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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.10 no.1 Ribeirão Preto abr. 2014

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v10i1p-1-2 

 EDITORIAL

 DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v10i1p-1-2

 

O cuidado a pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas: reflexões sobre o campo psicossocial

 

 

Divane de Vargas

Editor Associado da SMAD, Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, e Professor Associado da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil, e-mail: vargas@usp.br

 

 

Historicamente, a assistência a pessoas com problemas associados ao uso de álcool e outras drogas esteve ligada à assistência psiquiátrica, centrada no modelo hospitalocêntrico, sendo do mesmo modo marcada pela violação dos direitos humanos e pela má qualidade prestada ao usuário(1).

A última década do século XX e a primeira década do século XXI presenciaram o início de significativas mudanças, no contexto da atenção psiquiátrica no país e, consequentemente, na atenção àqueles com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, as quais se devem, em grande parte, ao arcabouço teórico, conceitual jurídico e político que foi e vem sendo construído.

A Declaração de Caracas, de 1990, Lei nº224, que normatizou a implementação de Núcleos/Centros de Atenção Psicossocial (NAPS/CAPS), em 1992, a promulgação da Lei nº10.216, de 2001, que chancelou as mudanças ocorridas na década de 1990, e a Lei nº336, de 2002, que redefiniu os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) criados em 1992(1), constituem-se em importantes marcos a serem considerados quando há a proposta de reflexão sobre o cuidado a pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, no campo pisicossocial.

Embora todas essas leis e recomendações tenham contribuído significativamente para a mudança de paradigma no cuidado a pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, a Lei nº336/2002 constitui-se num demarcador importante para o cuidado na área das adições no Brasil. Com a implantação em todo o território nacional dos Centros de Atenção Psicossocial álcool e drogas (CAPS ad), essa Lei não só legitima o papel do Estado na atenção a essa clientela, por meio da política do Ministério da Saúde(2), mas, também, determina novos modos de se conceber o cuidado e seu objeto, colocando esse serviço como dispositivo central da rede de cuidado no campo psicossocial.

Ainda que a rede de atenção psicossocial a pessoas com problemas relacionados ao uso do álcool e outras drogas seja constituída por vários dispositivos da rede de atenção básica de saúde, dos hospitais gerais, das emergências e dos serviços especializados, e que o campo psicossocial possa e deva ser o balizador do cuidado em todos esses espaços, acredito que o CAPS ad constitua-se como o principal cenário de implementação dessas práticas, e essa perspectiva norteará minhas reflexões sobre o cuidado, já que é na definição desses serviços, inclusive, que legalmente a enfermagem e o enfermeiro passam a integrar formalmente as equipes mínimas de cuidados a essa população.

Apesar de acreditar que as reflexões trazidas aqui cabem a qualquer profissional envolvido no cuidado no campo psicossocial, pois, todos nós estamos demarcando um processo recente em que continuamos realizando nossas atribuições técnicas do núcleo específico de cada profissão, mas com outro enfoque, novos conteúdos e interações, e por considerar que é no contexto do CAPS ad que o enfermeiro tem o solo mais fértil para cuidar nessa perspectiva, esse profissional e suas práticas de cuidado no campo psicossocial serão enfatizados.

Isso posto, é preciso considerar que, embora a intervenção do Estado e a criação da rede de cuidados que legitimam e privilegiam a atenção às pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas, sob a ótica do campo psicossocial, essas ações não garantem, por si só, a transformação do modus operandi do trabalho com essa clientela. Nessa perspectiva, é necessário que o conceito do cuidar seja ressignificado, e a desconstrução da ordem manicomial excludente, a qual passa necessariamente por uma contestação radical da nossa relação com o chamado ‘"louco", nesse caso o usuário de álcool e outras drogas, é imperativa(3).

Para isso, faz-se necessária a apropriação e a utilização pelo enfermeiro de uma nova linguagem no campo da Saúde Mental, que busca refletir os novos conceitos que orientam os dispositivos assistenciais propostos, em substituição à ordem manicomial e, consequentemente, em perceber a dependência química como uma questão da existência, passando a valorizar o sujeito enquanto cidadão, em sua singularidade.

A transição do modelo do cuidar também é acompanhada pela mudança do paradigma da multidisciplinaridade para a interdisciplinaridade, nessa última a comunicação é imperativa e implica superar os termos especializados, fechados, dando origem a uma linguagem única para expressar os conceitos e as contribuições das várias disciplinas, o que vai possibilitar a compreensão e os intercâmbios(4).

Nesse contexto, apesar de preservado, o núcleo específico da profissão do enfermeiro é ampliado(4), seu trabalho ganha novos contornos e o objeto necessita ser redesenhado, pois, nessa perspectiva, as ações não visam mais somente a "cura", mas, também, a busca pelo significado do uso do álcool e das outras drogas para o sujeito, que passa a ser ouvido, expressando suas dificuldades, temores e expectativas em relação ao seu momento de vida e às suas escolhas de tratamento.

O cuidado no campo psicossocial pressupõe que, para além da quantidade de drogas utilizada, as doses e os efeitos, o enfermeiro acolha sem julgamento, avalie cada situação, cada usuário, discutindo e apontando o que é possível, o que é necessário, o que está sendo demandado e o que pode ser ofertado.

Estímulo para a vida e a busca pela autonomia passam a ser instrumentos tecnológicos que viabilizam o acesso ao direito à cidadania e enfatizam a atenção, determinada pela proximidade e o respeito ao usuário e não por um saber médico que se reduz ao tratamento medicamentoso e à observação de seus efeitos, o que pressupõe que a atenção não mais esteja voltada exclusivamente à remissão dos sintomas (abstinência).

Para operacionalizar essas ações nesses cenários de prática, o enfermeiro pode valer-se de instrumentos específicos de seu núcleo de conhecimento, representados por tecnologias próprias da profissão como o relacionamento interpessoal e a comunicação terapêutica que, associados e potencializados pelas várias abordagens psicossociais disponíveis, podem ser utilizados no campo de trabalho ampliado, possibilitando abordagens que estejam direcionadas para aquilo que importa ao sujeito, o que deve balizar a proposição do projeto terapêutico singular, pactuado entre a equipe e o usuário.

A ampliação do campo de atuação do enfermeiro na área de dependência, na perspectiva psicossocial, lhe confere um papel de agente terapêutico, capaz de produzir mudanças na forma de cuidar e vivenciar a problemática do uso de substâncias psicoativas e da reabilitação psicossocial do indivíduo. Isso deve estimular métodos criativos e inovadores, visando solidificar a redefinição do papel do enfermeiro nessa concepção de cuidado.

Entretanto, apesar dessa nova possibilidade de cuidar e da vasta possibilidade de atuação e interação do enfermeiro no cuidado a essa clientela no campo psicossocial, como em toda mudança paradigmática, a mesma não está isenta de dificuldades e limitações que se interpõem no cotidiano dessas práticas, e ainda precisamos vencer alguns obstáculos para a plena inserção nesse campo.

Dentre essas dificuldades, a necessidade de capacitação profissional para agregar conhecimentos, para além do paradigma clínico-biomédico, da visão do distúrbio somático psicológico ou transgressão social, que incluem saberes de outros campos como psicologia, ciências sociais, antropologia e política, sem os quais nossa atuação fica inviabilizada.

Eis o desafio, garantirmos nossa efetiva inserção no cuidado a pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas no campo psicossocial, refletindo sobre a nossa prática atual, a prática que desejamos e aquilo que queremos para os enfermeiros que virão, o que não nos exime de pensar, também, nas questões do ensino da enfermagem em Saúde Mental.

 

REFERENCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria Executiva. Coordenadoria Geral Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2005.         [ Links ]

2. Ministério da Saúde (BR). A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de àclool e Outras Drogas. Brasília: Minsitério da Saúde/Secretaria executiva; 2004        [ Links ]

3. Duarte MJO. Por uma cartografia do cuidado em saúde mental: repensando a micropolítica do processo de trabalho do cuidar em instituições. In: Bravo MIS, Vasconcelos AM, Gama AS, Monnerat GL (org.). Saúde e Serviço Social. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Cortez; 2009. p. 150-64.         [ Links ]