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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versión On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.12 no.2 Ribeirão Preto jun. 2016

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v12i2p75-83 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v12i2p75-83

 

Ruídos do processo de trabalho e o acolhimento da família na atenção psicossocial em álcool e outras drogas1

 

Ruidos del proceso de trabajo y la acogida de la familia en la atención psicossocial en alcohol y otras drogas

 

 

Gabrielle Leite Pacheco LisbôaII; Mércia Zeviani BrêdaIII; Maria Cícera dos Santos de AlbuquerqueIII

IIMSc, Professor Assistente, Centro Universitário Tiradentes, Maceió, AL, Brasil. Enfermeira, Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e Outras Drogas Amor & Esperança, Arapiraca, AL, Brasil
IIIPhD, Professor Associado, Universidade Federal de Alagoas, Escola de Enfermagem e Farmácia, Maceió, AL, Brasil

 

 


RESUMO

Pesquisa qualitativa, exploratória, objetivando  apresentar ruídos encontrados no processo de trabalho de um Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas, e possibilidades para o acolhimento efetivo da família neste serviço. A coleta dos dados foi realizada através de entrevista semiestruturada com oito profissionais. A análise dos dados foi realizada através da Análise de Conteúdo na perspectiva de Bardin e a discussão foi fundamentada na perspectiva teórica de Merhy. Os resultados evidenciaram ruídos produzidos no processo de trabalho e suas interfaces com o acolhimento aos familiares. Mais especificamente, revelaram demanda excessiva de atendimento, despreparo dos profissionais, acolhimento focado na dependência, dificuldades para o trabalho interdisciplinar e ausência de uma rede efetiva. Este estudo concluiu que ampliação dos vínculos, territorialização, articulação com grupos de apoio e flexibilidade dos grupos familiares , são possíveis caminhos para o acolhimento das famílias.

Descritores: Acolhimento; Família; Serviços de Saúde Mental.


RESUMEN

Investigación cualitativa, exploratoria, objetivando presentar ruidos encontrados en el proceso de trabajo de un Centro de Atención Psicossocial en Alcohol y otras Drogas, y posibilidades para la acogida efectiva de la familia en este servicio. La colecta de los datos fue realizada a través de entrevista semiestruturada con ocho profesionales. El análisis de los datos fue realizado a través del Análisis de Contenido en la perspectiva de Bardin y la discusión fue fundamentada en la perspectiva teorética de Merhy. Los resultados evidenciaron ruidos producidos en el proceso de trabajo y sus interfaces con la acogida a los familiares. Más específicamente, revelaron demanda excesiva de servicio, falta de preparación de los profesionales, acogida focada en la dependencia, dificultades para el trabajo interdisciplinar y ausencia de una red efectiva. Este estudio concluyó que la ampliación de los vínculos, territorialización, articulación con grupos de apoyo y flexibilidad de los grupos familiares, son posibles caminos para la acogida de las familias.

Descriptores: Acogimiento; Familia; Servicios de Salud Mental.


 

 

Introdução

O Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas (CAPS AD) é um dispositivo de atenção em saúde mental que tem demonstrado efetividade como serviço substitutivo às internações, atendendo aos preceitos da Reforma Psiquiátrica. Realiza atendimento psicossocial a indivíduos com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, incluindo igualmente os familiares no atendimento, com o objetivo de promover a recuperação e reintegração social do indivíduo(1). Desta forma, a família tem a possibilidade concreta de colaborar na atenção em saúde prestada e, da mesma forma, receber o acolhimento que necessita diante da sobrecarga imposta pela dependência química.

As práticas de acolhimento nos serviços de saúde constituem em uma tecnologia leve do processo intercessor do trabalho em saúde(2) e se inter-relacionam com o processo de trabalho exercendo influência significativa. Além disso, o processo de trabalho é um lugar estratégico de mudança, no qual, por meio das relações profissionais-familiares-usuários, é possível lutar pelo compromisso com a vida, sendo as necessidades reais atendidas de forma acolhedora(3). Para tanto, é necessário que nos espaços intercessores*(4), os sujeitos envolvidos, especialmente os profissionais, atentem-se aos ruídos do processo de trabalho, uma vez que os mesmos interferem diretamente no cuidado prestado.

Tratam-se esses ruídos de componentes não identificados tão claramente no cotidiano, mas que interferem no produto final do trabalho em saúde, agregando especialmente as inter-relações que se estabelecem na organização do processo de trabalho(5), comprometendo tanto a qualidade como a efetividade da assistência. Funcionam como interrogações da lógica do processo de produção do cuidado(5). O ruído**(4) é aquilo que é percebido como algo que não vai bem, que não está acontecendo no serviço/instituição da maneira como deveria, a inquietar os sujeitos, abrindo interrogações sobre como está ocorrendo o processo de trabalho e possibilitando desvelar novos caminhos a percorrer.

A apresentação dos ruídos do processo de trabalho, revelará uma dinâmica instituída e poderá abrir novas linhas de possibilidades no modo de fazer saúde(6), além de permitir uma melhoria do cuidado prestado aos familiares, em especial, através do acolhimento. E na medida em que nas práticas de saúde, e em especial na atenção psicossocial, busca-se a corresponsabilização, a intervenção resolutiva, tendo como foco da atenção o indivíduo, reconhecemos que sem acolher não há corresponsabilização nem resolutividade capaz de impactar os processos de produção da saúde e da doença(6).

Desta forma, este artigo objetiva apresentar os ruídos presentes no processo de trabalho de um CAPS AD e as possibilidades para o acolhimento efetivo destas famílias.

 

Método

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, exploratório, realizado em um CAPS ad, do tipo III (CAPS ad III) em uma capital do nordeste brasileiro, entre março de 2012 e fevereiro de 2014. A coleta dos dados deu-se através de entrevista semiestruturada, com uso de roteiro elaborado pelas pesquisadoras para compreender a dimensão subjetiva dos entrevistados sobre o tema. O roteiro foi composto pelas seguintes questões: 1) O que você acha do acolhimento realizado às famílias neste serviço? 2) O que facilita e o que dificulta este acolhimento neste serviço? 3) O que você acha que ainda poderia ser feito para acolher estes familiares?

Participaram do estudo oito profissionais com nível superior, escolhidos aleatoriamente. Entre eles, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, médicos e psicólogos, que exerciam suas atividades no serviço e realizavam atendimento aos familiares.

As entrevistas foram gravadas com consentimento dos entrevistados. Foi utilizada a análise temática para acessar os núcleos de sentido que compuseram a comunicação dos sujeitos(7). Através da perspectiva teórica de Merhy foi possível tecer aproximações com o processo de trabalho tido como espaço estratégico, em que as relações entre trabalhadores, usuários e familiares do serviço, constituem o acolhimento em ato(8)

As falas dos sujeitos estão representadas pela letra P seguida de número arábico. Considerou-se a saturação, momento em que novas respostas dos depoentes já não agregaram mais ao conteúdo do estudo, como critério para finalizar a coleta dos dados(9).Os princípios éticos da pesquisa foram respeitados conforme a resolução CNS/MS 466/12(10). O estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e Ensino do Centro Universitário CESMAC (COEPE) sob protocolo 1.574/12.

 

Resultados

A partir da organização e interpretação do material produzido nas entrevistas com os profissionais, foi observado que os ruídos e os caminhos possíveis se evidenciaram constituindo duas categorias de análise:

Ruídos produzidos no processo de trabalho do CAPS ad e suas interfaces com o acolhimento aos familiares

O principal ruído identificado no discurso dos oito depoentes diz respeito à alta demanda pelo serviço: Esse é o único CAPS ad atendendo a mais de um milhão de habitantes e circunvizinhos. Assim, aqui tá superlotado e só temos um CAPS ad 24h, então a gente faz das fraquezas, forças (P1). A gente está recebendo uma demanda acima da capacidade de acolhimento (P6). O que dificulta é o número de usuários que está tendo aqui, está muito acima da capacidade, então isso faz com que fique bem mais difícil o acolhimento do paciente e mais ainda da família (P8).

A superlotação, mais um ruído identificado que, segundo os participantes da pesquisa, tem apresentado  resultados indesejados ao trabalho desenvolvido no CAPS: Teve um dia que eu atendi 7 acolhimentos, um exemplo, fiz no meu tempo, então eu passei de 8 até 12h30 fazendo acolhimento, porque a pessoa tem que fazer a escuta certa, não é rápido, não é uma escuta rápida! Preenche o formulário e acabou, não, você tem que ouvir, você tem que olhar [...] Mas a gente percebe que muitos têm pressa de sair, aí atende muito rápido e deixa a desejar. O que facilita o acolhimento é quando há organização, quando essa demanda é menor e quando a gente tem tempo de atender, não ficam, ‘tem outro, tem outro’(P2).

Entretanto, é identificada a importância de manter o serviço aberto: Eu acho que o que facilita o acolhimento é o CAPS ser um serviço de portas abertas e não só fisicamente de portas abertas [...]isso facilita sem dúvida, porque o usuário não precisa de muito protocolo para chegar aqui, basta vir e ser acolhido (P4).

A abertura à demanda que pode gerar dificuldades operacionais: O acolhimento é feito da forma que cada profissional entende, não é uniformizado, eu acho que poderia ser [...] uniformizar, criar rotinas, protocolos [...] Por mais que todos os profissionais façam um acolhimento muito bom, o fato de não ser uniformizado, de não ter uma dinâmica institucional de acolhimento, isso já é uma falha (P4).

Outros ruídos identificados foram: a remuneração, a escassez de profissionais e o despreparo em relação à área de atuação: O fator que dificulta (a utilização do acolhimento) é a questão do fator profissional, da carga horária, às vezes a questão da remuneração. Muitos dos profissionais não estão contentes com a remuneração do trabalho. A gente não ganha adicional de insalubridade, adicional noturno! Tudo isso faz com que vários profissionais que estejam aqui no serviço sejam remanejados para outros, e assim, a questão dos horários que eram para ser preenchidos com os profissionais, ficam vagos ou então tem que ser preenchidos por quem tá aqui e acaba ficando sobrecarregado (P1). Muita gente chega despreparada no serviço, cai de paraquedas, não sabe o que é saúde mental, a lei que protege as pessoas que usam álcool e outras drogas, a Lei 10216, não vão estudar um pouco o que é saúde mental, saber que a dependência é uma doença. Muitas vezes o que dificulta (a utilização do acolhimento) é isso, vem pra o serviço e muitas vezes não entende nem o que é aquele serviço, precisaria mais de estudo em relação a alguns profissionais e treinamento para os que estão chegando ao serviço (P1). A gente não recebeu capacitação alguma, cada um de nós está tendo que buscar informações, porque nós não fomos capacitados e esse é um serviço especializado, a gente não tem a formação para lidar com o dependente (P6).

 Todos estes ruídos parecem justificar o fato de que o acolhimento às famílias ainda é deficiente, que está voltado prioritariamente para o indivíduo que faz uso de álcool e outras drogas: O acolhimento é feito na verdade ao usuário. [...] A gente faz a escuta da família, mas o foco ainda é o usuário (P3). Direcionado mesmo eu trabalho muito mais com os usuários, a gente entra mais em contato com a família (referindo a contato telefônico) (P5).

A família é incorporada ao cuidado como fonte de informação e a ela é prestado esclarecimentos para o "bom funcionamento do serviço". As iniciativas de aproximações são incomuns: Quando a família vem acompanhando a gente também atende a família, mas a gente explica o serviço como é, ouve da família que está trazendo depoimento pra entender a história [...] com o familiar a gente faz a escuta só para entender a problemática (P3). O momento da chegada deles lá na frente, é quando a gente vai apresentar qual é a proposta do CAPS, porque às vezes as pessoas vêm mas elas não sabem exatamente o que é, o que significa, então a gente apresenta os serviços que existem aqui, os grupos que existem aqui no serviço e como a pessoa vai se encaixar nessa proposta terapêutica. Quando a pessoa vem com a família eu geralmente convido para conhecer o CAPS, eu desço com a família, porque quando você vai deixar um familiar seu aqui em tratamento, você no mínimo fica curioso para entender como é aquele lugar que a pessoa está ficando. É prática minha, não é prática do CAPS, é prática minha como profissional (P6).

Nos grupos de famílias existentes, a mediação acontece por uma psicóloga e uma assistente social: Como o acolhimento às famílias aqui é feito por uma psicóloga que tem a formação em psicanálise, e tem uma assistente social, eu acho muito bom sabe, porque supre várias necessidades, tanto na parte social, como na parte mental (P2). Às famílias é feito o atendimento individual, fora o grupo, porque as famílias quando vem aqui é para frequentar o grupo (P2). Tem um grupo na verdade que é com a família, feito por uma assistente social e uma psicóloga, eu não estou nesse grupo, porque esse grupo ele já havia iniciado, mas existe esse momento com as famílias (P3). Aqui a gente tem um grupo de família, que é feito pela psicóloga e assistente social todas as quintas (P5).

Dificuldades do trabalho em equipe também justificam as lacunas do acolhimento: O fato dos profissionais não conversarem entre si com frequência, de forma organizada, sistematizada, sobre o acolhimento inclusive, isso já me diz que algo não anda bem [...] das falhas (do acolhimento às famílias) talvez seja esse atendimento que é multiprofissional e ao mesmo tempo individual (P4).

A inexistência de rede integral de atenção psicossocial aos usuários de drogas é outro ruído identificado: Eu acho que a rede dificulta, porque a gente acolhe no serviço, mas o objetivo que também faz parte do acolhimento é que o usuário saia do serviço, que ele não fique dependente do serviço. E a gente não tem para onde mandar, a gente não tem nenhum lugar. Nosso usuário vem pra cá e a gente tem que liberar e ele vai para rua. Aí como é que a gente vai fazer um acolhimento, recuperar dessa forma? Não existe uma rede de atenção psicossocial. Essa é a nossa realidade (P5).

Os ruídos apresentados pelos profissionais do CAPS ad, demonstram a necessidade de reavaliar os processos de trabalho instituídos neste serviço e apontar caminhos e possibilidades para o acolhimento das famílias.

Caminhos e possibilidades de acolhimento às famílias no CAPS ad

A necessidade de resgatar ou ampliar o vínculo com a família é expressa pelos profissionais: Eu acho que o CAPS está precisando investir nesse resgate do vínculo familiar, a família não está ainda inteirada ao tratamento não, precisa dar um foco maior nisso (P6). Eu acredito assim: de imediato alguns familiares não querem contato nem com o serviço nem com o usuário. Mas o serviço tem que articular isso, isso também é acolher! Tem que fazer com que o familiar se aproxime da recuperação do usuário, porque depois ele vai retornar para casa, essa é a proposta, que ele volte pra casa, que ele volte para a família, que ele volte para o contexto dele e se a gente não consegue ter o contato com a família, a gente não está acolhendo também (P5). Eu acho que talvez na escuta a gente cria uma forma de ouvir mais, ampliar, ouvir a família, e no decorrer do processo ampliar os vínculos, porque a gente tem muita dificuldade ainda do contato (P3).

A busca por estabelecer novos mecanismos para a aproximação das famílias: Acho que talvez a gente tenha que encontrar técnicas mais eficientes para trazer a família até aqui (P7).

Criar novas estratégias e qualificar as que já existem, tornando a visita familiar uma alternativa: Eu acho que o serviço ainda precisa articular uma equipe voltada para a visita domiciliar, para trazer a família para o serviço, para conhecer como funciona, além do grupo familiar, devia articular no território, porque aqui é um serviço de territorialização, a gente sair daqui e ir para casa (domicílio), para articular lá, eu acho que o que está faltando é isso (P5).

Da mesma forma a articulação com grupos comunitários de ajuda mútua, o profissional sugere: A gente poderia ter mais proximidade com os grupos que já existem o AL-ANON, o NAR-ANON, para familiares de usuários de substância psicoativas. É uma saída (o grupo), porque nem todo familiar pode vir ao CAPS para participar do grupo que é feito aqui (P4).

O aumento dos grupos destinados aos familiares e a flexibilidade nos horários de atendimento tornam-se indispensáveis: O que ainda faltam são mais grupos familiares, não só à noite, porque alguns não vêm pelo horário, porque moram distante, porque começa de 18h, então eu acho que poderia ter grupos durante o dia, teve até uma proposta de fazer, mas não foi firmado. E grupos com mais dias, dois dias na semana, um dia no final de semana (P2).

Para tanto se propõe a participação de diferentes profissionais: Então eu acho que poderia ter mais grupos e com profissionais diferentes, pela humanização, não só psicóloga e assistente social, eu acho que todos os profissionais deveriam se envolver, pra ouvir essa família, para entender o que se passa, é muito importante isso (P2). Acho que talvez ofertar mais atividades para eles[...]cada profissional ofertar o que tem de melhor para essas pessoas (fala em relação ao grupo família) (P7).

 

Discussão

De acordo com a Portaria GM nº. 130, de 26 de janeiro de 2012(11), observa-se que a capital em que foi realizada esta investigação conta com uma população estimada em 2013 de 996.733 habitantes(12). Sendo assim, esta cidade deveria possuir no mínimo três CAPS nesta modalidade. Nesse momento possui apenas um CAPS ad que atende a esta população, que gera uma demanda reprimida, sobrecarregando o serviço. Através do presente estudo(13) pode ser comprovada que a alta demanda e sobrecarga de trabalho desfavorece o acolhimento das famílias e compromete a qualidade da assistência prestada.

Embora esta alta demanda seja um fator que impossibilita o acolhimento, revela-se a importância de manter o serviço de "Portas abertas", o que traz metaforicamente o sentido do serviço dar um retorno às demandas de todos que o procuram, independente de terem sido referenciados ou não, de ser o público-alvo ou não. O serviço que se mantém disponível representa para o usuário a possibilidade para compartilhar, compreender, responsabilizar-se e buscar soluções para as problemáticas existenciais e materiais vividas(14).

Os ruídos que emergiram a partir das entrevistas, trazem à tona a questão do acolhimento enquanto organizador da acessibilidade ao serviço, sendo o objetivo maior da sua incorporação no processo de trabalho em saúde, regular o acesso e facilitar a abertura dos serviços com responsabilização de todos (Trabalhador da saúde, gestores, paciente e familiares)(15).

O acolhimento quando incorporado no serviço pode promover mudanças na organização do trabalho, ampliando o acesso à assistência integral. Contudo, cabe ressaltar que um serviço de portas abertas também é passível de apresentar dificuldades operacionais que podem comprometer o avaliar e as tomadas de soluções no complexo processo de trabalho, principalmente quando este valoriza padrões "Protocolares" em seus atendimentos(16).

Por ser uma área especializada, o trabalho em CAPS ad necessita de identificação pessoal com o cuidado a ser prestado. A falta desta identificação, somada à ausência de incentivo financeiro, promove rotatividade intensa de profissionais no serviço e prejudica a construção de vínculos, enfraquecendo o acolhimento(17). Da mesma forma que a permanência no CAPS de profissionais que não possuem identificação ou qualificação adequada à área compromete o acolhimento.

O acolhimento às famílias acontece principalmente no grupo de famílias, que é realizado no serviço, mediado por uma psicóloga e uma assistente social. No entanto, esse espaço particular e valioso para o acolhimento das famílias vem sendo realizado por apenas dois profissionais, gerando ruídos das dificuldades de se trabalhar em equipe. A inquietação dos profissionais com o relacionamento em equipe indica a existência de vários profissionais exercendo suas atividades no serviço sem que ocorra a interação necessária entre eles. No trabalho em equipe, ainda que interdisciplinar, os profissionais contribuem com os conhecimentos técnico-científicos de sua área, estão abertos às mudanças, buscam novos enfoques, e estão interessados pelas combinações de perspectivas para superar os caminhos anteriormente trilhados(18).

A participação de somente duas categorias profissionais como mediadoras do grupo de famílias, restringe o leque de saberes disponível. A participação das demais categorias profissionais no grupo, ao contrário, amplia os diversos olhares a respeito da vivência desses familiares e possibilita a busca por possíveis soluções aos problemas enfrentados, considerando-se a complexidade das questões envolvendo a dependência química e a família.

As famílias são acolhidas no CAPS com a atenção focada na dependência química dos seus usuários, sendo consideradas como fonte de informação e aliadas para o bom funcionamento do serviço. É preciso, no entanto, uma nova postura diante da família, não apenas como mera informante ou mantenedora da ordem (Grifo nosso), mas como protagonista no processo de reforma da atenção em saúde mental(19). A inclusão da família como alvo do cuidado através do acolhimento expressa sua importância, não só por constituir o meio social do indivíduo, mas por necessitar de cuidado também. Por isso é imprescindível o seu acolhimento nos dispositivos especializados de atenção psicossocial aos usuários de drogas.

O serviço de saúde que tem seu processo de trabalho centrado no sujeito e inclui a família como parte desse processo , ajuda no fortalecimento de vínculos, na integração entre os indivíduos e no desenvolvimento integral do ser humano(20). Objetivando o desenvolvimento integral do indivíduo e a totalidade do cuidado, é necessário que usuários e familiares caminhem através de uma rede de atenção. Perspectivas de articulações em rede bem delimitadas favorecem a atenção integral no campo da saúde e garantem um encaminhamento seguro e resolutivo, considerando que cada nível de atenção à saúde atende a uma determinada complexidade(21). Além disso, para amenizar a sobrecarga familiar e promover saúde mental como preconizado pela Reforma Psiquiátrica, é necessário que se construa uma rede de cuidados, que integre todas as estratégias possíveis para a atenção integral e humanizada(22).

Desta forma, é necessário planejar fluxos com ações resolutivas das equipes de saúde, centradas no acolher, informar, atender e encaminhar para uma rede cuidadora. Seria um sistema de referência e contra referência, como uma trama de cuidados(23). A falta desta trama de cuidados , inquieta os profissionais entrevistados. Da mesma forma, a articulação em outros campos da vida da pessoa e familiares, garante os direitos da cidadania.

A partir dos ruídos identificados, é importante que sejam traçados planos e possibilidades de acolhimento às famílias no CAPS ad, para que possam cada vez mais participar do processo de cuidar e ser cuidado, sendo ora cuidador, ora sujeito a quem se destina o cuidado. O cuidado diário que recai sobre a família é identificado, especialmente, como sobrecarga econômica, social ou pessoal. Esta sobrecarga somada ao cansaço físico e mental, pode tornar o provimento de cuidado um ônus constante ao familiar e parece contribuir para desgastar uma possível relação de afeto e de reciprocidade entre usuário e familiar, tornando-a desgastante para o cuidador e dolorosa para a pessoa do cuidado(24). Desta forma, é comum o rompimento dos laços familiares, quebrando-se o vínculo entre o dependente químico e sua família. Com esta quebra dos vínculos familiares, muitos desses indivíduos acabam tornando-se moradores de rua, dificultando ainda mais o contato do serviço de saúde com a família e, por conseguinte o estabelecimento de vínculos.

A construção de vínculos entre profissionais e familiares facilita a parceria almejada pelo serviço, pois através do relacionamento gera-se uma ligação mais humana e singular, que proporciona a busca pelo  atendimento que melhor se aproxima às necessidades dos usuários e suas famílias. Possibilita ainda implementar uma atuação da equipe mais sensível para a escuta, a compreensão de pontos de vulnerabilidade e a construção de intervenções terapêuticas individuais. O respeito à realidade específica torna a parceria algo possível e concreto(1). Esses pontos possibilitam à família a renovação das forças dimensionadas para o cuidado, uma vez que se torna possível compartilhar as vivências, o sofrimento, a sobrecarga a que está exposta.

De acordo com os profissionais deste estudo é preciso estabelecer novos mecanismos para a aproximação das famílias, pois para se conhecer as necessidades, é necessário ultrapassar os muros do CAPS e ir ao encontro do que é real na vida das pessoas, ao contrário de permanecer ensimesmado no serviço. É principalmente fora da instituição que se delineia o cotidiano dos indivíduos, composto por suas relações, pelos espaços por onde circulam, por seus afazeres. É ali que as respostas às necessidades devem ser contempladas(25). No ambiente do paciente, é possível visualizar o cotidiano das famílias, ver a "olhos nus" a realidade que vivenciam. É principalmente nesses espaços extramuros que é possível conhecer o outro sem as vírgulas ou os parênteses, muitas vezes impostos pela rigidez institucional e buscar encontrar soluções possíveis ao sofrimento vivenciado, acolhendo às suas necessidades.

Através das visitas domiciliares e de ações territoriais , é possível visualizar o mundo das famílias e assim ter a possibilidade de compreender melhor o modo de vida do usuário Conhecer o ambiente e as relações intrafamiliares, abordar questões que vão além da doença e que contemplem também os problemas sociais e emocionais. Desta maneira é possível proporcionar orientações mais voltadas para as reais necessidades de saúde e buscar singularidades na forma de cuidar(26). O reconhecimento do domicílio como um dos espaços de atenção em saúde mental aponta para a comunidade como um espaço social a ser explorado. Contudo, as suas ações devem romper com os limites territoriais do serviço e do domicílio, englobando outros espaços sociais(19) , como aqueles articulados na comunidade, a exemplo dos grupos de ajuda-mútua direcionados às famílias, como os grupos para familiares de alcoolistas – AL-ANON e de dependentes químicos em geral – NAR-ANON. Estes grupos de ajuda apesar de não estarem contemplados atualmente nas políticas públicas como dispositivos formais da rede de atenção psicossocial, representam uma das formas de participação da sociedade civil na rede de atenção. São organizações que prestam ajuda aos familiares e amigos, encorajando interações sociais através de atividades de grupo onde há o compartilhamento de experiências em uma atmosfera de apoio protegida pelo anonimato.

Considerando que o reforço do apoio social consiste em uma intervenção efetiva, o profissional da saúde, especialmente do CAPS ad, precisa se articular e contar com as demais organizações de apoio, como os grupos de autoajuda, fortalecendo a ação comunitária na tomada de decisões. Nesse sentido, possibilita-se a articulação de saberes técnicos e populares e a mobilização de recursos institucionais e comunitários, para a compreensão do problema e elaboração de estratégias para resolução, através do processo de capacitação dos indivíduos para melhorar e controlar sua saúde(27).

Outro caminho apontado durante as entrevistas dos profissionais para o acolhimento da família no serviço, diz respeito ao aumento do número de grupos destinados aos familiares e à flexibilização dos horários de atendimento dos mesmos. A realização do grupo de familiares em um único dia da semana no período noturno, inviabiliza a participação de outros membros , especialmente aqueles que têm compromisso de trabalho no período. A abertura da equipe de profissionais para a formação de novos grupos em outros horários, para além do estabelecido, possibilitaria a inclusão dos membros destas famílias muitas vezes desejosos em participar, mas que não têm oportunidade. Faz-se necessário então reorganizar o cuidado e incorporar a ideia de que as famílias são também alvo do cuidado prestado e que o serviço precisa se adequar para atender às suas necessidades. Essa flexibilização atenderia às demandas daqueles que necessitam do cuidado e não apenas da instituição ou profissionais que prestam o serviço. A abertura do serviço ao atendimento das singularidades aproximaria as famílias e possibilitaria aumento dos vínculos.

 

Considerações Finais

O acolhimento aos familiares apresenta-se ainda em construção no CAPS ad, sendo representado principalmente através do grupo de familiares dos usuários. A demanda excessiva; o despreparo dos profissionais; o acolhimento focado na dependência do usuário de drogas; a dificuldade no trabalho interdisciplinar e a ausência de uma rede de atenção estruturada, configuram-se como entraves ao serviço realizado no CAPS ad e apontam novos caminhos a serem trilhados pela equipe na busca do acolhimento efetivo às famílias. A ampliação dos vínculos, as visitas domiciliares, a parceria com serviços comunitários como os grupos de apoio e as modificações na operacionalização de atendimento à família dentro do serviço, possibilitam vislumbrar o investimento necessário ao acolhimento das famílias. É preciso, contudo, ir além, buscar cotidianamente estratégias criativas e que possibilitem acolhimento e aproximação com as famílias, considerando suas necessidades singulares e decorrentes da interferência da dependência química nas relações.

A incipiência com que ocorrem os estudos voltados ao acolhimento das famílias no cenário em questão, indica a necessidade do desenvolvimento de novas pesquisas que abordem esta temática, objetivando promover o enriquecimento da atenção psicossocial oferecida aos beneficiários deste tipo de serviço.

 

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Recebido: 22.08.2014
Aprovado: 18.11.2015

Correspondência:
Gabrielle Leite Pacheco Lisbôa
Centro Universitário Tiradentes
Campus Amélia Maria Uchôa
Av. Gustavo Paiva, 5017
Cruz das Almas
CEP: 57038-000, Maceió, AL, Brasil
E-mail: gabizinha_lcpacheco@hotmail.com

 

 

1Artigo extraído da dissertação de mestrado "O acolhimento aos familiares das pessoas atendidas em Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas", apresentada à Escola de Enfermagem e Farmácia, da Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil.

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