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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.11 no.1 Ribeirão Preto mar. 2015

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v11i1p19-24 

ORIGINAL ARTICLE
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v11i1p19-24

Craving pelo crack nos usuários em tratamento no centro de atenção psicossocial

 

 

Nadja Cristiane LappannI; Jacqueline Simone de Almeida MachadoII; Felipe Viegas TameirãoIII; Maria Luísa Nogueira BenjamimIV

IPhD, Professor, Universidade Federal de São João Del Rei, Divinópolis, MG, Brasil
IIMSc, Professor, Universidade Federal de São João Del Rei, Divinópolis, MG, Brasil
IIIEspecialista, Professor, Universidade Presidente Antonio Carlos, Bom Despacho, MG, Brasil
IVAluno de graduação, Universidade Federal de São João Del Rei, Divinópolis, MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é avaliar o craving em usuários de crack em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial. Realizou-se estudo descritivo transversal com abordagem quantitativa. A amostra foi composta por 20 usuários de crack e, como instrumento de coleta de dados, foi utilizado o Cocaine Craving Questionnaire-Brief. O perfil verificado caracteriza-se como homem jovem, solteiro e com baixo grau de escolaridade. Observa-se maior escore do craving para os que usam crack há mais de três anos e que, quanto menor o período abstinência do crack, maior o craving pela droga. O craving é uma variável importante a ser observada no tratamento do dependente químico favorecendo a prevenção de recaída.

Descritores: Cocaína Crack; Comportamento Aditivo; Saúde Mental; Questionários.


 

 

Introdução

O crack é o cloridrato de cocaína processado com outras substâncias em forma de “pedras” que podem ser fumadas. Após ser fumado, o início da ação da cocaína acontece em 5 a 10 segundos, estimulando o sistema nervoso central (SNC). No entanto, esses efeitos estimulantes se dissipam rapidamente, em 5 a 10 minutos, e o usuário passa à intensa depressão do SNC; nesse momento, devido à ansiedade e o craving, é levado à compulsão por nova dose. O potencial de abuso e de dependência é bem mais elevado na via pulmonar de administração da cocaína do que em outras vias (oral, nasal, intravenosa), pois a ação da droga é mais intensa e, ao mesmo tempo, possui reduzida duração(1) .

O usuário de crack, em função da dependência química, restringe sua vida ao consumo da droga de forma que sono, alimentação, afeto, senso de responsabilidade e sobrevivência perdem o significado(2), e devido à sensação de urgência pela droga e falta de condições financeiras, em geral, participa de atividades ilícitas (tráfico, roubos e assaltos) ou troca sexo por crack ou dinheiro, correndo risco de infecções sexualmente transmissíveis(3). Tais características interferem negativamente sobre a saúde e funcionamento social do usuário de crack.

O conceito de craving ou fissura se refere ao intenso desejo para consumir determinada droga ou de repetir a experiência dos efeitos de determinada droga ou ainda pode ser entendido como estado motivacional subjetivo influenciado pelas expectativas associadas a um resultado positivo(1,4).

O craving pode ser classificado como resposta à síndrome de abstinência, como resposta à falta de prazer, como resposta condicionada a estímulos relacionados às drogas e como tentativa de intensificar o prazer de determinadas atividades(5). Entre os modelos que explicam o craving encontram-se os comportamental, psicossocial, cognitivo e neurobiológico(1). Diante da evidência da multidimensionalidade do problema, ressalta-se a necessidade do tratamento utilizar diversas referências(1). Sabe-se que o craving pelo crack desencadeia padrão binge de consumo (padrão de consumo intenso, contínuo e repetitivo de crack) devido à compulsão desencadeada pela droga. Essa compulsão pela droga suscita comportamentos de risco que comprometem a saúde do usuário e suas relações sociais(6).

O craving é considerado fator crítico para o desenvolvimento do uso compulsivo e dependência de drogas e para recaídas após período de abstinência(6). Assim torna-se um fator importante a ser observado no tratamento da dependência química, pois deixa o usuário vulnerável ao abuso de drogas, recaída e abandono terapêutico, mesmo diante da vontade convicta de manter-se abstinente e/ou depois de grandes períodos de abstinência(7). Nesse sentido tornam-se relevantes estudos sobre o craving e seu manejo para melhor eficácia no tratamento da dependência química(1).

Particularmente na dependência por crack, os usuários descrevem o craving como incontrolável, levando-os, em sua maioria, ao uso compulsivo, com padrão diário de consumo, que pode chegar até nove dias contínuos, sendo finalizado somente quando é atingido o esgotamento físico, psíquico e/ou financeiro(3).

A partir destas considerações, o objetivo deste trabalho é avaliar o craving em usuários de crack em tratamento intensivo e semi-intensivo nos CAPS da macrorregião oeste de Minas Gerais.

 

Materiais e método

Realizado estudo transversal exploratório, utilizando metodologia quantitativa de pesquisa, nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Itaúna, Pará de Minas, Formiga, Bom Despacho, Campo Belo e Divinópolis, municípios polos das seis microrregiões de saúde que compõem a macrorregião Oeste do Estado de Minas Gerais. A coleta de dados foi realizada durante uma semana típica, em cada CAPS, no período de abril a julho de 2011.

Utilizou-se amostra intencional formada por 20 usuários diagnosticados como dependentes do crack por meio dos critérios da CID-10, com idade igual ou superior a 18 anos, em tratamento intensivo (acompanhamento diário em função do quadro clínico atual) ou semi-intensivo (acompanhamento frequente em função do quadro clínico atual) no CAPS por problemas decorrentes do uso de crack. Para coleta de dados utilizou-se o Cocaine Craving Questionnaire-Brief (CCQB) – versão adaptada para o crack(8) validada no Brasil(9).

Os dados foram organizados por frequência absoluta e percentual. Para análise dos resultados utilizou-se estatística descritiva. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa no Hospital São João de Deus (parecer nº 37/2011).

 

Resultados

As características sociodemográficas da amostra indicam um perfil do usuário de crack caracterizado como homem jovem, solteiro e com baixo grau de escolaridade. Verifica-se que o início do uso de outras substâncias psicoativas acontece oito anos mais cedo que o uso do crack, além disso, o tempo médio de uso de outras substâncias é aproximadamente três vezes maior que o tempo de uso de crack. O tempo de abstinência de crack encontrado foi de 81,15 dias (Tabela 1).

 

 

Os dados apresentados na tabela 2 ilustram a relação do craving de acordo com o tempo de uso de substância psicoativa, de uso de crack e de abstinência. No que se refere ao tempo de uso, na amostra observa-se maior escore do craving para os dependentes químicos que fazem uso de substâncias psicoativas há mais de seis anos (37,5) ou uso de crack há mais de três anos (38,27). Em relação à abstinência do crack, quanto menor o seu período, maior o craving pela droga. Os pacientes que relataram tempo de abstinência ≤ cinco dias apresentaram maior escore de craving (48,63). Por outro lado, os usuários de crack com menor escore de craving (22) apresentaram tempo de abstinência por um período superior a oito meses.

 

Discussão

As características dos usuários de crack deste estudo, como jovem, solteiro e com baixa escolaridade, são semelhantes às encontradas em outras investigações(10-12). Perfil característico da camada produtiva da população brasileira que, neste caso, pelo uso do crack pode encontrar-se potencialmente comprometida devido às consequências negativas decorrentes do uso da droga(12-13). Geralmente, o usuário de crack também apresenta histórico de consumo de outras drogas(12-13). O comum entre os usuários mais jovens (= 30 anos) é sequência cigarro e/ou álcool, maconha, cocaína aspirada e crack. Por outro lado, entre os usuários mais velhos (>30 anos), o mais corriqueiro é a série cigarro e/ou álcool, maconha, medicamentos endovenosos, cocaína aspirada, cocaína endovenosa e, por fim, crack(14). O consumo de crack causa efeitos prejudiciais principalmente no trato respiratório, no aparelho cardiovascular, na função renal, no sistema nervoso central e no sistema digestivo(15).

Identificou-se que a maioria dos usuários em tratamento intensivo ou semi-intensivo no CAPS usa crack há mais de três anos. No início dos anos 1990, estimava-se que um consumidor de crack viveria poucos anos. Hoje, é corrente encontrar usuários com mais de cinco anos de consumo(16).

Neste estudo, no que se refere ao tempo de uso de substância psicoativa, observa-se maior escore do craving para os dependentes químicos que usam drogas há mais de seis anos ou usam crack há mais de três anos. Este estudo demonstra que o craving na abstinência não está ligado à quantidade de crack utilizada, mas com o tempo de abstinência dessa substância, ou seja, quanto mais recente o último uso de crack, maior é o craving avaliado(17).

Em relação à abstinência do crack, identifica-se que, quanto menor o seu período, maior o craving pela droga, assim os usuários de crack em tratamento no CAPS que relataram menor tempo de abstinência apresentaram maior escore de craving. Esses achados são similares aos resultados de outros estudos que apontam que, quanto mais recente o último uso do crack, maior é a fissura(17). A associação entre tempo de abstinência e craving pode ser utilizada no tratamento dos usuários de crack, para que eles se sintam mais motivados para lidarem com um desejo mais intenso pelo crack no início do processo de desintoxicação, à medida que terão o conhecimento de que esse é um estágio transitório(17).

Neste estudo observa-se que o craving diminui com o tempo de abstinência. Resultado semelhante foi encontrado em estudo cujos autores observaram a diminuição do craving por cocaína não só com a utilização de pergolina (agonista dopaminérgico que seria responsável pela dessensibilização das áreas do SNC envolvidas na dependência de cocaína), como também no grupo controle desse mesmo estudo, o que demonstra que um maior tempo em abstinência pode interferir no craving(18).

 

Conclusão

As características dos usuários de crack da região oeste de Minas Gerais são semelhantes àquelas encontradas em outros estudos nacionais: homem, jovem, solteiro e com baixa escolaridade. O tempo de abstinência reduzido associado ao aumento do craving sugere aos profissionais de saúde, maior atenção aos cuidados durante as primeiras semanas de tratamento. Associado ao escore encontrado do craving pelo crack em usuários abstinentes no período de 10 a 30 dias, recomenda-se que o primeiro mês de tratamento seja permeado de estratégias que facilitem a adesão dos usuários ao serviço e profissional de referência, pois o craving eleva o risco de retorno ao uso de crack nesse período.

O craving é considerado uma variável importante a ser observada no tratamento do dependente químico e é fundamental que os profissionais de saúde reforcem a habilidade do usuário de crack para experimentar este fenômeno sem recair. É necessário que o dependente aprenda a identificar e enfrentar o craving, assim como os sinais e os estímulos associados ao mesmo, no sentido de criar a habilidade de resistir a esse desejo.

 

Referências

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Correspondência:
Nadja Cristiane Lappann
Universidade Federal de São João Del Rei
Av. Sebastião Gonçalves Coelho, 400 Sala 301.1 Bloco D.
Chanadour
CEP: 35501-296, Divinópolis, MG, Brasil
E-mail: nadjaclb@terra.com.br

Recebido: 01.10.2012
Aceito: 12.02.2015