaída, representada como cualquier consumo de substancia psicoactiva durante o después del tratamiento.

Descriptores: Conducta Social; Recurrencia; Cocaína-Crack.


 

 

Introdução

Um dos maiores desafios na arena da dependência de substâncias psicoativas é o fenômeno da recaída. Apesar de evidentes manifestações de preocupação da sociedade brasileira e de certo alarme em relação à crescente visibilidade do abuso de substâncias psicoativas, em contextos sociais diversificados, os conhecimentos acerca do crack ainda são incipientes(1-2).

Conforme enfatizado pelos pesquisadores da temática "entre os dependentes de substâncias psicoativas que buscam tratamento, o usuário de cocaína e crack é o que possui os maiores índices de abandono"(2). O uso de drogas resiste à intervenção psicológica. Mesmo mantendo-se a abstinência de maneira artificial, por meio de internações, as recaídas parecem inevitáveis. Constatam-se, assim, de um lado o usuário de crack e as singularidades apresentadas pelos indivíduos implicados com a dependência química e, de outro lado, a necessidade de um tratamento complexo multiprofissional e interdisciplinar, com ações sobre o processo de recaída e dos manejos dos eventuais lapsos.

Existem, contudo, diferentes formas de abordagem e utilização do conceito e do fenômeno da recaída, desde as mais maniqueístas e ingênuas até as mais realistas e polêmicas, enquanto uns tendem a seguir uma visão dicotômica abstinência/recaída, ou seja, a centralidade do fenômeno está na substância psicoativa. Portanto, a dependência compreende violação da abstinência e remeterá à reinstalação do padrão anterior de uso do produto psicoativo, significando o extremo da recaída(3). Essa visão dicotômica de que a pessoa está doente ou sadia tem sido descrita sobre a recaída. A partir daí, esse se torna o par característico na arena tradicional dos tratamentos na dependência química e dos grupos de ajuda mútua, centrados na proposta de abstinência total, tornando-se quase obrigatório o indivíduo permanecer nesses dois universos exclusivos, ou transitar neles. Ou seja, a inscrição nessa dimensão do conflito de usar ou não a(s) substância(s) psicoativa(s) é vivenciada com certa constância pelo dependente, após haver um compromisso com a abstinência. Outros procuram uma perspectiva dimensional das idiossincrasias, sendo condição especifica daqueles que experimentam essa situação, que evidencia "(...) a importância do processo de recaída como um processo interativo e flutuante que jamais pode ser interrompido em alguns indivíduos"(4).

Também se deve distinguir entre "deslize" (lapso), que é o uso esporádico da substância, e a "recaída", que se refere ao padrão de uso anterior ao início da intervenção(5-6), podendo resultar, dessa compreensão, uma mudança positiva sobre seu comportamento. Entretanto, nos indivíduos que experimentam o "deslize" ou mesmo a "recaída", violando a abstinência, há um componente afetivo atrelado ao fenômeno que são os sentimentos de vergonha, culpa, raiva e desesperança, desencadeadas pela discrepância entre sua identidade anterior, como abstêmio, e seu atual comportamento de lapso ou recaída(7-10). "A retomada do uso de substância depois de um período de abstinência é uma frustração; porém, é parte do processo de recuperação. Altas taxas de recaídas são encontradas para vários abusos de substâncias, incluindo opiáceos, cocaína, álcool e tabaco. A maioria dos pacientes recai no primeiro ano de seguimento de tratamento. Os primeiros trinta dias depois do tratamento são especialmente vulneráveis. Enquanto muitas pessoas dependentes adquirem permanente estado de sobriedade, após vários tratamentos, muitos outros não atingem essa condição. A meta de abstinência permanente é atingida por menos da metade dos pacientes tratados"(11).

As diferentes formas de utilização do conceito têm dificultado a comparação entre os estudos sobre a recaída, principalmente na população brasileira que tem as suas especificidades. Ainda, em relação às dificuldades, o fato a ser destacado é que as pesquisas feitas pelos autores aqui apontados foram realizadas principalmente com alcoolistas. Outro fator significativo é atrelar a recaída como a reinstalação do padrão de uso. Dessa forma, o enfoque quantitativo do conceito obscurece o processo e os desdobramentos da recaída nos usuários/dependentes de crack.

O conceito de representação social(12)é caracterizado com base em "um sistema de valores, ideias e práticas, com uma dupla função: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitará às pessoas orientar-se em seu mundo material e social e controlá-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunicação seja possível entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes um código para nomear e classificar, sem ambiguidade, os vários aspectos de seu mundo da sua história individual e social".

As representações sociais possuem duas funções: "em primeiro lugar, elas convencionalizam os objetos, pessoas ou acontecimentos que encontram. Elas lhes dão uma forma definitiva, as localizam em uma determinada categoria e gradualmente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas. [...] Em segundo lugar, representações são prescritivas, isto é, elas se impõem sobre nós com uma força irresistível. Essa força é uma combinação de uma estrutura que está presente antes mesmo que nós comecemos a pensar e de uma tradição que decreta o que deve ser pensado"(12).

Então a tese é de que as interações humanas pressupõem representações, sejam elas entre duas pessoas ou entre dois grupos, que têm por tarefa criá-las e transmiti-las. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao nascimento de novas representações, enquanto as velhas representações morrem(12).

 

Objetivo

Investigar a representação da recaída de dependentes de crack, internados para tratamento, a fim de conhecer a dinâmica desse fenômeno.

 

Método

Caracteriza-se como exploratório, descritivo e indutivo; parte da observação de fatos ou fenômenos cujas causas se deseja conhecer(13). O enfoque é qualitativo; trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis(14).

Participantes

O estudo foi realizado com seis pacientes do gênero masculino entre 18 e 50 anos de idade. Todos apresentaram histórico de recaídas e estavam em tratamento por transtornos relacionados ao uso de crack numa residência terapêutica, para dependentes de drogas, situada na cidade de São Paulo, Brasil.

Instrumentos

Foi utilizada uma entrevista semiestruturada.

Procedimentos

O contato com a residência terapêutica, coparticipante da pesquisa, foi estabelecido com o responsável pela instituição, que se mostrou receptivo e prontamente aceitou acolher o projeto de pesquisa. Após a autorização institucional, os residentes, em tratamento, foram convidados a participar do estudo. Todos aceitaram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); em seguida, foi combinado o horário para as entrevistas, que foram realizadas e gravadas em uma sala de atendimento psicológico, da própria instituição.

Tratamento dos dados

Os dados obtidos com as entrevistas foram transcritos e tratados pela análise de conteúdo(15). Adotou-se a técnica de "leituras flutuantes"(15) para estabelecer os cortes e apreciações do conteúdo das entrevistas. Evitaram-se julgamentos de valores e preservou-se uma atitude empática no tratamento do material obtido. Desse modo, a análise dos dados pode ser considerada como um processo interativo pesquisador/entrevistado. As respostas dos entrevistados foram agrupadas, segundo as categorias temáticas vinculadas ao objetivo desta pesquisa.

 

Resultados e discussões

Os resultados foram distribuídos, pela análise temática do conteúdo, em cinco categorias e duas subcategorias. Pôde-se verificar, pela representação da recaída expressa pelos participantes (P), que a abstinência de crack e de outras substâncias psicoativas aparece como o objetivo do tratamento.

Categoria 1 – Recaída: qualquer uso de substâncias psicoativas durante ou após o tratamento

P1 – (...) Então eu falei: já que recaí eu vou para o arrebento! Porque já que errei uma vez, se eu bebi um gole ou um litro ou várias doses eu tinha recaído do mesmo jeito (...) (sic).

P2 – (...) As minhas recaídas eram um dia, dois dias, fumava cinco pedras em um dia, cinco no outro dia (...) (sic).

P3 – (...) Fomos ao supermercado aí eu vi umas latinhas de cerveja sem álcool, aí eu falei: olha a cerveja ainda continua sem álcool não dá para levar umas quatro não? Esposa: vou telefonar para a clínica! Aí falei pode deixar eu não quero não [rsrsrs] (...) (sic).

P4 – (...) Então eu vejo que a recaída é o uso. A minha exigência comigo é assim (...) (sic).

P5 – (...) Sabe, hoje eu enxergo isso, que a partir do momento que eu entro no bar e tomo o primeiro gole, já recaí, porque vai ativar totalmente a minha doença, e a minha compulsão (...) (sic).

P6 – (...) Ou é oito ou é oitenta, limpo para mim não é usar nada. Usou recaiu (...) (sic).

Nos recortes discursivos supracitados evidenciam-se para os participantes da pesquisa que há o compromisso com a abstinência, portanto, qualquer uso real ou pressentido torna-se recaída, significando que não há referência do lapso entre os participantes, que é o uso esporádico da substância. No plano social, tenta-se atrelar a ideia da «abstinência»=»cura» e «recaída»=»uso». Entretanto, essa representação sobre a recaída é retroalimentada pelo senso comum, principalmente nos grupos de ajuda mútua e nos tratamentos tradicionais disponibilizados a essa população, em geral pautados em protocolos centrados na abstinência total do uso de substâncias psicoativas, mais especificamente as ilícitas, que se efetua por meio de um critério preconizado pelos modelos de tratamento. Há que se considerar que as representações sociais têm duas funções: convencionalizar objetos, acontecimentos e pessoas e serem prescritivas, isto é, elas se impõem sobre nós com força irresistível, que nada mais é que uma combinação de uma estrutura que está presente antes mesmo que comecemos a pensar e decreta o que deve ser pensado(12). Convém considerar os fatores subjacentes à permanência dessa representação social da recaída. Esse é um campo marcado de estereótipos firmemente mantidos pelos adeptos ao programa dos 12 passos, e à presença de atividades de cunho religioso pautadas pelo discurso de ajuda ao próximo. Encontra-se, também, a falta de profissionais especializados e de equipes interdisciplinares da área da saúde, bem como planejamento e funcionamento das instituições. Inúmeros fatores intercruzam-se para fossilizar essa representação.

Categoria 2 – Sentimentos e recaída

P1 – (...) Começo a transferir a culpa pelo fato de ter trancado do jeito que não gostei. Raiva de mim mesmo, remorso, vergonha de mim perante a mim mesmo, a Deus e meus pais, até a sociedade porque as pessoas falavam como você está legal, até tentei esconder isso um pouco, mas não foi possível (...) (sic).

P3 – (...) Quando eu conheci os doze passos, o que era mesmo a doença, vem o sentimento de culpa, eu me sinto culpado, por eu saber que é uma doença, um problema eu saber da programação, ter como ter ajuda para não usar e ir usar. Senti-me com um pouco de remorso comigo mesmo (...) (sic).

P6 – (...) De tristeza, eu nascido e criado no evangelismo, ficar levando uma vida assim, eu fiquei muito triste, porque não consegui viver o evangelismo. Sabe de tristeza, angústia, solidão, tristeza, fico me desvalorizando, sou um noia, lixo (...) (sic).

Todos os participantes da amostra tiveram experiências (recaídas) de um estado emocional negativo (ou desprazeroso), tal como culpa, raiva, remorso, vergonha, mágoa, frustração, solidão, tristeza ou angústia, no momento da recaída. Os relatos dos participantes confirmam os resultados de outros estudos(7-10). Desse modo, é provável que o indivíduo continue com o consumo das substâncias, numa tentativa de reduzir as reações desagradáveis, intensificar e prolongar os efeitos positivos (de prazer). Esses sentimentos acabam cedendo poucos espaços aos questionamentos sobre o significado da "recuperação", que pode atravessar momentos de retorno à substância ou até mesmo a permanência no consumo. Os indivíduos, então, se encontram em uma situação de entrar no ambiente institucional que preconiza a abstinência, ou permanecem em um ambiente que consagra o uso. Ou seja, o dependente de crack não entra efetivamente no processo de recuperação e inicia o ciclo de tentativas mal-sucedidas de reparar o uso da droga – ciclo abstinência/recaída.

Categoria 3 – Dimensão psicológica: pré-recaída

P1 – (...) Sabe o que passa na minha cabeça é que quando entro em recuperação eu quero mostrar para as pessoas que consigo, sabe quero ser aparecido para o próximo e falar estou em recuperação, retornei das cinzas, que eu consegui arrumar um serviço, que estou com um carro legal nas mãos com som, com um tênis legal, sabe ser exibido, aí vem a recaída (...) (sic).

P4 – (...) Fico esperando coisas que não chegam. É muito louco. E isso leva à recaída. E isso que me leva à recaída. Eu acho que 60% das recaídas é porque eu fiquei esperando coisas que não aconteceram e as expectativas frustradas fizeram perder o gosto; puta, que bosta. Então vou usar droga. Então quando vejo sem gosto, sem motivação, eu uso drogas, e isso que faz eu usar droga sem motivação (...) (sic).

P6 – (...) Eu recaí na revolta, eu lembro que ia fazer uma coisa e não deu certo, sabe eu fiquei murmurando contra Deus, aquela raiva, aquele ódio; ah! que Deus é esse, estou no caminho de Deus e não aconteceu isso, sabe o negócio é fazer do meu jeito mesmo, sabe vou usar mesmo, sabe fica aquele shopping center de coisas negativas na mente. Então fui e realizei (...) (sic).

Há tensões entre o indivíduo e a sociedade. Dessa forma, o indivíduo/porta-voz revela as situações conflitantes do meio familiar e social e, desse modo, anuncia o processo de recaída por meio de uma linguagem não explícita das representações psicológicas. É nas tensões entre o indivíduo e o ambiente que as manifestações psicopatológicas se estruturam. É importante entender a recaída como um processo interativo e flutuante(4). A sua natureza é complexa e dinâmica, portanto, não pode restringir-se a uma ruptura da abstinência.

Categoria 4 – Vivências psicopatológicas durante a recaída

P1 – (...) Mas na verdade eu queria o prazer imediato! O fogo é que comecei a ver bicho, rato não tem nada ver sabe, são essas loucuras do crack (...) (sic).

P3 – (...) Minha filha e minha esposa procuram um psicólogo, então eu passei por um psicólogo, aí ele falou: como está sua vida? Aí eu fui contando. Eu só tenho uma coisa para falar: você está doente se você não parar você vai morrer. Aí eu assustei, estava verde fumando crack e tomando pinga com menta, eu estava achando que a pinga com menta estava na minha pele (...) (sic).

P5 – (...) Então eu recaía, e quando eu parava para ver já tinha fumado várias. Sabe, eu fumava e ficava trancado dentro de casa, e dava um pânico em mim, eu fechava todas as janelas, fazia o menos barulho possível, sabe o cheiro, eu morava em apartamento, e achava que os vizinhos iam sentir o cheiro, que iam bater na minha porta, achava que sei lá, reclamar, ouvia vozes, sabe acho que não sei, falando atrás da porta, sabe que fedor! Está usando droga aqui dentro? Fazia um mal tremendo, então trancava tudo, tentava ficar em silêncio, deixava um palitinho da televisão só eu ouvia aquilo, e eu suava e transpirava muito, pegava uma toalha ali uma camiseta ali... Ficava enxugando e soltando nos cantos assim sabe, e fumando ela uma atrás da outra, sabe era um negócio meio estranho (...) (sic).

Os relatos das entrevistas mostram que os sintomas clássicos de delírio e alucinações podem estar presentes durante o período da recaída. O desencadeamento a priori da vivência psicopatológica emerge pelo viés da intoxicação aguda e do uso indiscriminado do crack.

Os indivíduos, nessas circunstâncias, podem limitar a vida mental e os laços afetivos, com perda de vínculos e a discriminação entre formas discursivas da realidade intrapsíquica e da realidade compartilhada. O consumo crônico de crack, em geral, associado com outras substâncias psicoativas, pode ocasionar complicações subjacentes, tais como problemas cardíacos, pulmonares, lesões das vias aéreas, deficiências vitamínicas, entre outras. Podem ocorrer complicações neurológicas: cefaleias, convulsões, acidentes vasculares e cerebrais, transtorno de movimento, entre outros(16).

Subcategoria – Craving

P2 – (...) Eu vi minha mãe vendo toda a cena, porque eu sempre escondia da minha mãe, ela até sabia que usava, mas nunca viu. Depois eu casei fui morar fora, então ela não ficava sabendo porque usava no final de semana, e ia trabalhar na segunda-feira, até ficava na fissura quando acabava a droga, mas estava dentro de casa e minha mulher acabava conversando um pouco, e dava uma tranquilizada. Mas nesta ultima eu a vi chorando e ela é evangélica, gritava cada coisa (...) (sic).

Durante a recaída, o participante apresenta sintomas relacionados com a cessação ou a redução do uso pesado e prolongado do crack. O craving, ou fissura, considerado não só como desejo, mas como antecipação do resultado positivo do uso da substância e o alívio dos sintomas de abstinência ou do afeto negativo(17), causa intensas alterações psicológicas e fisiológicas; essa alteração, na sua dinâmica somática e psíquica, durante ou após o uso, causam sofrimento e prejuízos clinicamente significativos no funcionamento social e ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo(18).

Subcategoria – Morte

P6 – (...) O sofrimento de não querer viver, querer parar e não conseguir, e só enxergar a escuridão (...) (sic).

P4 – (...) Então minha vida deu uma virada no avesso, já não fui trabalhar, minha vida virou do avesso de uma forma que eu via a degradação, agora que se foda-se, vou fumar crack até morrer (...) (sic).

Nessas citações observaram-se as consequências destrutivas e a "existência do desejo persistente ou esforços mal-sucedidos no sentido de reduzir ou controlar o consumo da substância"(18). É agora que o 'objeto' crack assume uma posição de destaque e de prevalência na vida dos participantes. Para tentar evitar o descontrole, tentam matar o sofrimento. A busca compulsiva pela substância apresenta-se como um dos principais elementos do quadro de dependência química [ou psíquica].

Categoria 5 – Controle externo da recaída

P1 – (...) Então quando eu estou legalzinho estou mais fortinho fisicamente, com um carro legal, porque meu serviço dá um dinheiro para mim, eu faço tudo no carro injeção eletrônica, câmbio automático, freio abs. Então quando eu volto eu falo: eu sou o cara eu sou foda! Então eu olhava para pessoas, e aí você lembra como eu estava, olha como estou hoje, de me mostrar sabe, que estou bem externamente não no meu interior (...) (sic).

P2 – (...) A verdade eu transfiro isso para o sexo e jogo de cartas. Quando minha mulher sai, eu falo: deixa R$100,00 reais para jogar carta. Eu transfiro sexo e jogo. Outra coisa é o trabalho, às vezes, quando não estou legal, eu peço para dormir na empresa, trabalho pra caramba (...) (sic).

P3 – (...) Depois deste tratamento eu estou tentando fazer, é evitar sair, ou ficar sozinho dentro de casa, e ficar com dinheiro, saber que tem dinheiro sobrando e um dos fatores que me pega (...) (sic).

P4 – (...) Eu preciso de atividade, eu sou movido por entretenimento, se eu não tivesse o meu trabalho que toma 24 horas, eu não ia usar droga. Tem que ter o que fazer. É a única coisa que me segura é ter o que fazer (...) (sic).

P5 – (...) Eu evitei muita coisa, olhava para o bar e falava eu não posso, então ia para igreja, mas mesmo assim eu passava em bar, eu olhava para a biqueira dizia que não podia, mas querendo, ia para as festinhas e shows mesmo não podendo mas, ia, eu estava me arriscando, eu não estava me segurando mais eu estava querendo uma coisa que eu não podia, mas estava arriscado a usar, mas sabe eu falava: eu posso não vai dar nada, acabou dando isso! Eu não me conseguir me segurar em certos momentos (...) (sic).

P6 – (...) Deixar de fazer o que está dando certo, deixar de ler uma bíblia, ir à igreja, ouvir as outras pessoas, eu começo a manipular, sabe só porque estou limpo, eu não preciso de Deus, sabe eu não preciso ouvir o psicólogo, não ficar longe das biqueiras, não ligar mais para o tratamento, o tratamento é eterno (...) (sic).

Socialmente os participantes do estudo "prometem" a abstinência, mas, intimamente, estão ameaçados pela recaída. Ou seja, a centralidade da vida mental e social é deslocada para a substância psicoativa. Sendo assim, os participantes atribuíram aos controles externos os fatores e as situações que podem adiar a recaída e fazer com que permaneçam abstêmios. A categoria agrupa os recortes discursivos que mostram a necessidade de o indivíduo permanecer constantemente na esfera de tratamento; mesmo engajado em atividades socialmente aceitas e em abstinência, as recaídas parecem inevitáveis. A identidade do dependente químico, pautada no adoecimento, pode ocasionar enrijecimento nos vínculos sociais, principalmente em grupos não identificados com a sua psicopatologia.

 

Considerações finais

Conclui-se que os resultados sobre a representação da recaída dos dependentes de crack pesquisados apontam que há dificuldades de elaboração do processo que move esse complexo fenômeno. Há concordância entre os participantes de que a recaída é qualquer uso de substância(s) psicoativa(s). Pode-se identificar que, em função dos sentimentos afetivos negativos durante a recaída, os participantes deste estudo permanecem no uso e abuso de substâncias psicoativas, na tentativa de amenizar os sintomas desagradáveis ou antecipar os efeitos positivos (prazer) do uso da substância. Dessa forma, há, nesses indivíduos, o distanciamento das relações interpessoais e a dificuldade de pensar os conflitos emocionais, que contribuem decisivamente para circunscrevem suas vidas em torno do objeto-droga.

E fundamental, portanto, repensar as estratégias de planos de prevenção de recaída, e do manejo dos eventuais lapsos que podem ocorrer ao longo da trajetória de vida dos indivíduos. Sugere-se, outrossim, a necessidade de ampliação de estudos transversais e a inclusão de pesquisas longitudinais para outras populações de dependentes de crack, com inclusão de diversas faixas etárias e do gênero feminino, bem como a interação entre pesquisadores e clínicos que atuam na área.

Os clínicos e profissionais da saúde que atendem dependentes de crack têm o desafio de fomentar o trabalho psicológico de aprender com a experiência emocional da recaída e dos lapsos de seus pacientes. Destarte, será possível ampliar a ultrapassagem do conhecimento da psicopatologia dos códigos diagnósticos e a repetição acrítica dos discursos de grupos de ajuda mútua, anônimos ou não, que fortalecem a cultura do adoecimento por meio da determinação do ciclo abstinência/recaída do consumo da substância psicoativa. A imposição da meta de abstinência, nos discursos leigos e científicos hegemônicos, pressiona a recaída, dificulta a compreensão da necessidade da desintoxicação psicofarmacológica e aborta o nascimento do sujeito protagonista de sua vida.

 

Referências

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Correspondence
Manuel Morgado Rezende
Av. Dom Jaime de Barros Câmara, 1000
Bairro: Planalto
CEP: 09895-400, São Bernardo do Campo, SP, Brasil
E-mail: manuel.rezende@uol.com.br

Recebido: 3 Dez. 2012
Aceitado: 1 Abr. 2013

 

 

1 Apoio financeiro da Universidade Metodista de São Paulo, processo nº 452661-11.