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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.12 no.1 Ribeirão Preto mar. 2016

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v12i1 

EDITORIAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v12i1

 

O discurso proibicionista e as práticas no campo de álcool e outras drogas

 

 

Clarissa Mendonça Corradi-Webster

 

 

Editor Associado da SMAD, Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, Professor Doutor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil, e-mail: clarissac@usp.br

 

 

Durante toda a história da humanidade, há relatos do consumo de substâncias psicoativas. Estas vêm sendo utilizadas basicamente para três fins: religiosos, terapêuticos e gregários. O modo como as drogas e seus usos são regulados varia de acordo com o contexto histórico e cultural. No Brasil atual, temos forte influência do discurso proibicionista, de origem norte americana, que tem como ideal a conquista de um "mundo sem drogas". Este discurso se reflete em políticas que buscam reduzir a oferta e a demanda de drogas, através da repressão da produção, comercialização, porte e consumo de substâncias(1). Historicamente, este discurso foi ancorado ao discurso moral, que posiciona o usuário como alguém com problemas de caráter. O único caminho a este usuário seria a total abstinência do consumo, que deveria vir acompanhada a mudanças em sua personalidade.

Estas construções tem um impacto no modo como se desenvolvem as práticas neste campo. Nos 07 artigos publicados neste número, pode-se observar a influência do discurso proibicionista em diferentes áreas. Um dos artigos discute as dificuldades que mulheres usuárias de drogas têm para buscarem tratamento. Uma das barreiras apontadas pelos autores é a vergonha. Apesar do proibicionismo ser dirigido a todos, o impacto deste discurso sobre as mulheres é mais forte, uma vez que se espera que estas tenham controle sob seus comportamentos e, quando este não existe, considera-se que elas fracassaram. O medo da punição, de perder a custódia dos filhos, de perder o companheiro (que muitas vezes também é usuário) e de passar por longas internações levaria a mulher a restringir o consumo de drogas a situações mais privadas e escondidas e a demorar mais para buscar ajuda(2). Assim, faz-se importante desconstruir estereótipos relacionados aos usuários de drogas que buscam tratamento, já que a mídia tende a associar o consumo à criminalidade. Neste número, um dos artigos realiza esta discussão ao apresentar aspectos sociodemográficos de usuários de crack.

O proibicionismo também impacta no modo como profissionais de saúde lidam com usuários, reproduzindo muitas vezes discursos morais e tendo dificuldades em cuidar de pessoas que buscam os serviços por problemáticas relacionadas ao uso de drogas(3). Assim, um dos artigos discute a importância de oferecer espaços de treinamento e reflexão para profissionais da equipe de enfermagem, a fim de capacitá-los a lidar com pessoas que buscam cuidado com sintomas da Síndrome de Abstinência Alcoólica.

No trabalho com adolescentes, sob a influência do discurso proibicionista, o medo de que estes venham a consumir drogas é tão grande, que muitas vezes as instituições, como as escolas, optam por não abordarem a temática, preocupados de que ao criarem espaços para conversarem sobre estes tópicos, estarão incentivando o consumo. Quando o tema é mencionado em geral, de modo aterrorizador, pois a droga é colocada como agente de destruição, esse enfoque gera ambivalências nos adolescentes, que podem ter com as substâncias psicoativas diferentes experiências, provenientes do próprio uso ou da convivência com familiares e amigos usuários. Percebe-se que, muitas vezes, os trabalhos de prevenção não se aproximam do cotidiano destes jovens. Neste número, dois artigos discutem temáticas relacionadas ao consumo de drogas entre estudantes, sendo que um destes aponta para a quase inexistência de trabalhos de prevenção entre pré-adolescentes. Quando se analisa o tratamento oferecido a adolescentes usuários de drogas, percebe-se também que muitos tratamentos são disponibilizados sem que haja nenhuma avaliação. Um dos recursos que vem sendo muito buscado na sociedade brasileira atual são as internações a longo prazo em Comunidades Terapêuticas (CTs). Devido às pressões advindas de diferentes atores sociais ( pais, políticos, profissionais de saúde e até os próprios usuários em desespero), as CTs ganharam espaço nas políticas públicas, fazendo parte da Rede de Atenção Psicossocial. Há grande divergência sobre a inclusão dessas instituições na rede, uma vez que trabalham com princípios que são contrários aos da Reforma Psiquiátrica, como a internação a longo prazo e o afastamento da família e do meio social, além da falta de diálogo com outros equipamentos da rede(4).  Acresça-se a isso a precária fiscalização à qualidade dos serviços ofertados, pois nos últimos anos, houve um crescimento enorme destas, sendo que apenas uma minoria é acompanhada por órgãos reguladores, como a Vigilância Sanitária. Neste cenário, transbordam denúncias de maus tratos a usuários que são internados nestes locais. Assim, pesquisas que olhem para a internação de adolescentes em locais como estes são de extrema importância. Neste número, um dos artigos teve como objetivo realizar uma revisão sistemática sobre a temática, encontrando principalmente estudos produzidos em outros países. Como apontam os autores, as características das CTs variam muito entre os países, isso torna difícil aplicar os achados de outros lugares para nossa realidade. Assim, os autores convidam ao desenvolvimento de mais estudos em nosso país. 

O discurso proibicionista, apesar de muito influente, vem sendo questionado nos últimos anos, por se perceber que, apesar de todo investimento feito na "guerra às drogas", estas continuam sendo produzidas, comercializas e consumidas(1).  Diferentes segmentos da população (educadores, pesquisadores, membros do judiciário) vêm apontando como este discurso pode provocar mais perdas que ganhos, e vários países vêm buscando alterações no modo como regulam as drogas, seja alterando as formas de produção e distribuição destas, seja flexibilizando o controle sobre o consumo(5). A maconha tem sido a droga escolhida, por diferentes países, para dar início a estas mudanças. Assim, um dos artigos deste número investigou a opinião de professores universitários a respeito da liberação da maconha. Pelos resultados encontrados, percebe-se na amostra, ainda a forte influência do discurso proibicionista.

O discurso do modelo teórico-prático da redução de danos tem sido apontado como uma proposta alternativa que não considera a abstinência como o único desfecho viável, ele se aproxima dos pressupostos inerentes aos direitos humanos ao considerar a existência da diversidade humana; pessoas cujo desejo é a continuidade do uso de drogas, pessoas que mesmo querendo diminuir ou parar, tem dificuldades e necessitarão o apoio continuado para atingir esse objetivo, e, pessoas que mesmo com essa sustentação, não vão conseguir deixar de consumir drogas.

A redução de danos considera que o discurso proibicionista faliu e que, portanto, é preciso construir alternativas, ou ao menos, flexibilizar as provenientes de outros modelos teóricos para lidar com esta questão. As pesquisas no campo são importantes para auxiliar na construção de alternativas que sejam efetivas e respeitosas para com os usuários de substâncias psicoativas.

 

Referencias

1. Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cad Saúde Pública. 2009;25(11):2309-19.         [ Links ]

2. Corradi-Webster CM. Consumo problemático de bebidas alcoólicas por  mulheres:  discursos  e  histórias. [Tese]. Ribeirão Preto: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo; 2009.         [ Links ]

3. Vargas D. Nurses: personal knowledge and their attitudes toward alcoholism issues: A study of a sample of specialized services in Brazil. J Nurs Educ Practice. 2014;4:123.         [ Links ]

4. Corradi-Webster CM. Consumo de drogas: considerações sobre a clínica no contexto do SUS. Saúde Transform Soc. 2013;4:10-20.         [ Links ]

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