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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.11 no.3 Ribeirão Preto set. 2015

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v11i3p145-152 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v11i3p145-152

 

Formação da enfermeira e os cuidados ante a tuberculose e doenças nervosas e mentais (década de 1920)

 

 

Mary Ann Menezes FreireI; Carolina de Oliveira FaberII; Flávia Ramos Fernandes GuimarãesIII; Wellington Mendonça de AmorimIV

IPhD, Professor Assistente, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIEnfermeira
IIIMestranda, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IVPhD, Professor Associado, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste estudo analisam-se as recomendações do Relatório Goldmark para o ajuste na formação das(os) enfermeiras(os) em duas áreas: a tuberculose e as doenças nervosas e mentais. O método usado foi a pesquisa histórica, embasada na análise documental. Os resultados mostraram que as Escolas e Cursos de Enfermagem, à época, atenderam mais as exigências de suas instituições, mantenedoras e formadoras, do que procuraram seguir as orientações do Relatório, no sentido de contemplar, nos seus currículos, matérias específicas para a tuberculose e doenças mentais. Conclui-se que o Relatório Goldmark identificou a resistência das enfermeiras em lidar com esse tema. No entanto, deixou recomendações que tiveram impacto na formação dessas no transcorrer do século XX.

Descritores: Enfermagem; História da Enfermagem; Saúde Mental; Saúde Pública.


 

 

Introdução

A tuberculose e a doença mental têm caráter discriminatório e excludente. Há décadas discute-se a necessidade de tratamento das pessoas acometidas por essas doenças ser realizado junto à sua coletividade e se afastar da internação, do estigma e da segregação. Apesar da Reforma Psiquiátrica, enfermeiros acumulam experiências cristalizadas, as quais desrespeitam as particularidades dos indivíduos, descuidando das demandas assistenciais de cada situação. Estudos evidenciam a necessidade da construção de tecnologias de ensino que viabilizem uma formação que aproxime saber e processo no cotidiano do cuidado, buscando a conscientização do profissional de saúde, que vise a inclusão, o acolhimento e a ampliação da cidadania(1-4).

No Brasil, no início do século XX, as doenças mentais e a tuberculose se destacavam no cenário da saúde pública brasileira. A tuberculose era fatal em metade da população acometida, fruto das más condições de vida das camadas médias urbanas, que viviam aglomeradas em cortiços comuns no centro do Distrito Federal, RJ, locais insalubres, sem ventilação, que propiciavam a disseminação de doenças.

Com a Reforma Carlos Chagas foi instituído um organismo governamental de combate à tuberculose, sediada no Rio de Janeiro e denominado Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose. A Inspetoria tinha como objetivo criar dispensários e sanatórios, onde seriam realizados o tratamento, a medicalização e a profilaxia da tuberculose. Como a tuberculose, a situação dos doentes mentais também necessitava de atenção especial, no entanto, não fora contemplada pela Reforma, possivelmente porque esse grupo estava sob a responsabilidade de outro órgão do governo, o Serviço de Assistência a Psicopatas.

O hospício era o local para a reeducação do louco, enquanto o médico era a figura a ser respeitada e a enfermagem era executora da ordem médica. Os hospícios, porém, encontravam-se superlotados, fruto da urbanização e de interesses políticos e econômicos que visavam o saneamento, interditando o livre trânsito de loucos, mendigos e embriagados(5). A institucionalização fazia parte de uma estratégia social(6), visto que esse tipo de cidadão deveria estar isolado da sociedade.

Nesse contexto, o ensino e a profissionalização dos enfermeiros foram iniciados na Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras (EPEE), anexa ao Hospital Nacional de Alienados, no Distrito Federal, em 1890(7).

Nos Estados Unidos, em 1919, teve início a pesquisa sobre a situação da enfermagem no país, a qual resultou no Relatório Goldmark, publicado em 1923. Esse Relatório foi elaborado por um comitê especialmente criado para o estudo da Educação em Enfermagem, gerando impacto de repercussão mundial, influenciando, posteriormente, o estabelecimento e a evolução de um modelo de Enfermagem anglo-americano(8). A abrangência do Relatório Goldmark nos temas relacionados à enfermagem pode ser destacada em “Funções da Enfermeira”, “Treinamento da Enfermeira”, “Cursos de Treinamento para Grupo de Enfermagem Subsidiário”, “Escola Universitária de Enfermagem”, “Cursos de Pós-Graduação”, assuntos abordados nesse documento para a enfermagem anglo-americana.

A história, como ciência, é um processo inacabado e que opera pela lógica da acumulação de conhecimentos(9). Desse modo, considerando a conformação das políticas de saúde brasileira, à época da Reforma Carlos Chagas, e o diagnóstico que resultou no documento denominado Relatório Goldmark, buscou-se a elucidação de questões referentes à formação da enfermeira e aos cuidados de enfermagem nas situações relativas à tuberculose e doenças nervosas e mentais, bem como à organização da enfermagem de saúde pública no início da década de 1920, no Brasil.

Como objetivos, definiram-se: caracterizar a tuberculose e as doenças nervosas e mentais na formação da(o) enfermeira(o) nos cursos e escolas de enfermagem, no Distrito Federal, RJ, na transição entre a segunda e a terceira década do século XX, analisar as recomendações do Relatório Goldmark para o ajuste na formação das(os) enfermeiras(os) em duas áreas especiais, a da tuberculose e a de doenças nervosas e mentais.

Neste estudo procurou-se contribuir para o entendimento, em período reformista da política de saúde, dos cuidados de enfermagem a dois grupos especiais: o da tuberculose e o das doenças nervosas e mentais, que necessitavam ser contemplados ante a força estigmatizante que pairava sobre essa parte da população, permitindo, assim, a apropriação de um conhecimento histórico que, por sua vez, pode ser relacionado à prática de enfermagem

 

Metodologia

Trata-se de estudo desenvolvido na perspectiva histórica, embasado na análise documental, visto que, atualmente, se entende por documento todos os vestígios do passado, passíveis de análise histórica(10). A leitura de um documento deve estar orientada por perguntas, para a busca de coisas concretas, e não de um conteúdo superficial(10).

Como delimitação temporal, selecionou-se o entorno de 1923, ano que demarcou a publicação do Relatório Goldmark nos Estados Unidos da América e sua divulgação no Brasil.

A busca pelos documentos ocorreu nos seguintes acervos: Arquivo Setorial Enfermeira Maria de Castro Pamphiro – EEAP – UNIRIO, Biblioteca do Ministério da Fazenda, RJ, Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery, RJ, e do Laboratório de Abordagens Científicas na História da Enfermagem (Lacenf). A fonte é uma escolha do autor, de acordo com os documentos existentes, a partir dos quais se selecionam e se organizam as informações que lhe interessam(10).

Os documentos foram relatórios de pesquisa e institucionais. Desses, selecionaram-se as seguintes fontes: no documento denominado Report of the Committe for the Study of Nursing Education. Nursing and Nursing Education in the United States. New York (USA): Macmillam Company; 1923, conhecido como Relatório Goldmark, selecionou-se o capítulo Nursing in Three Special Branches; o relatório denominado Histórico da Cruz Vermelha Brasileira (1908-1923) e o relatório denominado Curso de Enfermeiras da Policlínica de Botafogo, publicado em 1919.

No que tange à fonte preferencial do estudo, elegeu-se, através do critério de relação temática, o capítulo referente à tuberculose, doenças venéreas e às doenças nervosas e mentais. Porém, destacou-se, no presente estudo, a área da tuberculose e das doenças nervosas e mentais. Cabe destacar que a tradução dos fragmentos do capítulo apresentado no desenvolvimento do estudo foi de responsabilidade dos autores.

A literatura crítica de apoio se referiu às produções que versaram sobre a História do Brasil, Saúde Pública e História das Escolas de Enfermagem. A análise e interpretação dos dados foram agrupadas pelos nexos entre as informações obtidas nos documentos e a produção historiográfica do tema em questão(11).

 

Análise e Discussão

Enfrentamento à tuberculose e às doenças nervosas e mentais nos cursos e escolas de enfermagem, no Rio de Janeiro, RJ

As escolas de enfermagem que figuravam à época eram a Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras (EPEE), a Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), o Curso de Enfermeiras da Policlínica de Botafogo e a Escola Prática de Enfermeiras da Cruz Vermelha Brasileira. De acordo com os currículos dessas escolas, as disciplinas de Noções de Higiene e Profilaxia estavam presentes, porém, não com a ênfase que o Relatório Goldmark recomendava, pois, com a gravidade da tuberculose no período estudado, no Distrito Federal, RJ, esperava-se que o ensino desse maior importância ao estudo dessa doença.

A importância de destinar pelo menos uma disciplina voltada para as doenças nervosas e mentais foi igualmente apontada pelo Relatório Goldmark, porém, de acordo com análise feita, as escolas, em sua maioria, enfrentavam dificuldades para colocar suas estudantes nesse campo de prática. Até porque a enfermagem, enquanto área, só aproximou-se, de fato, do doente mental em fins de 1940, contrariando, assim, os preceitos da enfermagem moderna, que se dizia preocupada com as mentes doentes(7).

De acordo com análise feita no currículo da EPEE, percebeu-se que, apesar de ser uma Escola atuante dentro de um hospício, ela não preparava profissionais de enfermagem apenas para esse, tanto que o curso oferecia matérias como “Noções de Anatomia, Fisiologia e Higiene” e “Balneoterapia e Administração Interna”, dentre outras, descritas no Decreto de criação. No entanto, a Escola tinha dificuldades de operacionalização, pois muitas candidatas não preenchiam as condições regulamentares(12), tais como ter mais de 14 anos de idade, saber ler e escrever corretamente e conhecer aritmética elementar, ser vacinado, não sofrer qualquer doença mental e apresentar atestado de bons costumes. Esse foi um ponto destacado também pelo Relatório Goldmark, visto que as moças mais bem preparadas não buscavam atuar na área da doença mental, devido ao estigma da doença, um atributo depreciativo, que aponta a pessoa portadora de doença estigmatizante como não completamente humana e que deve ser evitada, principalmente em locais públicos(13). Sobre a tuberculose, não figuravam no currículo da Escola matérias voltadas apenas para essa doença, contrariando o cenário da época, que demandava por enfermeiras conhecedoras do assunto, capazes de identificar, o quanto antes, a doença, cuidar dos acometidos e ensinar à população sobre medidas de profilaxia. No currículo estavam presentes matérias de higiene moral, individual e hospitalar. Portanto, acredita-se que, com a importância da tuberculose naquele momento, houvesse discussões sobre o assunto dentro de tais matérias.

Já o Curso de Enfermeiras da Policlínica de Botafogo, criado em 1917, selecionava suas candidatas através de um escrupuloso exame das condições de idoneidade moral, de instrução básica e de sanidade(14). A duração do curso era de dez meses divididos em duas séries e as matérias que figuravam no currículo eram as seguintes: “Assistência Médico Cirúrgica dos Enfermos”, “Cadeira de Anatomia e Fisiologia” e “Cadeira de Higiene”.

A Escola Prática de Enfermeiras da Cruz Vermelha Brasileira era destinada apenas ao gênero feminino, devido à sua vocação natural de zelo e fidelidade das representantes do sexo fraco(15). A Escola foi criada para formar enfermeiras profissionais, devotadas, instruídas, capazes de dar aos doentes assistência carinhosa e científica, para trabalharem nos hospitais, casas de saúde e no atendimento domiciliar(15). Fica evidenciada, pelas matérias presentes no currículo do curso, que não era dada atenção especial à tuberculose ou às doenças nervosas e mentais, problema similar ao identificado na enfermagem norte-americana e registrado no Relatório Goldmark. Porém, no discurso de inauguração do curso feito pelo então diretor e professor do curso, Dr. Getúlio dos Santos, foram mencionadas ideias compatíveis aos ideais do Relatório Goldmark, tais como: a importância de as enfermeiras atuarem como educadoras, divulgando os perigos das doenças contagiosas, o ideal de uma enfermeira que atuasse como cooperadora do médico, grande observadora, percebendo as menores alterações do doente e facilitando o diagnóstico médico.

Por fim, a Escola de Enfermeiras do DNSP pôs em prática o programa com temporalidade recomendada pelo Relatório Goldmark, de dois anos e quatro meses de duração, divididos em cinco fases, a última destinada à enfermagem de saúde pública(16). Seu currículo, estabelecido pelo Decreto n°16.300/1923, foi inspirado no Standard Curriculum for Schools of Nursing e, dentre diversas matérias, destacavam-se: “Higiene e Saúde Pública”, “Arte da Enfermeira em Doenças Mentais e Nervosas” e “Arte da Enfermeira em Tuberculose” (disciplina não obrigatória). Numa primeira vista, a Escola do DNSP aparentava disposição em abordar dois assuntos relevantes para a saúde da população à época, abordando a tuberculose e as doenças mentais como recomendado pelo Relatório Goldmark. Entretanto, manteve-se afastada por longo tempo da psiquiatria e suas enfermeiras e não enquadraram os doentes mentais na lista dos doentes a receberem os seus cuidados(7).

A formação oferecida pela Escola preparava suas estudantes para combaterem um dos mais terríveis flagelos da humanidade, a tuberculose, que à época era uma das principais causas de morte da população que vivia no Distrito Federal, RJ. A enfermeira tinha o trabalho árduo de combater as más condições de habitação, informar à população sobre a importância da higiene individual e do lar e retirar de suas residências os acometidos pela tuberculose(16), o que fortalecia o estigma da doença, pois os acometidos pela moléstia ficavam separados dos demais.

O mesmo não ocorria com as doenças mentais, mencionadas no currículo, porém não contempladas nos cuidados destinados a esses doentes pelas estudantes da Escola. Conforme registrado no histórico de uma estudante em 1925, a matéria “Arte da Enfermeira em Doenças Mentais e Nervosas” não era ministrada, sendo substituída por doenças venéreas(17). Acredita-se que essa substituição tenha ocorrido não só pelo estigma atribuído às doenças mentais, mas, também, pelas condições insalubres e superlotação em que se encontravam os campos de prática dessa doença, levando em conta que a Escola tinha como alunas moças de “boa família”, as quais não poderiam ser expostas a tais riscos.

Recomendações do Relatório Goldmark para o ajuste na formação das(os) enfermeiras(os) em duas áreas especiais: a da tuberculose e a de doenças nervosas e mentais

No ano 1923, houve a publicação do Relatório Goldmark e, dentre inúmeras questões ligadas ao ensino da enfermagem, o Relatório destacou a necessidade de incremento na formação de enfermeiros de áreas especiais como tuberculose, doenças venéreas e doenças nervosas e mentais.

“Nos EUA é aceito como verdade que, de 100 pessoas, 90 estão infectadas pela tuberculose, duas têm doença ativa e oito ou nove morrerão. Porém no ano de 1921 essa taxa teve queda de quase 50%. Nesta queda, além dos fatores sociais e econômicos, a descoberta precoce de casos iniciais e contatos e sua instrução nos hábitos de higiene básica têm sido um fator determinante”(18).

Em fins do século XIX e início do século XX, no Brasil, sua disseminação se dava principalmente devido às más condições de vida e à pobreza em que a população se encontrava(18). A principal arma contra a tuberculose era a alteração diária dos hábitos individuais, que se dava através da educação do doente, de sua família e da sua comunidade, mostrando a importância dos hábitos individuais de higiene e limpeza do lar(18-19).

“Igualmente importante é a discussão da campanha organizada contra a tuberculose e a técnica de prevenção; seus aspectos econômicos e sociais e sua influência em todo o ambiente social; o assunto complexo de reabilitação industrial e localização”(18).

A importância da criação de sanatórios foi enfatizada pelo Relatório Goldmark, pois, nesses, a enfermagem continuaria ensinando medidas de prevenção e educação para as pessoas já acometidas pela tuberculose, já que nos hospitais gerais essas medidas eram deixadas de lado em prol de um olhar focado apenas na parte clínica. Outra estratégia utilizada pelos norte-americanos era a criação de dispensários e acampamentos para tuberculosos passarem uma temporada, onde receberiam acompanhamento de enfermeiras, que prestariam atendimento aos doentes e seus familiares e orientariam sobre prevenção(19). Daí a importância de se criarem convênios entre sanatórios e escolas de enfermagem.

No entanto, essas alianças enfrentaram grandes empecilhos, tais como: dificuldades em assegurar um serviço adequado de enfermagem, acarretando um pequeno esforço para realização dos convênios por parte dos sanatórios e hospitais para tuberculosos, aqueles que mantinham a escola de enfermagem tinham dificuldades em recrutar alunos, normalmente os sanatórios e hospitais para tuberculosos davam preferência ao serviço de enfermagem composto por ex-pacientes ou em estágio inativo da doença(19).

A contratação de ex-pacientes para o cuidado prestado a tuberculosos era uma maneira de convencimento à moda da saúde pública norte-americana, visto que esses cuidavam com mais compaixão, além de incentivarem e encorajarem o paciente a seguir o tratamento receitado e poder buscar uma vocação. A enfermeira em tuberculose tinha que ter quatro requisitos básicos: prestar cuidados à pessoa com tuberculose e sua família, fornecer apoio suficiente para a família poder manter um padrão normal de vida, proteger a comunidade, ensinando a família, o paciente e a comunidade sobre a prevenção e educar o público para apoiar os esforços para evitar a propagação dessa doença(20). Concomitantemente ao fato de essas enfermeiras americanas representarem agentes ideais para atuar no tratamento dos clientes com tuberculose, poucas conseguiam terminar o curso de enfermagem, devido à debilidade causada pela doença e a tantas horas de aulas práticas.

“Por outro lado, apenas uma pequena fração, totalizando, em algumas instituições, não mais que 10% das enfermeiras estudantes está em condições de completar o curso através de treinamento adicional em um hospital geral o que é necessário para cumprir com a maioria das leis nos estados para o registro das enfermeiras”(18).

Apesar da necessidade de mão de obra no cuidado de tuberculosos, identificada pelo Relatório Goldmark, perguntava-se até que ponto valia a pena formar enfermeiras para uma única especialização. A enfermeira formada com especialização em tuberculose estava apta a cuidar apenas de tuberculosos e a enfermeira generalista está preparada para prestar cuidados em geral. A segunda teria maior reconhecimento, porém a tuberculose era um grande problema de saúde pública e demandava por mão de obra especializada.

“Na tentativa de abranger a formação, algumas instituições de tuberculose enviam seus alunos para hospitais gerais e estes receberão aulas teóricas e práticas que não são ministradas nas instituições especializadas, porém, mesmo com esse complemento, uma instituição de tuberculose oferece um programa desequilibrado (ministrando muitas horas práticas e poucas teóricas), diminuindo assim o valor educacional da enfermeira”(18).

Outros problemas identificados nas instituições especializadas em tuberculose eram a falta de professores competentes para dar aulas e supervisionar as atividades práticas e a falta de equipamentos utilizados no ensino. Apesar deles, afirmou-se, no Relatório Goldmark, que a experiência adquirida em um sanatório de boa reputação permitiria à enfermeira o reconhecimento precoce dos sintomas, o que era muito valioso para a atuação da enfermagem no cuidado aos acometidos por essa doença.

Assim como no campo da tuberculose, a educação e a profilaxia foram vistas como grandes armas contra esses agravos na saúde mental. O campo da saúde mental enfrentava maiores problemas que o da tuberculose para conseguir instituições preparadas e equipadas para formar enfermeiras especializadas. Nesse momento, predominava o modelo asilar, tendo maior preocupação em separar os doentes e não em promover um tratamento adequado. Para o Relatório Goldmark, a medicina moderna enfatizava o diagnóstico precoce, principalmente quando feito durante a infância, através do reconhecimento de sintomas e anomalias, para, a partir dele, proporcionar maior equilíbrio mental por meio da reeducação desses pacientes.

Esse avanço ocorreu também no Brasil nos anos 1920 e 1930, por meio de maior movimentação no campo da psiquiatria. Porém, os estabelecimentos de ensino estruturados no modelo anglo-americano, do qual a Escola de Enfermeiras do DNSP foi precursora, não prepararam suas alunas de enfermagem para trabalharem em hospitais psiquiátricos e em programas de higiene mental(20).

Naquele momento, havia grande preconceito em relação ao trabalho da enfermagem nos hospitais psiquiátricos, por ser uma atividade degradante e insalubre. Esse preconceito também se dava pelo estigma das doenças mentais, devido à agressividade dos doentes, à superlotação e à insalubridade dos hospícios.

Cabe destacar que a EPEE tinha dificuldades em recrutar moças de “boa família”, pois essas teriam que lidar com psicopatas, estando sujeitas a episódios de violência.

“Devido à dificuldade para recrutar estudantes, as instituições se viam obrigadas a baixar suas exigências relacionadas à escolaridade para que conseguissem um número mínimo de moças que se dedicassem aos hospitais para doentes mentais. Sendo prejudicial para essa área, que exigia das enfermeiras não apenas conhecimentos em psiquiatria, como também conhecimentos gerais, pois muitos doentes mentais tinham o agravamento do quadro clínico, com o aparecimento de doenças corpóreas até mesmo mais graves que as doenças mentais”(18).

A formação de enfermeiras na área de saúde mental não deveria estar focada apenas na capacitação de uma enfermeira para os cuidados especializados de casos mentais. Uma instituição deveria capacitá-la para a detecção de pequenos sinais até os problemas mais graves. Essa enfermeira não tinha que ser apenas uma cuidadora, ela precisava ser perceptiva. Essas são características julgadas necessárias, apontadas no Relatório Goldmark, para a formação de uma enfermeira de saúde mental e que eram, ainda, almejadas por escolas de enfermagem brasileiras.

Esse treinamento deveria ocorrer por meio de palestras, aulas sobre a clínica das doenças mentais e demonstrações, “o treinamento prático é de primordial importância e deverá estar sempre acompanhado do embasamento teórico”(18).

A medicina moderna assinalava para uma enfermeira psiquiátrica atuando como cooperadora do médico, pois ela passava a maior parte do tempo ao lado do doente, podendo detectar precocemente seus sintomas, facilitando o diagnóstico médico. “Para que isso possa acontecer é necessária a menor proporção de pacientes por enfermeira, só assim poderá ser dispensado um melhor cuidado e uma melhor supervisão psiquiátrica”(18).

 

Considerações finais

Assim como nos EUA, a tuberculose se apresentou como um grave problema de saúde pública no Brasil. O Relatório Goldmark atentou para esse tema na formação das enfermeiras americanas. Há de se destacar que, também no Brasil, especificamente no Distrito Federal, RJ, as recomendações contidas no Relatório começaram a se destacar após a publicação desse, sinalizando, assim, a possibilidade de serem aplicadas pelas instituições formadoras de enfermeiros e enfermeiras, principalmente no que se referissem às adequações curriculares.

Também para a doença mental, o Relatório Goldmark sinalizou que, na perspectiva da medicina moderna, essa especialidade apontava a formação de uma enfermeira psiquiátrica atuando como uma cooperadora do agente médico e, para que isso pudesse acontecer, foi proposta menor proporção de pacientes para cada enfermeira, e que fossem essas enfermeiras preparadas por formação que contemplasse matérias ligadas à saúde mental. Só assim as enfermeiras poderiam prestar cuidado melhor e supervisão mais adequada ao campo de prática psiquiátrica.

No que se refere às Escolas e Curso de Enfermagem à época do Relatório Goldmark, pode-se inferir que essas atenderam mais às exigências de suas instituições mantenedoras e formadoras do que procuraram um alinhamento com as orientações do Relatório Goldmark, no sentido de contemplar nos seus currículos matérias específicas para a tuberculose e a doença mental.

Há de se guardar as proporções e as particularidades institucionais, mas se pode inferir que o estigma, enquanto um atributo profundamente depreciativo, provavelmente influenciou a demora da abordagem desses dois temas nas matérias das Escolas e Cursos de Enfermagem, causado talvez pela força da transmissão da tuberculose e pela oscilação entre o isolamento e agressividade da doença mental.

 

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Correspondencia:
Mary Ann Menezes Freire
Estrada do Mendanha, 1531
Rua D, Quadra D, Lote 14
Bairro: Campo Grande
CEP: 23087-286, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail: maryannmfreire@gmail.com

Recebido: 06.10.2014
Aceito: 19.05.2015