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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versión On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.10 no.1 Ribeirão Preto abr. 2014

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v10i1p-29-34 

ARTIGO ORIGINAL

 DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v10i1p-29-34

 

Psicose e drogadição: a construção do caso na clínica de enfermagem

 

 

Francisco Paiva FilhoI; Lia Carneiro SilveiraII

IMSc, Professor Substituto, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil
IIPhD, Professor Assistente, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se da construção de um caso clínico no contexto do trabalho como enfermeiro de um serviço da atenção psicossocial. Para isso, buscou-se orientar tanto a clínica como a elaboração escrita, a partir do referencial psicanalítico. Assim, apresenta-se o caso de Raul, o "Maluco Beleza", que possibilitou o aprendizado do trabalho com o inconsciente e orientou a autoria na direção do tratamento. Percebe-se que, assumindo o papel de "Secretário do Alienado", como o consumo de álcool, para Raul, se relaciona com uma tentativa de laço social e como o significante "Raul Seixas", que faz suplência ao Nome-do-Pai, permite uma amarração possível para esse inconsciente a céu aberto, característico da psicose.

Descritores: Enfermagem Psiquiátrica; Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Inconsciente (Psicologia); Psicanálise; Transtornos Psicóticos.


 

 

INTRODUÇÃO

A questão da droga, atualmente, tem sido encarada como grave problema que envolve não apenas a saúde, mas toda uma estrutura de políticas sociais, merecendo a atenção de diversas áreas. A discussão sobre o que se chama de droga está longe de ser algo unidirecional, ou algo meramente destinado à punição ou às restrições.

No Brasil, a droga só começa a se caracterizar como problema de saúde pública, com o processo de "metropolização" do Rio de Janeiro, após a chegada da família real portuguesa, quando se intensifica o comércio de bebidas destiladas e o consumo torna-se consumo de massa, especialmente pela classe trabalhadora formada nessa época(1).

Nas últimas décadas, o estabelecimento de políticas públicas, voltadas para a contenção do uso de álcool, aparece como tentativa de barrar os efeitos do que é produzido pelo próprio capitalismo. Há um paradoxo aparente entre a proliferação de aparatos (organizações não governamentais, universidades, entidades privadas que financiam pesquisas e experiências comunitárias diversas com a infância e a adolescência), carregados de um discurso do querer saber, e o imobilismo espantoso com que a sociedade brasileira mantém o assunto.

Assim, os problemas relacionados ao consumo de substâncias ditas psicoativas, no campo da saúde mental, ainda necessitam de ferramentas para suas ações. Nas últimas décadas, vários serviços de saúde extra-hospitalares foram criados, porém, a institucionalização não está presente apenas nos tijolos e concretos que erguem os muros da exclusão, mas, principalmente, no pensamento herdado, acrítico e estático, que repercute em práticas incapazes de responder aos sofrimentos da contemporaneidade. Pode-se citar, brevemente, a resistência dos hospitais gerais em acolher leitos psiquiátricos, o financiamento público a instituições privadas baseadas no isolamento e na correção moral (comunidades terapêuticas), projetos terapêuticos em torno apenas das medicações psiquiátricas.

O modelo técnico-assistencial, ainda vigente na formação do profissional de saúde, tem deixado lacunas quando se observa a inserção e desenvolvimento profissional. Na psiquiatria e, mais recentemente, na saúde mental e na drogadição, essas questões passaram a influenciar a formação dos alunos, que trabalham objetivamente com uma clientela subjetiva(1).

A experiência com a atenção a usuários de álcool e drogas coloca o enfermeiro face a face com inúmeros desafios. Por exemplo, trabalhar numa perspectiva diferente daquela aprendida na formação acadêmica, altamente prescritiva e centrada na doença. Além disso, enfrentar a sua própria ansiedade, insegurança, preconceito e até incapacidade para lidar com o usuário de álcool e drogas(2).

Há uma dificuldade em articular abstinência e redução de danos na assistência, dentre outros fatores específicos da área, como o estigma e a definição do que é um consumo normal ou patológico. Existe distância entre o trabalho nesses serviços e a formação acadêmica, uma vez que esses assuntos, quando são abordados, o são de uma forma superficial ou duramente amparada no modelo biomédico.

Essas dificuldades exigem um novo posicionamento da Enfermagem. Posicionamento que demanda mudanças, tanto na teoria como na prática de cuidados clínicos que exige novas atitudes ante os dilemas trazidos por um mundo onde as demandas subjetivas dos indivíduos muitas vezes ficam relegadas a segundo plano.

Dessa forma, o profissional precisa despir-se da posição de detentor do saber do qual é supostamente revestido, tanto pelo pensamento cartesiano como, também, por quem vem buscar respostas para a sua dor com um mestre soberano(3).

A psicanálise visa estabelecer uma relação intersubjetiva, um novo laço social, capaz de possibilitar que se transite da experiência da droga para experiências de sujeito. Dessa maneira, ao contrário da medicina e da psiquiatria, que colocam a dependência química no lugar de doença, sugere-se outra leitura, entendendo que se trata de um fenômeno complexo, cuja dimensão psíquica pode inscrever-se de modo contingente na vida cotidiana dos indivíduos, portanto, passível de ser revertido(4).

O trabalho com a psicanálise, uma vez que é orientado pela ética do desejo, pressupõe o desejo como ponto de partida para suas ações. Assim, os estudos nunca cessam, a não ser que seja para dar vez às palavras daqueles que se pretende atender.

 

A Construção do Caso Clínico

Devido ao fato de esta pesquisa tomar como referencial a psicanálise, procurou-se adotar uma postura, perante o caso estudado, que permitisse considerar a existência do sujeito do inconsciente e das consequências de se assumir essa posição. Sendo assim, optou-se por utilizar uma forma específica de abordagem, com base em um método deduzido após análise dos casos publicados de Freud(5).

Buscou-se por essa construção teórica, seguindo o caminho do pathos dos pacientes (daquilo que os afeta), que só acontece num tempo a posteriori. Esse pathos pode ser desmembrado em três momentos: o pathos-doença, o pathos-transferência e a escrita da construção teórica(6).

A escrita do pathos-doença é a descrição da história da doença. Trata-se de uma mera apresentação da sintomatologia e da relação com a história da vida do sujeito.

A escrita do pathos-transferência é o segundo passo. Trata da relação transferencial pesquisador/sujeito, centrado na promoção de uma retificação subjetiva, estimulando o sujeito a aplicar-se naquilo de que vem a se queixar.

A escrita da construção teórica consiste na análise e interpretação das histórias da doença e da transferência do sujeito, para ascender no nível da construção teórica em psicanálise. Tem por objetivo realizar uma discussão clínica, analisando e interpretando os dados descritivos do pathos-doença e do pathos-paixão-transferência. Nessa delimitação, são selecionados fenômenos, temas ou questões que norteiam a pesquisa teórica.

Escolheu-se um caso entre tantos atendidos no contexto da clínica de Enfermagem no CAPSad. A escolha do caso para a elaboração deste escrito aconteceu em virtude de o paciente ter realizado com o pesquisador o acolhimento inicial no serviço, com demanda inicial relacionada ao uso de drogas (álcool e cigarro, neste caso). Além disso, muitas questões foram levantadas ao longo do tratamento, especialmente na relação entre a psicose e o uso da droga. Outro fator importante para essa escolha foram os indícios transferenciais que o paciente dirigia ao pesquisador.

Os atendimentos ocorreram entre 2009 e 2011, no contexto da clínica de Enfermagem em um CAPSad da região metropolitana de Fortaleza, CE. Tiveram regularidade variada, como será visto adiante, mas suficiente para essa construção teórica. Para auxiliar na elaboração deste escrito, recorreu-se a um diário particular com as anotações feitas após as consultas.

Este trabalho faz parte de uma pesquisa maior intitulada "Clínica do sujeito e psicanálise: pensando novas estratégias de intervenção em saúde mental", aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará. Protocolo nº10340285-3.

É importante lembrar que a pesquisa mantém preservadas a história e a identidade do próprio sujeito (que aqui será tratado por Raul), atendendo-se a certos conteúdos, determinadas cenas do caso clínico, aquelas que mantêm relação com o tema da investigação. Essa construção aconteceu pela produção compartilhada entre analista e analisante, tendo como técnica a livre associação, valorizando as rupturas no discurso, reveladoras do inconsciente desse último(7).

 

Caso Clínico: o "Maluco Beleza"

A escrita do pathos-doença

O primeiro contato com Raul aconteceu durante um baile de carnaval, promovido pelo serviço do CAPSad, para os pacientes e familiares. Já no final da festa, quando estava fazendo os últimos agradecimentos no microfone, uma figura cambaleante, com roupas sujas, sinais de embriaguês, aproximou-se e pediu para ler algumas poesias suas no microfone. Perguntado pelo seu nome ele respondeu: "Raul Seixas: o Maluco Beleza".

Então, leu num papelzinho amassado que tirou do bolso frases como: CAPSad e você, tudo a ver. Apague o cigarro e acenda sua mente e viva contente no meio da gente. Convidado para uma avaliação inicial no serviço ele aceitou.

Quando se perguntou o motivo de estar ali, ele respondeu: Vim fazer tratamento para parar de beber e fumar. Dizia que bebia quando ficava triste, geralmente acompanhado de amigos ou desconhecidos. Bebia em qualquer lugar, menos em sua casa. Durante o consumo etílico lembrava-se do pai, dos mortos, além de ter dor no estômago. Ao beber, sentia dores no peito, falta de apetite, insônia, tristeza, ouvia vozes que diziam para acabar com a família. Quando se pediu para falar mais sobre essa demanda que o trouxera ao CAPSad, Raul entremeou sua fala com a letra da música "Cowboy fora da lei" (dita de forma ininterrupta, sem pausas).

Ele não cantava, nem recitava. Apenas dizia de uma só vez toda a música e, apesar de sua queixa inicial dizer respeito ao consumo de álcool e cigarro, geralmente essas músicas vinham seguidas de queixas relativas às internações psiquiátricas pelas quais passou: Passei por vários manicômios... eles me maltrataram muito. Me batiam, não podia falar nada. Era uma covardia. Covardes.

Sobre o início dessas internações falou: Tinha emprego bom na Têxtil União, foi com a morte do meu pai que me afundei sem razão. Quanto ao pai, Raul disse que esse era agressivo e bebia muito: Um dia ele passou mal. A gente levou ele para o hospital. Morreu por erro médico. Isso foi há vinte anos e Raul afirmou sentir muita falta dele. Também falava que era humilhado pelo pai, quando ainda moravam no interior, que ele o colocou para trabalhar desde criança e chegava a bater nele e nos irmãos, caso não o obedecessem. Ele era agressivo e alcoólatra.

A mãe vivia acamada e era Luiz, o irmão mais velho de Raul, quem lhe prestava todos os cuidados. Queixava-se de dificuldades no relacionamento com esse irmão, pois ele gosta muito de humilhar. Dizia que chegava a passar fome porque não entrava em casa para pegar comida. Comia aquilo que os outros ofereciam na rua, nos bares. Além disso, dizia que o irmão Luiz o impedia de chegar próximo à mãe e referiu uma cena que lhe causava muito incômodo. Luiz dava banho na mãe e Raul questionava: Como é que pode? Ele carrega ela sem roupa do banheiro para o quarto.

Assim, a demanda inicial de Raul em relação ao uso de álcool e cigarro foi se deslocando para as queixas em relação às internações, ao pai e ao irmão, e mais tarde viriam a ser também queixas dirigidas aos profissionais do serviço. Nessa época, Raul reduziu bastante o consumo de álcool, que antes era diário. Não era mais uma constante em suas queixas, até a semana de seu aniversário.

A escrita do pathos-transferência

Na semana após seu aniversário, voltou a beber intensamente. Apareceu muitas vezes no serviço bastante alcoolizado, queixando-se de que os profissionais do serviço não o atendiam bem. Começou a se sentir assim após a exibição do filme "Bicho de sete cabeças", feita no CAPSad na semana de seu aniversário. Sobre o personagem principal do filme revelou: Ele era eu. Dizendo que "reviveu" todas as humilhações sofridas durante as internações nos hospitais psiquiátricos. Além disso, nesse mesmo período, a medicação que tomava, Neozine (levomepromazina – medicamento antipsicótico que pertence à classe das fenotiazinas alifáticas), foi substituída pela clorpromazina, pois a primeira estava em falta na farmácia da instituição. Só consigo dormir com o Neozine, não quero outro. Voltou a beber intensamente e a comparecer ao serviço com falas agressivas, atribuindo aos profissionais falta de cuidado.

Nesse momento foram condensadas queixas quanto ao serviço, ao irmão Luiz e ao pai. Falava de seu medo de ser interditado e ficar sob a tutela do irmão. Em relação ao pai, sua fala vinha mais uma vez em forma de letra de música, agora a de "Sapato 36". Eu calço é 37 meu pai me dá 36 dói mas no dia seguinte aperto meu pé outra vez eu aperto meu pé outra vez.

Mesmo quando Raul comparecia alcoolizado, escutava-o, na área aberta do serviço, na portaria, em vários espaços que ele percorria na unidade. Andava muito agitado, corria, se machucava. Numa dessas vezes, ganhou uma ferida no seu pé e pediu para que a autoria deste estudo cuidasse do ferimento. Como enfermeiro, foram realizados os cuidados em relação a essa ferida. E enquanto o material era preparado e feitos os procedimentos, escutava-se o que ele dizia, pedindo para que ele falasse mais, com interesse pelo seu sofrimento e sua história. Foi voltando às consultas, falando sobre a mudança do interior para a capital na adolescência, do encontro com a arte de Raul Seixas nos anos 70, quando começou a fazer cover do cantor na Praia do Futuro. Algum tempo depois, após vários esforços endereçados à gestão, seu esquema de medicação foi restabelecido.

Numa sessão, chegou a dizer: Sou a reencarnação de Raul Seixas e você é o Renato Russo... Sabia que o Renato é filho legítimo do Raul? Havia inserido o autor em seu delírio e dado a ele (autor) um papel na sua história. Aliás, começou a endereçar vários papéis para o autor, pois passou a encaminhar textos que ele mesmo escrevia.

Nesses escritos, relatava elementos de sua história, de sua relação com o álcool, com a família e as suas internações, em uma linguagem muito peculiar. "Danos calzados pelo Acool tinha empreGo Bom operariotextil – textiLHUní Hão foi com A morte do meu pai m é A fundei Sem Razão. Piourou A minHASituAcao".

Seus escritos eram recolhidos e guardados em uma pasta exclusiva. Falava de peças de teatro que fazia dentro dos manicômios. Certo dia, disse querer escrever uma peça. A autoria passou a ajudá-lo a construir cena por cena com base em seus escritos. As cenas foram entremeadas com músicas de Raul Seixas e Renato Russo. A peça foi apresentada na festa de Natal do serviço: Raul vestido a caráter, de paletó, óculos escuros, representava o papel de Maluco Beleza.

A escrita da construção teórica

Para se iniciar a construção teórica é importante pontuar que se poderia, a partir da escuta a Raul, seguir caminhos variados nesse momento. Porém, como o título deste trabalho já revela, a atenção foi voltada para o tema da psicose e sua relação com a droga. Para isso, foi necessário explorar determinado percurso. Primeiro, entender a suposição de uma estruturação psicótica para Raul. Em seguida, articular um trabalho possível diante dos ditos delirantes e dos fenômenos elementares típicos da psicose, para se relacionar essa estrutura aos objetos chamados de droga – no caso de Raul – o álcool. E, finalmente, abordar a questão do laço social possível para o psicótico.

Raul, em seu discurso, apresenta uma forma de expressão muito peculiar. O impulso com que dizia sua fala, as músicas inteiras ditas sem pausa, as ideias delirantes relacionadas à figura de Raul Seixas são indícios dos chamados fenômenos elementares. Esses nada mais são que fenômenos psicóticos que podem existir bem antes de um delírio, antes do desencadeamento de uma psicose(8).

Essa posição é um importante indicador para a condução do tratamento, pois é na linguagem que o sujeito se organiza psiquicamente, e isso pode se dar de maneiras diferentes, dependendo do ponto onde esse se situa(9). A maneira como esse sujeito articula seus significantes e o modo como recorre ao significado para a construção de um sentido delirante fornece fortes indícios que apontam para uma estruturação psicótica.

O diagnóstico estrutural de psicose advém da foraclusão do Nome-do-Pai. Porém, isso se dá no nível de uma hipótese, algo que pode ser identificado apenas por fenômenos que sugiram a falta desse registro(10). Na ausência de inscrição do Nome-do-Pai, ou seja, na impossibilidade de o pai se inscrever como detentor do significante que responderia ao desejo da mãe no nível simbólico, o que ocorre é a desarticulação da cadeia significante, pela ausência do "pivô" que articularia essa cadeia. Isso provocaria a impossibilidade de atribuir significação para os significantes(11).

Em Raul, é a morte do pai que aparece como um ponto onde ocorre o desencadeamento da doença. Nesse momento, o Nome-do-Pai, não inscrito por ocasião de um primeiro encontro com o traumático, foi invocado. Há aí uma falta, que abre um furo no significado e dá início a uma cascata de remanejamentos do significante, de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado um nível de estabilidade entre significante e significado na metáfora delirante(9).

Raul traz sua "Sem Razão" com a morte do pai. É nesse momento também que inicia o abuso no consumo de álcool. Ele localiza aí o início de seus problemas, da piora de sua situação. Algo desse pai real (o pai da realidade) fazia suplência/barreira à invasão do gozo. Com a morte do mesmo, há uma invasão.

Diante da angústia pela perda do pai, Raul faz uso desse artifício, a bebida, e dos bares como locais onde pode conviver, onde recebe comida e onde pode atuar como Maluco Beleza. Raul não bebia sozinho, apenas com amigos. Assim, o consumo de bebidas e a presença constante nos bares aparecem como sua tentativa de se inserir no social, apoiado no significante Raul Seixas.

Ao longo do tratamento, a autoria, aqui, passou a atuar como aquilo que Lacan chama de "Secretário do Alienado", recolhendo os escritos ou simplesmente escutando-o. Lacan acredita que não se deve rejeitar os ditos insensatos, ao contrário, isso é o que há de mais valoroso, porque é o mais singular: Se se souber escutar, o delírio das psicoses alucinatórias crônicas manifesta uma relação muito específica do sujeito em relação ao conjunto de sistemas da linguagem, em suas diferentes ordens. Só o doente pode testemunhar isso com a maior energia(12).

Raul passa a endereçar ao autor, sistematicamente, os seus escritos. Inicialmente em forma de cartas onde desfila seus significantes enigmáticos. Posteriormente, diz que gostaria de escrever uma peça de teatro e é nesse formato que passa a trazer seus escritos.  Função, aqui, do autor, como secretário, vai ser a de recolher esses escritos e, posteriormente, ajudá-lo a organizar a sua peça.

Nesse sentido, ajudar Raul na produção de sua peça teatral teve um papel importante. Pode-se dizer que foi apresentado a ele um lugar de mediação, de alternativa à invasão de gozo. Isso não foi algo meramente inventivo ou criativo, mas algo que abriu possibilidades de trabalho nas fronteiras entre o Eu e o Outro. Fez borda, delimitando ação, espaço, tempo(13).

Roteiriza com a peça seu próprio caminho na busca por um novo laço social. Não abandona os bares, continua frequentando-os, porém, agora também utiliza outros espaços, inclusive o CAPSad, para atuar como Maluco Beleza.

Quinet lembra que o laço social se faz com base na estabilização da psicose, não o contrário. Não é o fato de fazer com que os psicóticos convivam fora dos hospícios, simplesmente isso, que fará o laço social. É preciso propor um lugar de endereçamento a partir do tratamento que ele dá aos fenômenos que o acometem(11).

Aos poucos foi conquistando seu lugar na casa. Se antes ele não entrava nem para comer, agora ele passava a ser o cozinheiro da família, o responsável pela comida. É importante perceber que não foi a determinação dada ao seu padrão de consumo de álcool que orientou seu tratamento. O álcool foi percebido como um objeto a partir de sua fala, observando as relações que estabelecia com a sua estrutura de linguagem, essa sim, fundamental ao tratamento.

Muito menos houve a tentativa de trazer o paciente a uma suposta "realidade", nem reabilitá-lo para nada. Houve, sim, a aceitação do testemunho dado por ele. Compromisso que está de acordo com a ética do desejo.

O importante para Raul era buscar alternativas que barrassem a invasão de gozo, consequência da falta da inscrição do Nome-do-Pai. O álcool, os delírios, os escritos, a arte aparecem como tentativas de fazer borda ao gozo, onde poderia minimamente simbolizar os objetos.

Em todas essas alternativas sempre esteve presente um significante comum: Raul Seixas. Nos bares, nas falas sobre as internações, nas letras das músicas, na peça de teatro, esse significante parece ter-lhe caído como uma luva, na busca por uma suplência à sua falha na significação fálica. Ou melhor, esse significante parece ter-lhe cabido como um sapato para o seu "pé da letra", escolhido por ele próprio, do tamanho exato para trilhar seus passos no mundo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acredita-se que não só a Enfermagem, mas todo o campo que hoje é chamado Saúde Mental, necessita de ferramentas para o trabalho com a subjetividade, na superação de modelos que tomam os sujeitos como meros objetos. Essa necessidade torna-se mais evidente quando chegam à clínica casos de psicose e drogadição. Não é "trazendo o paciente à realidade" que o sujeito terá a oportunidade de reverter sua relação com o objeto droga. É preciso escutar, ter paciência e garantir que o guia do tratamento seja dado pela fala em associação livre, percebendo qual lugar o objeto droga toma a partir da estrutura, seja ela psicótica ou não.

No caso da psicose, o trabalho como secretário, receptor das produções, indica um caminho possível para o tratamento. Maluco Beleza não nos deixa esquecer que "há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que gira...". Parece apontar uma questão pertinente: o que faremos com essas vozes incessantes que, queira ou não, chegam aos nossos ouvidos no cotidiano da clínica?

 

REFERÊNCIAS

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2. Gonçalves SSPM, Tavares CMM. Atuação do enfermeiro na atenção ao usuário de álcool e outras drogas nos serviços extra- hospitalares. Esc Anna Nery. 2007; 11(4):586-92.         [ Links ]

3. Pergola AM, Garcia APRF. O aprendizado da construção do caso clínico em saúde mental. Rev Esc Enferm USP.  2008;42(2):383-8.         [ Links ]

4. Santos CE, Costa-Rosa A. A experiência da toxicomania e da reincidência a partir da fala dos toxicômanos. Estud Psicol. 2007;24(4):487-502.         [ Links ]

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7. Dallazen L, Giacobone RV, Macedo MMK, Kupperman D. Sobre a ética em pesquisa na psicanálise. Rev Psico. 2012;43(1):47-54.         [ Links ]

8. Miller JA. Introdução a um discurso do método analítico. Seminário do Campo Freudiano, Terceira Conferência. Falo. (Salvador) 1988 Jan-Jun; 2:87-96.         [ Links ]

9. Lacan J. O Seminário – Livro 5 – As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1999. 129 p.

10. Soler C. Artigos Clínicos: Transferência, Interpretação, Psicose. Salvador: Editora Fator; 1991. 72 p.         [ Links ]

11. Quinet A. Psicose e Laço Social. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edit; 2009. 237 p.         [ Links ]

 

 

CORRESPONDÊNCIA
Francisco Paiva Filho
Avenida General Osório de Paiva, 670, Apto. 103
Bairro: Parangaba
CEP: 60720-000, Fortaleza, CE, Brasil
E-mail: chicopf@yahoo.com.br

Recebido: 10.9.2013
Aceito: 11.11.2013