SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 issue3Relationship between risk perception and alcohol consumption in adolescents author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

On-line version ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.11 no.3 Ribeirão Preto Sept. 2015

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v11i3p168-177 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v11i3p168-177

 

A reabilitação psicossocial nos Centros de Atenção Psicossocial: uma revisão integrativa

 

 

Marianna de Francisco AmorimI; Márcia Aparecida Padovan OtaniII

IEspecialista em Saúde Mental, Psicóloga, Serviço de Atendimento Psicossocial, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil
IIPhD, Professor, Faculdade de Medicina de Marília, Marília, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de uma revisão integrativa, investigaram-se as dificuldades enfrentadas pelos Centros de Atenção Psicossocial na efetivação da reabilitação psicossocial. Foram analisados 35 artigos de periódicos indexados nas bases de dados LILACS, SciELO, INDEX Psi e PePSIC. Os resultados mostram que o conceito de reabilitação psicossocial engloba múltiplos significados. Os artigos descrevem experiências exitosas, mas enfatizam diversas dificuldades, como a pouca articulação dos Centros de Atenção Psicossocial com os serviços de atenção básica e intersetoriais, ações com baixo enfoque comunitário, poucas iniciativas para a inclusão social pelo trabalho, baixo suporte às famílias e falta de capacitação dos profissionais de saúde. Conclui-se que é necessário promover o debate e a reflexão dos gestores e profissionais, a fim de melhorar tal processo.

Descritores: Saúde Mental; Reabilitação; Serviços de Saúde Mental; Assistência à Saúde Mental.


 

 

Introdução

O processo de Reforma Psiquiátrica brasileira teve início no final da década de 70 e vem conduzindo as diversas mudanças no que se refere à maneira de compreender e lidar com o fenômeno humano da loucura. Consiste em um processo histórico que busca questionar e elaborar propostas para a transformação do modelo clássico do paradigma psiquiátrico(1).

Dentro do contexto sócio-histórico brasileiro, faz parte da atual política nacional de saúde mental a criação de diversos serviços substitutivos ao modelo asilar, dentre os quais se destacam os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Os CAPS foram instituídos pela Portaria Ministerial 336/GM, de 2002, caracterizando-se como serviços responsáveis pelo atendimento prioritário de pacientes com transtornos mentais severos e persistentes, em tratamento intensivo, semi-intesivo e não intensivo e funcionando segundo a lógica do território(2). Assim, os CAPS se destacam por serem um serviço territorial, não intramuros como os demais serviços tradicionais de saúde e saúde mental(3). Nesse sentido, são serviços que possibilitam colocar em prática o processo de desinstitucionalização da pessoa em sofrimento mental. Cabe ressaltar que desinstitucionalizar significa mais do que derrubar muros, e, sim, desmontar formas de olhar, transformar estruturas mentais(4).

Os CAPS devem desempenhar papel fundamental na ampliação de lugares sociais a serem habitados pelas pessoas em sofrimento psíquico(5). Dessa forma, evidencia-se a importância de estratégias de reinserção dos usuários em seus múltiplos contextos sociais. Assim, esses serviços são representantes do novo modelo de atenção em saúde mental, devendo viabilizar a reabilitação psicossocial de seus usuários. Ainda, o objetivo do tratamento nos CAPS deve ser possibilitar às pessoas o gerenciamento de suas vidas, viabilizando sempre maior autonomia, aumentando a capacidade de escolha dos usuários(6).

Por outro lado, novas modalidades de tratamento não determinam que as pessoas em sofrimento mental possam efetivamente assumir a condição de cidadão, pois novos serviços podem estar embasados em antigas práticas manicomiais e excludentes(7). Ainda, existe o risco de promover a manutenção da condição de psiquiatrizado no processo de reabilitação psicossocial(7). Nesse sentido, os serviços devem estar atentos e em constante processo de reflexão em relação às práticas que estão sendo desenvolvidas. É fundamental constante atenção ético-técnica dos envolvidos nesse processo, para que ocorra real mudança de paradigma na atenção, considerando que a reabilitação implica em transformação total de toda política dos serviços de saúde mental(8).

O conceito de reabilitação psicossocial é essencial para o trabalho realizado nos CAPS. O ponto fundamental da reabilitação psicossocial é a construção de cidadania plena que depende de variáveis que operem contrárias ou favoráveis à contratualidade em casa, no trabalho e na rede social, sendo que essa corresponde à possibilidade do sujeito em produzir trocas afetivas e materiais(8). Assim, o aumento do poder contratual e da autonomia dos usuários deve ser o foco principal do trabalho em saúde mental.

Segundo definição da Organização Mundial da Saúde (1987)1, a reabilitação psicossocial é o conjunto de atividades que possibilitam aumentar as oportunidades de recuperação de indivíduos e diminuir os efeitos desabilitantes da cronificação das doenças, através do desenvolvimento de insumos individuais, familiares e comunitários(9). Cabe considerar que reabilitar não consiste em adaptar os desabilitados e sim em um processo para que se mudem as regras e a sociedade passe a conviver com as diferenças(10), o que indica, além de transformação da atenção dos serviços de saúde também transformação social mais ampla.

Os CAPS têm papel fundamental na articulação da rede de saúde mental, sendo o serviço representante do movimento da reforma psiquiátrica brasileira. Diante disso, torna-se relevante os estudos que investigam as dificuldades enfrentadas pelos CAPS na efetivação do processo de reabilitação psicossocial, ferramenta central desses serviços. Além disso, a investigação de tal processo pode auxiliar os profissionais de saúde e gestores a repensarem as práticas desenvolvidas e proporem mudanças na atenção em saúde mental.

Considerando a complexidade e as implicações dos processos de mudanças na assistência em saúde mental, essa pesquisa busca responder à seguinte questão: quais as dificuldades enfrentadas pelos CAPS na efetivação da reabilitação psicossocial?

Utilizando-se da revisão integrativa, este estudo teve como objetivo analisar o que a literatura descreve sobre o processo de reabilitação psicossocial nos CAPS e identificar as dificuldades enfrentadas por esses serviços para efetivação do processo de reabilitação psicossocial.

 

Materiais e Métodos

A revisão integrativa da literatura é um método que permite a inclusão de estudos experimentais e não experimentais, proporcionando uma síntese do conhecimento para a compreensão de determinado fenômeno analisado(11). Assim, a revisão integrativa tem como objetivo gerar um panorama consistente e compreensível de conceitos complexos, teorias ou problemas de saúde relevantes, possibilitando a aplicabilidade dos resultados de estudos significativos na prática(11).

Buscou-se desenvolver, neste estudo, as fases descritas no processo de elaboração de uma revisão integrativa: 1) elaboração da pergunta norteadora; 2) busca ou amostragem na literatura; 3) coleta de dados; 4) análise crítica dos estudos incluídos; 5) discussão dos resultados e 6) apresentação da revisão integrativa(11).

Foram analisados documentos indexados nas bases de dados LILACS, SciELO, INDEX Psi e PePSIC. Cabe ressaltar que não foram utilizadas bases de dados estrangeiras mais amplas, como PubMed e MEDLINE, considerando que o foco deste estudo é a reabilitação psicossocial nos CAPS, serviços de saúde mental do Sistema Único de Saúde brasileiro.

Os descritores utilizados para a busca, nas bases de dados foram: Centro de Atenção Psicossocial, Serviços de Saúde Mental, Reabilitação Psicossocial e Reinserção Psicossocial (Psychosocial Care Center, Mental Health Services, Psychosocial Rehabilitation and Psychosocial Reintegration), especificados da seguinte forma: ((centro and atencao and psicossocial) or (servico$ and saude and mental)) AND ((reabilitacao or reinsercao) and psicossocial)).

Os critérios estabelecidos para inclusão dos estudos na pesquisa foram: 1) artigos de periódicos, publicados entre 2008 e 2012 e 2) estudos que abordam o processo de reabilitação psicossocial nos CAPS. Os critérios de exclusão incluem: 1) dissertações e teses, 2) artigos que descrevem outros serviços de saúde mental que não são CAPS e 3) artigos que não mantêm relação com o objetivo deste estudo.

A partir dessas delimitações, foi obtido o total de 80 artigos na base LILACS, 42 no SciELO, 8 no PePSIC e zero no INDEX Psi, conforme descrito na Tabela 1. Esses 130 artigos selecionados foram comparados entre si, sendo excluídos aqueles que se repetiam por estarem indexados em mais de uma base de dados, resultando em 90 artigos. Desse total, 55 foram excluídos da análise, obedecendo aos critérios pré-estabelecidos, a exclusão se justifica por abordarem temas como: outros serviços de saúde mental, caracterização dos usuários dos CAPS, formação e inserção dos trabalhadores de saúde no mercado de trabalho e validação de instrumentos de pesquisa. Ao final da busca na literatura, após exclusão de artigos repetidos, foram selecionados 35 artigos para análise, conforme descritos na Figura 1

 

 

 

Na fase de coleta dos dados e análise crítica dos artigos incluídos foram analisadas algumas informações, tais como: nome dos autores, ano de publicação, periódico de publicação, formação e vinculação institucional do primeiro autor e palavras-chaves utilizadas. Em um segundo momento, após sucessivas leituras e fichamento dos artigos, buscou-se identificar o objetivo do estudo, desenho metodológico utilizado (tipo de estudo/amostra/instrumentos/tipo de análise), principais resultados obtidos, ações desenvolvidas pelo CAPS, dificuldades em relação às ações de reabilitação psicossocial. A partir desse panorama geral, realizou-se uma síntese e a discussão das informações obtidas.

 

Resultados

A partir da análise dos artigos foi realizada uma breve caracterização dos dados obtidos. As três palavras-chaves mais utilizadas nos referidos documentos foram: “Serviços de saúde mental” (49%), “Saúde Mental” (46%) e “Reabilitação” (23%). Quanto ao número de publicações por Estado brasileiro, constata-se que, dos 35 artigos, 16 são provenientes do Estado de São Paulo (46%), oito do Rio Grande do Sul (23%) e três do Rio de Janeiro (9%). Esse dado evidencia os Estados brasileiros que apresentavam maior produção científica nessa área, fato que pode ser compreendido pelo envolvimento histórico de tais Estados no processo de Reforma Psiquiátrica.

Os dois periódicos que mais publicaram sobre essa temática foram: Revista da Escola de Enfermagem da USP e Saúde e Sociedade, ambos com três publicações. Outras sete revistas ficaram empatadas quanto ao número de publicações, publicando dois artigos cada uma. As duas revistas com maior número de publicações abordam temas gerais de Enfermagem e Saúde Coletiva, não sendo específicas do campo da saúde mental.

Pôde-se, ainda, constatar que a maioria das publicações foi elaborada por enfermeiros (54%), seguida de terapeutas ocupacionais (23%) e psicólogos (11%). Quanto à vinculação dos autores, exceto em dois artigos, todos os autores estão vinculados a instituições de ensino superior (94%), apontando para a importância de tais instituições no desenvolvimento de pesquisas científicas no Brasil. Quanto ao ano de publicação, 2011 foi o ano com maior número de publicações (29%), seguido de 2010 e 2008, ambos com 20% das publicações.

No que se refere à abordagem metodológica utilizada, 32 artigos (91%) utilizaram o referencial qualitativo de pesquisa. Do restante, uma pesquisa utilizou a abordagem quantitativa (3%) e duas utilizaram uma abordagem mista, quantiqualitativa (6%). Esse aspecto pode ser compreendido ao se considerar a complexidade do objeto de estudo em questão.

Quanto aos sujeitos envolvidos nas pesquisas, pode-se classificar em ordem decrescente: trabalhadores (49%), usuários (43%), familiares (26%) e observação direta dos CAPS (9%). Muitas pesquisas foram realizadas com mais de um perfil de sujeito.

Em relação ao conceito de reabilitação psicossocial, de maneira geral, constata-se que os autores o descrevem amplamente, abarcando as múltiplas ações desenvolvidas em saúde mental e não há, portanto, um conceito único. Em consequência, os autores abordam o processo de reabilitação psicossocial nos CAPS de forma variada.

Quanto às ações desenvolvidas nos CAPS e que podem viabilizar o processo de reabilitação psicossocial, observa-se que os autores as caracterizam tanto pelas atividades diárias do serviço como também pelas diversas ferramentas utilizadas na gestão do trabalho em saúde.

Dentre as atividades desenvolvidas nos CAPS destacam-se, principalmente, as oficinas terapêuticas e demais atividades realizadas em grupo (operativos e terapêuticos). As oficinas terapêuticas constituem-se em um dos elementos organizadores do cotidiano dos CAPS e podem ser artísticas, alfabetizadoras ou de geração de renda(12). Outras ações descritas incluem: atividades de recreação e lazer, reunião de família, ações intersetoriais e comunitárias, acompanhamento terapêutico, dentre outras(13-16).

Algumas ferramentas de gestão utilizadas no trabalho em saúde mental são apontadas pelos autores: escuta, acolhimento, vínculo com profissionais, estímulo à corresponsabilização e à autonomia dos usuários, trabalho interdisciplinar, cuidado integral e projeto terapêutico singular.

De maneira geral, os autores citam diversas dificuldades na atenção em saúde mental e no processo de reabilitação psicossocial, mostradas a seguir.

Relações sociais e CAPS

Estudos apontam que o CAPS é a única referência social e de tratamento para muitos usuários, sendo seus relacionamentos sociais restritos a esse serviço de saúde, o que limita uma efetiva reinserção social e a concretização das propostas de reabilitação psicossocial(14,17-19).

No processo de reabilitação psicossocial, ocorrem restrições no estabelecimento da contratualidade dos sujeitos com a comunidade, dificultando a ampliação e a efetivação das trocas afetivas e materiais, bem como a inclusão social(14). Nesse sentido, existe necessidade de construir, ampliar e fortalecer os recursos e as potencialidades da rede social(14,19). Assim, torna-se fundamental favorecer maior circulação dos sujeitos com transtornos mentais nos espaços da cidade(17).

Enfoque comunitário e territorial

Dentro da perspectiva da reabilitação psicossocial, são necessárias intervenções com enfoque comunitário e no território(19-22), pois são elas que direcionam o trabalho cotidiano dos CAPS(21).

Para que seja possível a efetivação de ações no território, os CAPS devem conhecer os recursos territoriais e possibilitar a apropriação dos mesmos por parte da comunidade, ou seja, estar integrado ao território de modo a permitir a permeabilidade entre território e serviço de saúde(21). Por outro lado, alguns profissionais consideram o CAPS como um espaço, em si, de inclusão social, o que limita o desenvolvimento de práticas que possibilitem, de fato, a reinserção social(15,17).

As atividades terapêuticas, ao ficarem centradas preferencialmente nos espaços internos dos serviços e minimmizarem ações territoriais e comunitárias, não possibilitam a inclusão social do portador de transtorno mental, restringindo-se à sua inclusão no próprio serviço(22). As atividades realizadas fora dos CAPS são de extrema importância(15), porém, existe também a necessidade de proposta concreta de reinserção social pelo trabalho(23).

Inserção no mercado de trabalho

Estudos indicam prejuízo na qualidade de vida de muitos usuários, sendo o nível ocupacional e social os mais afetados(24). O trabalho apresenta diferentes sentidos, tais como existencialização, identidade social, autonomia e sociabilidade(23). De maneira geral, nas trocas materiais, as pessoas em sofrimento mental não possuem trabalho com valor social(14), o que dificulta o processo de reabilitação psicossocial.

Os CAPS têm dificuldade em propor alternativas de inclusão pelo trabalho, sendo praticamente ausentes os projetos capazes de influenciar os condicionantes da exclusão do mundo do trabalho(23). Evidencia-se, assim, dificuldade de inserção no mercado de trabalho dos usuários dos CAPS(25). Ainda, alguns profissionais não consideram o trabalho como uma meta próxima ou que esteja ao alcance das ações dos profissionais de saúde(17). Nesse sentido, faz-se necessário o desenvolvimento de estratégias para geração de emprego(24), além da qualificação profissional dos usuários, através de aprendizagem de um ofício(26). As ações relacionadas à geração de renda, no serviço, ainda são tímidas e necessitam de maior apoio para haver inclusão real do usuário por meio do trabalho, que vá ao encontro da proposta de reabilitação psicossocial(27).

Intersetorialidade

Os estudos apontam, ainda, a importância de parcerias intersetoriais, ou seja, para maior articulação dos serviços da rede de saúde mental com serviços de outras áreas (cultura, lazer, moradia, justiça, serviço social)(17,28-29). Por meio do trabalho com diferentes equipamentos, para além da área da saúde, torna-se possível a efetivação do processo de reabilitação psicossocial.

Saúde mental e atenção básica

Outro aspecto importante a ser ressaltado como fundamental no processo de reabilitação psicossocial é a articulação entre CAPS e os serviços da atenção básica em saúde. Estudos indicam fragilidade nessa articulação(30-32), havendo ausência de planejamento e implementação de ações direcionadas para a atenção em saúde mental na atenção básica e fragmentação do atendimento, no modelo de referência e contrarreferência(31).

Desse modo, é necessário que os serviços de saúde tenham a noção de corresponsabilização diante das demandas de promoção, manutenção e reabilitação do usuário do seu território, sendo a reabilitação psicossocial trabalhada por meio de ações de promoção de saúde e prevenção de doenças(32).

Profissionais de saúde

Outro ponto importante, quanto à reabilitação psicossocial, é a fragilidade na formação profissional em saúde mental(30). A equipe do serviço está ampliando seu olhar sobre a saúde mental, quando compreende a reabilitação psicossocial como o centro do cuidado. Por outro lado, muitos profissionais possuem concepções contraditórias, evidenciando tanto o paradigma psicossocial como o psiquiátrico(15). Essa mudança de paradigma vem ocorrendo gradualmente(20) e para que ela se efetive fazem-se necessárias melhorias nas condições de trabalho e educação permanente dos profissionais(33).

As ações de saúde são disponibilizadas sem o referencial concreto de uma proposta norteadora das atividades práticas do serviço(22,27). Os projetos terapêuticos são desenvolvidos pelos profissionais como decorrentes das diretrizes provenientes de instâncias gestoras ou das orientações técnicas próprias a cada categoria profissional, mas não como atividade de construção representativa de uma filosofia de trabalho da equipe de saúde(22). Nesse sentido, é necessário maior investimento na capacitação profissional(15), produção de pesquisas científicas e de práticas que possibilitem mudança de posição dos trabalhadores na produção de serviços dos CAPS(26,34).

Família

O atendimento à família e a participação do familiar no cuidado em saúde mental é de extrema importância para o processo de reabilitação psicossocial(25,29,35-36). Os familiares têm pouco suporte e orientação sobre como agir em distintas situações(14) e consideram os espaços de participação nos CAPS como formas importantes de acompanhamento(26). Dessa forma, são necessárias intervenções que instrumentalizem as famílias no cuidado com os usuários(33), compreendendo que esse aspecto contribui para a efetivação da reabilitação psicossocial.

Portanto, a pouca articulação dos CAPS com os serviços de atenção básica e serviços intersetoriais, ações restritas ao interior do serviço, com baixo enfoque comunitário e manutenção de vínculos afetivos restritos, poucas iniciativas para a inclusão social pelo trabalho, baixo suporte às famílias e falta de capacitação dos profissionais de saúde são alguns dos fatores que dificultam a efetivação da reabilitação psicossocial nos CAPS.

 

Discussão

A grande expansão do número de CAPS no Brasil, em consonância com a redução de leitos em hospitais psiquiátricos nos últimos anos, evidencia que essa modalidade de tratamento extra-hospitalar se constitui em uma dimensão significativa para os usuários e seus familiares na medida em que contribui para a diminuição do número de internações e favorece a melhoria da qualidade de vida dos mesmos(28).

Alguns autores consideram as atividades desenvolvidas pelos CAPS como equivalentes à reabilitação psicossocial, enquanto outros analisam um conjunto de ações realizadas como partes constituintes desse processo, incluindo as diversas ferramentas de gestão e organização do trabalho em saúde.

Estudos apontam que a concretização da reabilitação psicossocial não vem ocorrendo efetivamente nos CAPS, devido às inúmeras dificuldades enfrentadas nesses serviços(14,26,37), evidenciando risco eminente dos CAPS reproduzirem modelos manicomiais(15). Nesse sentido, as ações psicossociais permanecem à margem do projeto terapêutico(22), predominando intervenções pautadas no paradigma psiquiátrico. Ainda, alguns profissionais concebem essas ações como não sendo de responsabilidade dos CAPS e sim de outros serviços, como Centros de Convivência e Oficinas Terapêuticas, pouco considerando a importância do trabalho na rede de atenção psicossocial(38).

Há experiências em que as ações desenvolvidas nos CAPS, como oficinas terapêuticas e outras atividades realizadas em grupo, ocorrem de forma descontextualizada das necessidades dos usuários, sem a busca da autonomia, servindo apenas para ocupar o tempo e, portanto, não contribuindo para a reabilitação psicossocial(12). Esse aspecto aponta a necessidade de reflexão sobre os fundamentos teóricos das ações a serem desenvolvidos pelos profissionais dos CAPS. Além disso, há, no cotidiano dos CAPS, uma cisão entre a clínica e a perspectiva da reabilitação psicossocial, indicando a necessidade de uma prática voltada para a clínica ampliada, buscando romper essa dicotomia(34).

Nessa perspectiva, a atenção em saúde compartilhada na Rede de Atenção Psicossocial, bem como entre diversos outros setores, é essencial para a efetivação da proposta de reabilitação psicossocial. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) tem a finalidade de criar, ampliar e articular diferentes pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, tendo como base serviços territoriais e comunitários, favorecendo a promoção de autonomia e o exercício de cidadania(39). Ainda, no que se refere à reabilitação psicossocial, a RAPS engloba iniciativas de geração de trabalho e renda, empreendimentos solidários e cooperativas sociais(39).

Além do trabalho desenvolvido em rede, também o trabalho em equipe interdisciplinar contribui para a efetivação do processo de reabilitação psicossocial. Na interdisciplinaridade são estabelecidas relações mais horizontais entre as diferentes disciplinas, além do compartilhamento de uma mesma plataforma de trabalho(40). Cabe ressaltar que uma ferramenta possível para o estabelecimento de um trabalho interdisciplinar é a equipe de referência(40).

Outra estratégia possível para o desenvolvimento do trabalho em equipe nos CAPS, bem como melhoria da atenção em saúde mental e, consequentemente, efetivação da reabilitação psicossocial é a supervisão clínico-institucional. O Ministério da Saúde destina uma verba para a efetivação do Programa de Qualificação dos CAPS, que engloba tal supervisão(41). A supervisão clínico-institucional é definida como o trabalho de um profissional de saúde capacitado, externo ao serviço, que acompanhe e discuta o trabalho desenvolvido pela equipe, o projeto terapêutico do serviço, os Projetos Terapêuticos Singulares, as questões institucionais e de gestão, bem como outras questões relevantes(41).

De maneira geral, muitos são os desafios da atenção em saúde mental no que se refere à reabilitação psicossocial e muitas devem ser as estratégias para efetivação desse processo.

 

Considerações finais

De maneira geral, observa-se que o conceito de reabilitação psicossocial, embora muito presente nas publicações, encontra-se ainda sem definição unívoca e engloba múltiplos significados.

Entende-se que a reabilitação psicossocial é peça fundamental do trabalho realizado nos CAPS, e que pode ser efetivada a partir de múltiplas ações em saúde mental.

Este estudo permite afirmar que os artigos analisados descrevem várias experiências em que há grandes esforços para que se dê, de fato, a reabilitação psicossocial dos sujeitos em tratamento, embora esse processo seja permeado por diversas dificuldades. No conjunto dos estudos, destacam-se, também, algumas estratégias de enfrentamento de tais dificuldades, que merecem atenção por parte dos gestores e profissionais de saúde mental. Cabe ressaltar que são necessárias novas pesquisas que investiguem como se dá o processo de reabilitação psicossocial nos cenários de prática, e quão efetivo tem sido esse processo na vida das pessoas com transtorno mental, apontando seus resultados.

 

Referências

1. Amarante PDC, organizador. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: ENSP; 1995.         [ Links ]

2. Ministério da Saúde (BR). Portaria Ministerial n.º 336 de 19 de fevereiro de 2002. Define e estabelece diretrizes para o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.         [ Links ]

3. Rabelo AR, organizador. Um manual para o CAPS: Centro de Atenção Psicossocial. 2.ed. Salvador: EDUFBA; 2006.         [ Links ]

4. Melman J. Família e doença mental: repensando a relação entre profissionais de saúde e familiares. 2.ed. São Paulo: Escrituras; 2006.         [ Links ]

5. Yasui S. A produção do cuidado no território: ‘há tanta vida lá fora’. In: Anais eletrônicos da Conferência Nacional de Saúde Mental; 2010. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.

6. Goldberg J. Reabilitação como processo: o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS. In: Pitta A, organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 2.ed. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 33-47.         [ Links ]

7. Pinto ATM, Ferreira AAL. Problematizando a reforma psiquiátrica brasileira: a genealogia da reabilitação psicossocial. Psicol Estud. 2010;15(1):27-34.         [ Links ]

8. Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: Pitta A, organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 2.ed. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 13-8.         [ Links ]

9. Pitta A. O que é reabilitação psicossocial no Brasil, hoje? In: Pitta A, organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 2.ed. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 19-26.         [ Links ]

10. Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma prática a espera de teoria. In: Pitta A, organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 150-4.         [ Links ]

11. Souza MT, Silva MD, Carvalho R. Revisão integrativa: o que é e como fazer? Einstein. 2010;8(1):102-6.         [ Links ]

12. Ribeiro LA, Sala ALB, Oliveira, AGB. As oficinas terapêuticas nos centros de atenção psicossocial. REME Rev Min Enferm. 2008;12(4):516-22.         [ Links ]

13. Machado AM, Miasso AI, Pedrão LJ. Sentimento do portador de transtorno mental em processo de reabilitação psicossocial frente à atividade de recreação. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(2):458-64.         [ Links ]

14. Costa AA, Trevisan ER. Mudanças psicossociais no contexto familiar após a desospitalização do sujeito com transtornos mentais. Saúde Debate. 2012;36(95):606-14.         [ Links ]

15. Leão A, Barros S. As representações sociais dos profissionais de saúde mental acerca do modelo de atenção e as possibilidades de inclusão social. Saúde Soc. 2008;17(1):95-106.         [ Links ]

16. Carniel ACD, Pedrão JL. Contribuições do acompanhamento terapêutico na assistência ao portador de transtorno mental. Rev Eletrôn Enferm. 2010;12(1):63-72.         [ Links ]

17. Leão A, Barros S. Inclusão e exclusão social: as representações sociais dos profissionais de saúde mental. Interface Comum Saúde Educ. 2011;15(36):137-52.         [ Links ]

18. Costa CS, Bandeira M, Cavalcanti RLA, Scalon JD. A percepção de pacientes e familiares sobre os resultados do tratamento em serviços de saúde mental. Cad Saúde Pública. 2011;27(5):995-1007.         [ Links ]

19. Souza J, Kantorski LP, Vasters GP, Luis MAV. Rede social de usuários de álcool, sob tratamento, em um serviço de saúde mental. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2011;19(1):140-7.         [ Links ]

20. Mielke FB, Kantorski LP, Jardim VM, Olschowsky A, Machado MS. O cuidado em saúde mental no CAPS no entendimento dos profissionais. Ciênc Saúde Coletiva. 2009;14(1):159-64.         [ Links ]

21. Leão A, Barros S. Território e serviço comunitário de saúde mental: as concepções presentes nos discursos dos atores do processo da reforma psiquiátrica brasileira. Saúde Soc. 2012;21(3):572-86.         [ Links ]

22. Fiorati RC, Saeki T. As atividades terapêuticas em dois serviços extra-hospitalares de saúde mental: a inserção das ações psicossociais. Cad Ter Ocup UFSCar. 2012;20(2):207-15.         [ Links ]

23. Rodrigues RC, Marinho TPC, Amorim P. Reforma psiquiátrica e inclusão social pelo trabalho. Ciênc Saúde Coletiva. 2010;15(Supl 1):1615-25.         [ Links ]

24. Silva TFC, Mason V, Abelha L, Lovisi GM, Cavalcanti MT. A avaliação da qualidade de vida dos pacientes com transtorno do espectro esquizofrênico atendidos nos Centros de Atenção Psicossocial na cidade do Rio de Janeiro. J Bras Psiquiatr. 2011;60(2):91-8.         [ Links ]

25. Brasil EGM, Costa EC, Jorge MSB. Representações sociais de usuários e trabalhadores de um centro de atenção psicossocial da região nordeste. Rev Baiana Saúde Pública. 2012;36(2):368-85.         [ Links ]

26. Azevedo DM, Miranda FAN. Oficinas terapêuticas como instrumento de reabilitação psicossocial: percepção de familiares. Esc Anna Nery. 2011;15(2):339-45.         [ Links ]

27. Kantorski LP, Quevedo ALA, Guedes AC, Bielemann VLM, Heck RM, Borges LR. Oficinas de reciclagem no CAPS Nossa Casa: a visão dos familiares. REME Rev Min Enferm. 2009;13(1):43-8.         [ Links ]

28. Nasi C, Schneider JF. O Centro de Atenção Psicossocial no cotidiano dos seus usuários. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(5):1157-63.         [ Links ]

29. Oliveira E, Oliveira MAF, Claro HG, Paglione HB. Práticas assistenciais no centro de atenção psicossocial de álcool, tabaco e outras drogas. Rev Ter Ocup. 2010;21(3):247-54.         [ Links ]

30. Onocko Campos RT, Furtado JP, Passos E, Ferrer AL, Miranda L, Gama CAP. Avaliação da rede de centros de atenção psicossocial: entre a saúde coletiva e a saúde mental. Rev Saúde Pública. 2009;43:16-22.         [ Links ]

31. Oliveira FB, Guedes HKA, Oliveira TBS, Lima Júnior JF. (Re)construindo cenários de atuação em saúde mental na Estratégia Saúde da Família. Rev Bras Promoç Saúde. 2011;24(2):109-15.         [ Links ]

32. Kantorski LP, Bielemann VLM, Classen BN, Padilha MAS, Bueno MEN, Heck RM. A concepção dos profissionais acerca do projeto terapêutico de centros de atenção psicossocial. Cogitare Enferm. 2010;15(4):659-66.         [ Links ]

33. Cavalheri SC. Transformações do modelo assistencial em saúde mental e seu impacto na família. Rev Bras Enferm. 2010;63(1):51-7.         [ Links ]

34. Kirschbaum DIR. Concepções produzidas pelos agentes de enfermagem sobre o trabalho em saúde mental com sujeitos psicóticos em um centro de atenção psicossocial. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2009;17(3):368-73.         [ Links ]

35. Zanatta AB, Garghetti FC, Lucca SR. O centro de atenção psicossocial álcool e drogas sob a percepção do usuário. Rev Baiana Saúde Pública. 2012;36(1):225-37.         [ Links ]

36. Wetzel C, Schwartz E, Lange C, Pinho LB, Zillmer JGC, Kantorski LP. A inserção da família no cuidado de um centro de atenção psicossocial. Ciênc Cuidado Saúde. 2009;8( Supl):40-6.         [ Links ]

37. Fiorati RC, Saeki T. Projeto terapêutico nos serviços extra-hospitalares de saúde mental: uma reflexão crítica sobre a forma de elaboração e gestão dos projetos terapêuticos nos serviços. Saúde Soc. 2012;21(3):587-98.         [ Links ]

38. Fiorati RC, Saeki T. A inserção da reabilitação psicossocial nos serviços extra-hospitalares de saúde mental: o conflito entre racionalidade instrumental e racionalidade prática. Rev Ter Ocup. 2011;22(1):76-84.         [ Links ]

39. Ministério da Saúde (BR). Portaria Ministerial n.º 3088 de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.         [ Links ]

40. Furtado JP. Equipes de referência: arranjo institucional para potencializar a colaboração entre disciplinas e profissões. Interface Comun Saúde Educ. 2007;11(22):239-55.         [ Links ]

41. Ministério da Saúde (BR). Portaria Ministerial n.º 1174 de 7 de julho de 2005. Destina incentivo financeiro emergencial para o Programa de Qualificação dos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS e dá outras providências. Brasília: Ministério da Saúde; 2005.         [ Links ]

 

 

Correspondencia:
Marianna de Francisco Amorim
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Serviço de Atenção Psicossocial
Cidade Universitária, s/n. Caixa Postal 549
CEP: 79070-900, Campo Grande, MS, Brasil
E-mail: marianna.amorim@ufms.br

Recebido: 30.04.2014
Aprovado: 19.05.2015

 

 

1    World Health Organization. Care for the Mentally III. WHO Collaborating Centre, Douglas Hospital Centre. Montreal; 1987 apud(9)