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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.11 no.4 Ribeirão Preto dez. 2015

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v11i4p181-189 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v11i4p181-189

 

Acolhimento aos usuários de crack de um Centro de Atenção Psicossocial: os sentidos atribuídos pelos trabalhadores

 

Acogimiento a los usuarios de crack de un Centro de Atención Psicosocial: los sentidos atribuidos por los trabajadores

 

 

Sinara de Lima SouzaI; Luzimara Gomes MeloII

IPhD, Professor Adjunto, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, BA, Brasil
IIEnfermeira, Aluna residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família, Fundação Estatal de Saúde da Família (FESF-SUS) e Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Salvador, BA, Brasil

 

 


RESUMO

Os objetivos deste estudo foram compreender os sentidos atribuídos pelos trabalhadores em relação ao acolhimento aos usuários de crack atendidos em um CAPS ad do interior da Bahia e identificar quais as ações de acolhimento desenvolvidas por esses trabalhadores. Caracteriza-se por ser de abordagem qualitativa, exploratória e descritiva. A coleta de dados foi realizada através de um roteiro de entrevista semiestruturada e da observação participante. A técnica de análise de conteúdo do tipo temática foi utilizada, emergindo duas categorias. Conclui-se que, mesmo que alguns trabalhadores confundam com o processo de triagem, eles reconhecem a importância de escuta qualificada, resolutiva, humanizada, baseada no princípio do SUS da equidade, visando o reconhecimento das demandas, estabelecendo vínculos terapêuticos, sem discriminação ou preconceito.

Descritores: Acolhimento; Saúde Mental; Cocaína Crack.


RESUMEN

Los objetivos de este estudio fueron comprender los sentidos atribuidos por los trabajadores con relación al acogimiento a los usuarios de crack atendidos en un CAPS ad del interior del estado de Bahia e identificar cuales las acciones de acogimiento desarrolladas por esos trabajadores. Estudio cualitativo, exploratorio y descriptivo. Los datos fueron recolectados a través de un guión de entrevista semiestructurada y observación participante. La técnica de análisis de contenido del tipo temático fue utilizado, revelando dos categorías. Se concluye que, aunque algunos trabajadores confundan con el proceso de tamizaje, admiten la importancia de escucha cualificada, resolutiva, humanizada, basada en el principio del SUS de la equidad, visando al reconocimiento de las demandas, estableciendo vínculos terapéuticos, sin discriminación o perjuicio.

Descriptores: Acogimiento; Salud Mental; Cocaína Crack.


 

 

Introdução

A Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde-HumanizaSUS (PNH), foi criada com o objetivo de reverter alguns desafios ainda persistentes no que tange à operacionalização do sistema público de saúde, principalmente no que diz respeito ao despreparo de profissionais e demais trabalhadores para lidar com a dimensão da subjetividade que permeia toda prática de saúde. Por se tratar de uma política, a PNH apresenta diretrizes que expressam suas orientações gerais e, dentre essas diretrizes, o acolhimento desponta como uma das principais(1).

Segundo o HumanizaSUS - documento base para gestores e trabalhadores do SUS(1), lançado pelo Ministério da Saúde (MS), acolhimento é um processo de práticas de produção e promoção de saúde, levando em consideração a escuta qualificada que possibilite a análise da demanda de forma a atender suas necessidades, desde o momento em que procura o serviço até a sua saída. É a garantia de uma atenção integral, resolutiva e responsável, que busca a articulação com as redes internas e externas, ou seja, com a própria equipe interdisciplinar da unidade e outros serviços que possam dar continuidade à assistência, quando necessário.

O acolhimento, enquanto uma diretriz operacional, envolve a inversão da lógica de organização e funcionamento dos serviços, partindo dos princípios de universalidade de acesso, da resolução dos problemas de saúde, da reorganização dos processos de trabalho para uma atenção que envolva toda a equipe, e a qualificação da relação entre o trabalhador e o usuário em busca da solidariedade, humanidade e cidadania. Além disso, no que tange ao modo de se trabalhar para a saúde, revela nova maneira de operar, levando em consideração assistência centrada no usuário e não mais na doença que esse apresenta(2).

Esse processo de transformação da assistência do modelo biomédico, que tem como centro de produção da saúde a doença, para um que operacionalize a partir do usuário, tendo como eixo norteador o acolhimento, também precisa ser contemplado pelos trabalhadores que atuam no campo da saúde mental. Sendo que, no Brasil, a partir da Reforma Psiquiátrica, foi adotada a proposição de abordagem equânime, integral, de base comunitária, ao portador de transtorno mental, que antes era visto como um ser que deveria ser excluído da convivência social e jogado em hospitais psiquiátricos, muitas vezes sem o suporte necessário para tratar todos os pacientes, devido à superlotação.

O uso/abuso de Substâncias Psicoativas (SPA) também é um componente da política de saúde mental. Historicamente, o cuidado direcionado aos usuários de drogas era voltado para ações baseadas na exclusão e conquista da abstinência. Todavia, o modelo repressor de combate não surtiu efeito e, além disso, as questões das drogas estavam associadas a práticas marginais, sendo tratados, também, como caso de polícia. Assim, mesmo estando entre as classificações de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) propostas pela Portaria citada, os CAPS ad que são locais de acolhimento, cuidados, suporte, prevenção e enfrentamento de questões ligadas às drogas, passaram a ganhar maior destaque no cenário da saúde mental, após ser instituído o Programa de Atenção Comunitária Integrada ao Usuário de Álcool e Outras Drogas, através da Portaria Ministerial nº816, de 30 de abril de 2002(3).

O uso de SPA se intensificou de forma crescente e vem se constituindo em grave problema de saúde pública que requer o investimento da área da saúde em políticas que visem tratar os usuários de forma acolhedora, enxergando, sem preconceitos, mediante a quebra de paradigmas entre a associação do uso/abuso e a marginalidade e sem que sejam tratados como caso de polícia. Assim, os CAPS ad são dispositivos importantes dentro desse processo que despontam como viabilizadores de um tratamento não mais centrado na exclusão e abstinência, já que tratar o dependente químico requer especificidades, além de ter que ultrapassar velhos dilemas para prestar acolhimento baseado nas políticas de humanização.

Em pesquisa realizada na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), com os descritores acolhimento and CAPS, dos 27 artigos encontrados no portal de pesquisa, 20 contemplavam a temática do acolhimento nos CAPS e, apenas um apresentou como campo de estudo o CAPS ad, além de também envolver os outros CAPS no estudo. Face ao exposto, pode-se inferir que existe escassez de estudos que se preocupam com o que os profissionais fazem em relação ao acolhimento a essa clientela, quais seus valores, crenças e como agem no momento de acolher esse tipo de usuário. Pois, de um lado, existe a concepção de que as drogas estão vinculadas a situações de ilegalidade, o que pode dificultar a aproximação dos usuários aos serviços de atenção à saúde, e, do outro, existe o modo como se organiza o trabalho e como a unidade e a equipe estão preparadas para atendê-los.

Além das questões citadas, o despertar para esse tema, também surgiu a partir das experiências de campo no período em que o autor, aqui, participou como bolsista do PET-Saúde Mental, Álcool, Crack e outras drogas, tendo a oportunidade de refletir sobre a forma de tratar e acolher os usuários de drogas, já que antes de fazer parte do programa, não conhecia essa realidade. Após essa vivência, desmistificaram-se esses conceitos em relação ao modo de tratar e houve o reconhecimento de que a dependência é uma doença crônica que necessita de tratamento humanizado e acolhedor, com ações que envolvam a equipe multiprofissional. A partir disso, surgiu a seguinte indagação: quais os sentidos atribuídos pelos trabalhadores em relação ao acolhimento a usuários de crack de um CAPS ad do interior da Bahia?

Este estudo teve como objetivos compreender os sentidos atribuídos pelos trabalhadores em relação ao acolhimento aos usuários de crack, atendidos no CAPS ad do interior da Bahia, e identificar quais são as ações de acolhimento desenvolvidas pelos trabalhadores do CAPS ad.

 

Metodologia

Esta pesquisa é de abordagem qualitativa, exploratória e descritiva. Foi realizada no CAPS ad do município de Feira de Santana, Bahia. O serviço destina-se a pessoas portadoras de transtornos mentais e comportamentais, devido ao abuso de álcool e outras drogas, a partir de quinze anos de idade, oferecendo tratamento e suporte ao usuário e sua família por meio de atendimentos individuais, grupos e oficinas, medicamentoso, bem como conscientizando a população sobre os danos e riscos associados ao uso/abuso de substâncias psicoativas.

Os participantes do estudo foram os trabalhadores que atuavam no CAPS ad há mais de seis meses, pois se entende que o acolhimento é praticado desde o momento em que o profissional adentra o serviço, porém, é necessário o reconhecimento do seu campo de atuação para haver o entrosamento com os usuários e a dinâmica do serviço. Não foi definida a categoria profissional para a inclusão, pois o CAPS ad trabalha na perspectiva de uma equipe interdisciplinar para o atendimento a seus usuários. Assim, atualmente, a equipe é composta por 21 trabalhadores, sendo que 18 concordaram em participar do estudo, porém, 17 foram analisadas, pois a entrevista número um (Ent.1) foi utilizada como pré-teste. Sendo assim, neste estudo, houve dezessete participantes.

Na coleta de dados foi utilizada a entrevista semiestruturada para obtenção de informações primárias ou subjetivas. Também foi utilizada a técnica da observação participante. Para isso, foram utilizados como instrumentos um roteiro para observação participante e o diário de campo. Os dados foram analisados por meio da técnica de análise de conteúdo do tipo temática.

A pesquisa foi baseada no que dispõe a Resolução nº466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, a qual apresenta as diretrizes e normas regulamentares de pesquisas envolvendo seres humanos(4). Para tanto, foi solicitada a autorização da Coordenação da Educação Permanente da Secretária Municipal de Saúde. O projeto foi cadastrado na Plataforma Brasil e encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana. Com isso, a coleta de dados deste estudo foi realizada após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

 

Resultados

As entrevistas foram realizadas com os diversos trabalhadores que compõem a equipe do CAPS ad, como terapeutas ocupacionais, enfermeiros, psicólogos, técnicos de enfermagem, assistente social, pedagoga, médico e assistentes administrativos. Do total de participantes analisados, a maioria era do sexo feminino, correspondente a 14 trabalhadoras*, e três são do sexo masculino. Com relação à idade, a faixa etária predominante estava entre 31 e 40 anos, com oito entrevistadas. O nível de escolaridade da maioria, totalizando onze trabalhadoras, é superior completo, sendo que quatro dessas possuíam pós-graduação.  Apenas três possuíam formação na área de saúde mental e uma estava cursando pós-graduação.

Apesar da grande rotatividade que faz parte do cenário da saúde no município, a maior parte das entrevistadas possui tempo de atuação no CAPS ad acima de um ano, como se pode observar na tabela abaixo:

 

 

O CAPS ad é cenário de atuação do Programa de Educação pelo Trabalho para Saúde desde abril de 2011 e, atualmente, conta com dez bolsistas e um voluntário, cinco preceptores e um preceptor voluntário e dois tutores, distribuídos entre o PROPET - Saúde Mental e o PET - Saúde Redes. De acordo com as entrevistas realizadas, do total de entrevistadas, quatro são membros desse programa como preceptoras e uma como preceptora voluntária.

Os diversos sentidos atribuídos ao acolhimento dos usuários de crack

Nessa categoria, discorre-se sobre os sentidos atribuídos ao acolhimento de usuários de crack pelas trabalhadoras de saúde do CAPS ad. Nota-se que tais sentidos revelam que, para algumas trabalhadoras, essa tecnologia se constitui em algo pontual, enquanto que, para outras, foi evidenciado o reconhecimento de que essa tecnologia perpassa todas as etapas do encontro entre trabalhadora/usuário.

Acolher enquanto ato de receber e triar

Na maioria dos discursos analisados, as trabalhadoras revelaram o acolhimento como sendo o ato de receber o usuário no serviço.

Acolhimento é algo subjetivo, no qual você recebe alguém e cria empatia por essa pessoa e procura dar a palavra acolhimento, mas a acolhida necessária que ele precisa para o sofrimento dele naquele momento (Ent.10).

[...] Então, eu acho que acolher é isso, é receber bem é ouvir, fazer a escuta qualificada, melhor possível, né? E junto com ele traçar o projeto que ele possa percorrer e executar o tratamento dele, a partir daquele dia (Ent.18).

A partir das falas pode-se inferir que as trabalhadoras atribuem ao acolhimento o ato de receber o usuário, estando isso atrelado a algo subjetivo que vai além de somente uma ação. A palavra receber aparece em muitas entrevistas e os significados que elas atribuem vão além de apenas receber, mas, também, estar disponível para que venha a se tornar um momento de encontro que possibilite ouvir, escutar, criar empatia, estando o profissional sensível para tal ação.

Observa-se, em diversos discursos, que, mesmo as trabalhadoras que reconhecem o acolhimento como momento de escuta, criação de empatia e a sua dimensão subjetiva, acabam por confundi-lo com o processo de triagem e o ato de receber acaba sendo associado ao de triar. Como se pode observar abaixo.

Na verdade é feito uma triagem, né? Tem que saber dele o que é que ele tá sentindo no momento, o que ele quer, o desejo dele e é isso aí (Ent.11).

Para mim, acolhimento é quando o usuário, ele procura a instituição. Então, no momento que ele procura, o plantonista do dia vai acolhê-lo [...] (Ent.17).

[...] é o primeiro momento que o paciente tem com o funcionário da instituição, né? (Ent.8).

Segundo a rotina da unidade, a cada dia da semana um profissional de nível superior é escalado para realizar o "acolhimento", sendo esse o momento em que o profissional faz uma análise da demanda. Diante disso, foi perceptível, na fala de algumas participantes, que o sentido atribuído ao acolhimento se confundia com o processo de triagem. Esses dois diferem, já que triar envolve uma ação pontual e uma etapa no processo de adesão do usuário ao serviço, e o acolhimento perpassa por todos os momentos da conduta terapêutica e do cuidado em saúde(5-6).

Acolhimento enquanto tecnologia do encontro

O Ministério da Saúde, em sua cartilha sobre Acolhimento nas práticas de produção de saúde, considera o acolhimento como uma tecnologia de encontro, na qual há um regime de afetabilidade que potencializa os processos de produção de saúde(5). Essa abordagem do acolhimento, como um momento de encontro, em que o trabalhador recebe o usuário, foi evidenciado na fala abaixo.

Acolher é um ato de encontro, não é? É você se colocar disponível para o outro, para ouvir, ser sensível ao sofrimento ou aos sentimentos do outro, tá pronta para poder ajudar, tentar solucionar os problemas do outro (Ent.5).

O acolhimento é uma proposta que visa uma melhoria das relações entre trabalhadores e usuários, concretizando-se no encontro desses, através de um conjunto formado por atividades de escuta, com identificação de problemas, processamento da demanda e busca de resolutividade(7-8). Portanto, a escuta configura-se como ponto crucial para efetivação do acolhimento. Neste estudo, pôde-se constatar que nas falas da maioria das trabalhadoras a escuta aparece como aspecto principal para o acolhimento.

[...] Tem uma escuta diferenciada também, né? E ouvir muito, ouvir mais o paciente do que falar. [...] Porque muitas vezes você encaminha para as atividades ou para algum lugar e esse paciente ele não vai, porque não é da vontade dele (Ent.3).

Acolher é a escuta diferenciada, é ouvir o paciente no primeiro momento. [...] É acolher, ouvir, escutar. […] A escuta diferenciada, sem pressa, sem demora, porque não adianta a gente fazer o acolhimento com pressa e não fazer um trabalho de excelência (Ent.15).

Outro componente do acolhimento que emergiu das falas das trabalhadoras concerne na visualização desse como uma condição na qual se enxerga o usuário sem preconceitos, constituindo-se em um olhar diferenciado aos usuários de crack.

[...] Então, eu acho que é você tá ali, disposto a escutar, disposto a estar diante da história dele, independente do que você já viveu, independente do que você acredita, né? Deixando de lado, realmente, o preconceito, deixando de lado o julgamento, né? (Ent.14).

Os CAPS são ambientes que despertam nos usuários o sentimento de pertencerem a uma comunidade, sentimento esse que foi perdido, pelo fato de, por determinação da sociedade, carregarem o estigma de loucos ou drogados(9). Sobre essa nova forma de assistir a essa clientela, na Ent.4 comenta-se que:

O usuário do crack, bem como outras drogas, ele já sofre com a discriminação [...] e aqui quando ele chega, ele é bem-vindo, porque a unidade existe para prestar esse serviço (Ent.4).

Outro aspecto que emergiu das falas de três participantes foi o acolhimento como algo contínuo que, de acordo com o Ministério da Saúde, é um processo de produção e promoção de saúde, no qual o trabalhador e a equipe são responsáveis pelo usuário desde a sua chegada até sua saída(1). Isso fica bem explícito na fala da Ent.2 quando define o acolhimento da seguinte forma:

Acolhimento é você receber e acolher o paciente desde o momento que ele chega à unidade pela primeira vez, durante toda sua permanência até ele sair, até ele ser, digamos assim, receber alta. Ou seja, é escutar o paciente, é conseguir entender, para que possa conseguir resolver a sua demanda e fazer os encaminhamentos necessários, seja dentro da unidade para outros profissionais, seja para outras unidades de saúde fora do CAPS ad (Ent.2).

Além disso, o entendimento de que ouvir e entender a demanda como algo fundamental para dar resolutividade também aparece na fala da Ent.2 ao referir que é preciso entender, para conseguir resolver a sua demanda. De semelhante modo, tal colocação também emergiu nos discursos das outras participantes. Assim, entende-se que essa compreensão se constitui em ponto crucial, já que acolher não é somente escutar, mas fazer com que essa tecnologia se torne norteadora para um tratamento resolutivo.

A operacionalização do acolhimento aos usuários de crack no cotidiano das trabalhadoras do CAPS ad

O acolhimento se constitui em uma diretriz operacional, que visa a valorização da dimensão subjetiva do indivíduo, bem como o entendimento de que esse possui aspectos socioculturais que também precisam ser considerados para que haja uma abordagem equânime e integral.

Durante a análise das entrevistas e das observações em campo, constatou-se que as trabalhadoras do CAPS ad se preocupam em enxergar o usuário em sua integralidade, e não só a doença/dependência química. Assim, pode-se observar na fala da entrevistada abaixo.

[...] olhar o sujeito, a relação que ele tem com a droga, sem estabelecer generalizações ou reducionismos, mas nesse sentido de ver o sujeito e as questões que ele traz junto com ele e as relações familiares, o biopsicossocial e ainda entra o espiritual, se brincar. De alguma forma isso tudo tá associado ao uso (Ent.16).

Dentro desse contexto, reconhecendo os aspectos biopsicossociais e culturais, uma trabalhadora reconheceu a importância das relações familiares para o tratamento do usuário de crack.

[...] Na maioria das vezes, esses pacientes já estão morando em rua. Então, às vezes, a gente busca, o que pode diferenciar é justamente isso, às vezes a gente busca um contato com a família para poder reintegrar novamente esse paciente a família (Ent.2).

Emergiu nos discursos da maioria das participantes que o acolhimento aos usuários de crack deve ser feito da mesma maneira que os outros usuários que procuram o CAPS ad. No entanto, duas participantes afirmaram que há uma especificidade, como se pode observar nos discursos da Ent.10 e Ent.11.

O acolhimento ao usuário de crack tem uma especificidade, porque o usuário de crack ele é muito inquieto, se ele chega em crise, ele chega muito inquieto. Então, não exigir por demais a atenção dele, né, ouvi-lo e tá presente. A presença do profissional junto ao cliente, ao usuário é importante (Ent.10).

[...] eu acho que deveria ser um acolhimento diferenciado é, [...] pra dar suporte, porque muitas vezes sozinho eles também não dão continuidade. São pacientes, pelo que eu percebo que têm uma dificuldade de sair da dependência e que têm dificuldade de manter o tratamento, porque o vício, a dependência ela é muito grande, é muito física também [...] (Ent.16).

Outro aspecto, no que tange ao acolhimento aos usuários de crack que aparece nas falas das participantes, enquanto elemento dificultador ao acolhimento, é a forma como esse usuário chega ao serviço, pois houve vários relatos sobre a inquietação, agressividade e a irritabilidade do usuário desse tipo de substância psicoativa, como nas falas seguintes.

[...] Então, você tem que tá sensível e, talvez, com um pouco mais de disponibilidade no sentido de, às vezes, eles são mais resistentes, né? [...] Isso é comum, então, você tem de estar disponível para ouvir, para entender que às vezes aquela irritabilidade, aquela agressividade não tá direcionada, não é para você, seria para qualquer pessoa que tivesse ali, naquele momento perto dele [...] (Ent.5).

[...] Ouvindo, tentando dialogar, às vezes, quando ele tá muito irritado, tentando levar a coisa numa situação mais leve, de mais disponibilidade, até tentando fazer uma brincadeira para que ele entre nessa brincadeira, ele possa relaxar um pouquinho, ficar menos irritado, trazer ele pra realidade, no sentido de dizer: "oh vamos aqui, eu posso tentar te ajudar, só precisa você querer", né? (Ent.5).

Além disso, também surge o acolhimento em situações de crise, o qual não se constitui em uma situação ruim, que precisa ser bloqueada e controlada com maior rapidez, não devendo ser encarada apenas como agudização da sintomatologia psiquiátrica, mas necessita despertar no trabalhador uma postura para dar suporte, valorizar o sujeito como ser humano e não apenas como doente, respeitando seu tempo, sua individualidade e singularidade, realizar uma escuta terapêutica sem emitir juízo moral, apenas escutar(10). Em consonância com isso, a Ent.10 diz: "[...] o usuário de crack ele é muito inquieto, se ele chega em crise, ele chega muito inquieto. Então, não exigir por demais a atenção dele, né? Ouvi-lo e tá presente", reconhecendo, assim, a importância dessa escuta no atendimento em crise.

Discussão

Atribuir ao acolhimento uma ação pontual se revela como elemento dificultador para que o acolhimento venha ser realizado de acordo com a proposta da Política Nacional de Humanização, que visa atenção integral e resolutiva, pautada no reconhecimento das dimensões subjetivas no que diz respeito à forma de lidar e tratar os usuários.

Em estudo realizado foi evidenciada a vinculação da triagem com o acolhimento, pois "a triagem era aplicada e ao mesmo tempo levava o nome de acolhimento, sem, com isso, alterar significativamente as práticas, não possibilitando o espaço da fala, não reorganizando a rede de cuidados e não investindo em vínculos com os usuários"(11). Pôde-se relacionar essa associação do acolhimento com a triagem, neste estudo, devido ao fato do primeiro atendimento realizado no CAPS ad estudado receber o nome de acolhimento, o que leva a uma confusão associativa entre esses dois termos, fazendo a trabalhadora entender os dois como sinônimos.

A triagem "se constitui no momento de acolher a pessoa com transtorno mental e valorizar o conteúdo de suas falas, buscando identificar o perfil da pessoa a ser atendida"(12). Isso leva a inferir que o acolhimento está contido na recepção e triagem, porém, extrapola esses momentos, na medida em que deve perpassar todos os momentos da interação entre equipe e usuários.

Pode-se perceber que há preocupação por parte das trabalhadoras em resgatar o convívio familiar que outrora foi perdido, em decorrência do uso/abuso de substâncias psicoativas, pois os vínculos familiares são rompidos ou fragilizados devido à dependência química, sendo que o contexto de recuperação é favorecido quando se encontra permeado por um conjunto de apoios como a família, grupos e rede de amigos. Além disso, há que se levar em consideração a importância de oferecer apoio à rede social na qual o usuário de substâncias psicoativas está inserido, no caso, a família, com o objetivo de modificar a estrutura vulnerável em decorrência do processo de dependência(9).

É importante destacar que, no campo no qual este estudo foi desenvolvido, existe o grupo de família, o qual oferece suporte à família entendendo, dessa forma, que a questão da droga não se limita apenas a tratar o usuário, mas perpassa pelas questões biopsicossociais, levando em consideração a importância de prepará-la para receber esse usuário, cujos laços foram perdidos. Sendo assim, tal iniciativa revela a sensibilidade da equipe para o atendimento das demandas não apenas dos usuários, mas também do acolhimento à família da qual faz parte.

Ao referir que o acolhimento aos usuários de crack tem uma especificidade, devendo ser diferenciado do acolhimento prestado a outros, pode-se inferir que esse acolhimento encontra-se pautado no princípio do SUS da equidade, sendo esse entendido como uma forma de tratar as desigualdades, tendo em vista que as pessoas possuem carências e necessidades distintas que devem ser tratadas diferentemente para atingir a igualdade, por meio da redistribuição de ofertas de serviços, priorização de grupos sociais, cuja condição de vida seja mais precária e enfatizar ações específicas para aqueles que apresentam riscos diferenciados de adoecer e morrer por determinados problemas(13).

O crack, por ser uma droga com duração de efeito muito rápida, em torno de cinco minutos, faz com que o usuário volte a utilizá-la com mais frequência, levando à dependência muito mais rapidamente, bem como ao desenvolvimento da fissura, ou seja, uma vontade incontrolável, compulsão de sentir os efeitos que a droga provoca. Com isso, o usuário passa a aumentar o consumo, o que o leva a desenvolver comportamentos violentos, irritabilidade, tremores e atitudes bizarras, devido ao aparecimento da paranoia, o que ocasiona situações de agressividade, delírios e alucinações(14).

Diante do exposto e a partir da análise das entrevistas, pôde-se constatar que as trabalhadoras reconhecem que o entendimento dos efeitos que essa substância provoca no organismo também é importante para a realização de um acolhimento, de forma a estabelecer vínculos e garantir a continuidade do tratamento.

A partir das observações em campo foi possível perceber outras dimensões que envolvem a operacionalização do acolhimento no CAPS ad estudado e que não foram relatadas nas entrevistas, como o déficit de trabalhadores para atender a grande demanda, a estrutura física da unidade, a qual funciona em uma casa alugada e precisa ser adaptada para o funcionamento e a integração entre os diversos trabalhadores da equipe, o que favorece resolutividade no atendimento a esses usuários.

 

Considerações finais

A Reforma Psiquiátrica aliada à Política Nacional de Humanização formam pilares importantes para garantir a concretização de atenção pautada nos princípios do SUS de universalidade, integralidade e equidade, no que tange aos usuários de crack. Assim, o acolhimento a esses usuários vem se revelando como uma nova maneira de operar que visa o reconhecimento de necessidades específicas em saúde, de uma clínica ampliada, assim como um olhar humanizado, livre de estigmas e/ou preconceitos.

Por fim, o estudo contribuiu para se compreender os sentidos atribuídos ao acolhimento aos usuários de crack e como esse ocorre durante o processo de trabalho no CAPS ad estudado. Todavia, ainda há muito a ser explorado no que se refere ao acolhimento a essa clientela, tendo em vista a escassez de estudos nessa área, o que enfatiza a importância de pesquisas que venham a explorar esse tema.

Desse modo, esta pesquisa demonstra a relevância da proposta de articulação ensino, serviço e comunidade através do PET e, certamente, contribuirá para se repensar as práticas no CAPS ad e para a formação profissional dos bolsistas que atuam no programa. Além disso, a divulgação deste estudo poderá auxiliar na elaboração e/ou aprimoramento de políticas públicas relacionadas aos usuários de crack.

 

Referências

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Recebido: 19.09.2014
Aceito: 05.11.2014

Correspondência
Sinara de Lima Souza
Universidade Estadual de Feira de Santana
Departamento de Saúde
Avenida Transnordestina, S/N
CEP: 44.036-900 Feira de Santana, BA, Brasil
E-mail: sinaradd@yahoo.com.br

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