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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

On-line version ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.12 no.2 Ribeirão Preto June 2016

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v12i2p101-107 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v12i2p101-107

 

Percepção dos usuários de substâncias psicoativas sobre a redução de danos

 

Percepción de los usuarios de substancias psicoactivas sobre la reducción de daños

 

 

Josenaide Engracia dos SantosI; Ana Carolina Oliveira CostaII

IPhD, Professor Adjunto, Faculdade de Ceilândia, Universidade de Brasília, Ceilândia, DF, Brasil
IITerapeuta Ocupacional

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: A redução de danos (RD) minimiza riscos e anomalias provocadas ou secundárias pelo uso de drogas sem que ocorra necessariamente a redução do consumo.
OBJETIVO: Compreender a RD a partir do olhar do usuário de substâncias psicoativas.
METODOLOGIA: Estudo qualitativo tendo como eixo teórico metodológico o construcionismo social. Instrumento: entrevista semiestruturada. Sujeitos da pesquisa: Usuários de substâncias psicoativas em situação de rua.
RESULTADOS: Relatos que explicitam o redutor de danos como operador de novidade, a prevenção à saúde, a problematização e oposição com relação a ações da RD.
CONCLUSÃO: A visão dos usuários é um elemento que pode proporcionar processos de desalienação subjetiva e coletiva, frente à dureza dos métodos de normatização implícito nas ações com usuários de drogas.

Descritores: Narrativas; Usuário de Drogas; Pesquisa Qualitativa.


RESUMEN

INTRODUCCIÓN: La reducción de daños (RD) minimiza riesgos y anomalías provocadas o secundarias por el uso de drogas sin que ocurra necesariamente la reducción del consumo.
OBJETIVO: Comprender la RD desde lo mirar del usuario de substancias psicoactivas.
METODOLOGÍA: Estudio cualitativo teniendo como eje teorético metodológico el construcionismo social. Instrumento: entrevista semiestruturada. Sujetos de la Investigación: Usuarios de substancias psicoactivas en situación de calle.
RESULTADOS: Relatos que explicitan el reductor de daños como operador de novedad, la prevención a la salud, la problematización y oposición con relación a acciones de la RD.
CONCLUSIÓN: La visión de los usuarios es un elemento que puede proporcionar procesos de desalienación subjetiva y colectiva, frente a la dureza de los métodos de normatización implícito en las acciones con usuarios de drogas.

Descriptores: Narrativas; Consumidor de Drogas; Investigación Cualitativa.


 

 

Introdução

O uso de substâncias psicoativas se faz presente em toda a história da humanidade e, consequentemente, os conceitos construídos pela sociedade ao longo do tempo no que diz respeito a estas substâncias, sofreram alterações de acordo com o momento histórico e contextos vivenciados pelo coletivo(1). O debate com relação às drogas desperta questões de grande complexidade e divergência entre os profissionais envolvidos com esse assunto. Tais questões afloram o maniqueísmo entre discurso médico (Questão ligada à saúde) e discurso jurídico (Que envolve aspectos legais e de segurança)(2).

Em meio a esse debate e na tentativa de trazer à luz uma proposta diferente daquela que preconiza a abstinência a todo custo, a Redução de Danos (RD) se faz presente.

 A abordagem da RD é pautada na oferta de serviços mais acessíveis, a partir de uma ótica desburocratizada, aberta e flexível. Como tal, se configura em ações que objetivam minimizar riscos e danos de natureza biológica, psicossocial e econômica provocados de forma direta ou indireta pelo uso e abuso de drogas, sem necessariamente requerer a redução do consumo de tais substâncias(3). Permite uma mobilidade que coloca os participantes do processo em outra forma de relação com o social e serve, muitas vezes, de ponte entre o sujeito essa relação social do qual está apartado(4).

A Redução de Danos começou junto com a troca de seringas, e os usuários, ao se sentirem velados , passaram a trocar cuidados, pedidos de informações e afetos. Estas trocas permitem, muitas vezes, a entrada de um terceiro, "que rompe com a relação dual, intensa e exclusiva com as drogas"(4). Neste ponto, o redutor de danos se faz presente e há um cuidado maior com o usuário de drogas.

A RD é uma estratégia baseada em fatos, que observa e abrange tanto os efeitos positivos quanto os negativos advindos do uso da droga, considerando os vários níveis de intendidade desancadeados por esse comportamento. (2). O trabalho se dá por meio dos agentes redutores de danos, que fazem a aproximação direta com os usuários de substâncias psicoativas em áreas mapeadas com antecedência.

O deslocamento desse profissional para o local onde se encontram os usuários de drogas evidencia o quanto a RD pode contribuir para o resgate da cidadania dessas pessoas, possibilitando oportunidades de prevenção e diferentes trocas. Mas como estes usuários percebem a RD? O que eles pensam sobre isso? E como se posicionam em relação às suas ações? Trata-se de um terreno complexo e a proposta é  apenas situar a perspectiva linguística que vem sendo usada na psicologia social e também no cotidiano, para dar sentidos a objetos e eventos sociais.

Deste modo, o objetivo geral desta pesquisa é o de compreender a Redução de Danos a partir do olhar do usuário de substâncias psicoativas em situação de rua. Um dos objetivos específicos é descrever o posicionamento dos sujeitos diante das ações de Redução de Danos, entendendo a descrição como uma tentativa de retratar o comportamento, uma ideia com precisão(5). Outro objetivo específico em destaque é o de "explicar" o pensamento sobre tais ações, entendendo também que este conceito diz respeito à revelação das possíveis causas de um determinado comportamento e posicionamento diante de eventos.

As descrições e explicações sobre este mundo são formas de ação social e permitem identificar os sentidos atribuídos no cotidiano das pessoas(6). O sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas na dinâmica das relações, historicamente datadas e culturalmente localizadas, constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta. Estão entremeadas com todas as atividades humanas(6).

Caminho metodológico

A pesquisa é qualitativa exploratória e utilizou-se do construcionismo social como referencial teórico metodológico que tem a linguagem como o espaço pelo qual as realidades são construídas socialmente(7). Ocupa-se principalmente, "dos processos pelos quais os indivíduos explicam, descrevem, ou de alguma forma, dão conta do mundo que vivem e inclusive de si mesmas"(6).

O Construcionismo Social como abordagem teórica metodológica possibilita capturar o processo de produção de sentidos dentro dos contextos, já que se interessa por identificar os repertórios e, também as formas com as quais as pessoas descrevem sua compreensão e vivência de mundo(8).

A pesquisa qualitativa foi realizada junto ao Programa de Redução de Danos que é vinculado à Gerência de Doenças Sexualmente Transmissíveis Síndrome da Imunodeficiência Adquirida- AIDS e Hepatites Virais da Secretaria de Saúde do Distrito Federal- DF, tendo como base territorial o Setor Comercial Sul.

 Os sujeitos participantes da pesquisa foram cinco indivíduos em uso de substâncias psicoativas que são atendidos pelos redutores de danos. Os critérios de inclusão foram: sujeitos indicados pelo redutor de danos; com idade acima de dezoito (18) anos de ambos os sexos e que aceitaram participar livremente do estudo .

O instrumento utilizado foi a entrevista semiestruturada, realizada de setembro a outubro de 2013. Nesta modalidade são combinadas algumas perguntas abertas e fechadas, que possibilitam ao sujeito discorrer sobre o tema em questão(9). O registro foi realizado por meio de gravação de áudio e posteriormente transcrito para análise de dados. O anonimato dos participantes foi mantido por meio da utilização da abreviatura "E", de entrevistado, seguida por numerais arábicos, em ordem crescente, conforme explicitado: E1, E2, E3, E4 e E5.

A categorização e análise de dados ocorreu por meio do mapa de associação de ideias, que "são instrumentos de visualização das dimensões teóricas e identificam os processos de interanimação dialógica a partir da esquematização visual das entrevistas que possibilitam, dar subsídios para análise e dar visibilidade aos resultados"(8). Este mapa é uma tabela onde as colunas são definidas tematicamente, constituindo-se um recurso para produzir sentido e compreender determinadas passagens das entrevistas.

 Vale mencionar também que a pesquisa seguiu a orientação da Resolução CNS Nº 466 de 12 de dezembro de 2012 e foi apreciada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FEPECS – Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde, através do parecer n.380.578(10).

Resultados- sentidos e posicionamentos

A explicação e a descrição dos sentidos sobre a redução de danos surgidos nos repertórios dos usuários apresentam-se em cinco dimensões: Redução de Danos como operadora de novidade; prevenção e saúde; oposição à RD; a produção do cachimbo e problematização da Redução de Danos.

Redução de Danos como operadora de novidade

As ações de redução de danos, fazendo referência ao relato da usuária, transitam entre os dois mundos. Esta possibilita ao usuário o acesso ao que lhe é de direito, livre de preconceitos, viabilizando  a possibilidades da existência da pessoa enquanto sujeito de vontades e de desejos, reconhecendo o sujeito no que diz respeito a uma função importante da sua estrutura psíquica que é o sentimento. Esta é a novidade, identificada e expostas nas narrativas.

E1: Acho que ajuda mais é a… parte do sentimento... de mostrar o interesse… por algo... que assim… parece que tá esquecido… Largado assim… eu acho que é mais essa questão…

E4: São pessoas maravilhosas, né? Que sempre vem. Conversa. Chega pra conversar com alguma pessoa assim... em particular.

E1: Sim… Sim. São pessoas super bacanas… super legais.. sabem chegar… sabem sair.. sabe quando não chegar.

A narrativa retrata o sentimento como uma peça importante que explica a Redução de Danos, a partir da consideração que existe para com o sujeito que se encontra na invisibilidade do cotidiano das ruas. A imagem da RD aparece no contexto que seduz e que capta justamente a sensação de cuidado que ela oferece. De acordo com os usuários a figura do redutor de danos pode ser assimilada como aquele que, em sua estrutura, fornece condições e possibilidades de escuta, reconhecimento do outro e o acolhimento de suas diferenças(11). É o encontro de duas pessoas que atuam uma sobre a outra, e desta interação simbólica surge momentos intersubjetivos. Um trabalho vivo em ato, que produz em cada um, efeitos singulares daquilo que é experienciado(12).

 

Prevenção de Saúde

A explicação aqui apresentada traz a geometria do vivido, ou seja, o universo de significações das experiências individuais dos usuários com os profissionais da RD que geralmente são identificados como ‘pessoal da saúde’. As ações de Redução de Danos estão associadas ao conceito de prevenção que diz respeito a intervenções orientadas para evitar o surgimento de doenças específicas. A base do discurso preventivo e seu objetivo podem ser identificados como: o controle da transmissão de doenças infecciosas e a redução do risco de doenças crônica degenerativa entre outros agravos específicos. Tais repertórios foram identificados nas narrativas.

E1: Redução de danos... é… é a prevenção... assim.. até mesmo pelo lado da saúde.

E5: ... quando fala em redução de danos o pessoal tem assim. Saúde, né.

 E4: Se você transar sem camisinha você pode pegar uma doença.

 E3: é bom... proteger.

O conhecimento que é transmitido pelos agentes de saúde (Seja o trabalho do PRD, do Consultório, na Rua ou outro serviço especializado em abordagem de rua), ainda possui a visão dicotômica de saúde e doença e pautam as abordagens nos critérios biomédicos em detrimento daqueles vigentes das ciências sociais. Um exemplo disso se dá quando os usuários explicam a Redução de Danos mencionando, em sua maioria, palavras que se referem ao mundo biomédico (AIDS, bactéria) e que quase sempre estão relacionadas a uma pedagogia do condicionamento imbuída na fala dos mesmos(13).

E3: .. eles também têm medo de morrer... aí se protege porque a AIDS mata né não?

E1: ... pelo lado da saúde... pra você não... não ficar doente.

E5: .. Ajuda a não pegar bactéria.

 E4: passar uma latinha pro seu colega você pode pegar uma doença também.

E1: não compartilhar o mesmo cachimbo… a mesma lata.

As falas refletem não os fatores socioculturais que perpassam o consumo de substâncias e práticas relacionadas à saúde, em seu sentido holístico, mas sim a relação de causalidade positivista biomédica do agente patogênico (AIDS, hepatite) e o organismo (usuário)(13). No momento em que o usuário fala em "Não compartilhar", há sempre uma menção de controle sobre a saúde e doença e a reprodução ipsis litteris do controle que pode ser exercido pelos profissionais de saúde(14).

Oposição à Redução de Danos

As narrativas expressas ao longo das entrevistas explicitaram posicionamentos contrários à Redução de Danos com relação a algumas práticas utilizadas durante a aproximação com o usuário de drogas. No que tange a esta pesquisa, a figura do cachimbo coloca à vista o julgamento moral, resultado de imposições sociais, que o entrevistado faz emergir.

E3: Não... aí foi um o erro seus fazer cachimbo... Porque o que eles mais quer é isso... cachimbos.

O cachimbo representa violência, marginalidade, um objeto que de alguma forma estimularia este consumo de "drogas"(15). Assim como a figura do cachimbo, a Redução de Danos, por vezes, é encarada como uma permissividade, com    uma dimensão moral sobre a questão(16).

E3: O cachimbo faz... o cachimbo faz usar mais ainda... Ficar mais pior o setor comercial... Fica mais pior ainda... Então não tinha que entregar cachimbo nenhum não.

 E3: Um erro... Um erro grande... e grande! Porque eles passa e negocia pra outro.. faz negocio com outro.. pega um pouquim de coisinha com outro porque eu vejo eles ai direto.. Pronto! Porque se tem uma latinha.. eles encontra uma latinha.. Pra que ele vai querer cachimbo?

 Produzindo subjetividades: A Produção do Cachimbo

O ser humano precisa de elementos simbólicos que traduzam sua relação consigo mesmo, com o espaço e com o outro(17). Tal simbolismo no momento em que é demonstrado traz à tona a subjetividade, especialmente a identidade do sujeito. O protetor labial, kit snif (Kit destinado a pessoas que fazem uso de cocaína cheirada), os cachimbos, o material informativo, são só alguns dos elementos necessários, importantes, usados para uma aproximação inicial e são recursos para proporcionar o desejo e possibilidade de outro encontro(18). É o começo de uma vinculação com o indivíduo e, a partir daí, uma relação centrada em trocas mútuas é estabelecida. Neste encontro não há a ideia de "dar", "salvar", "curar"; a proposta é de fato a permuta e a construção de uma estratégia de redução de danos singular para cada um e para cada história de vida.

Pensando nisso, o cachimbo aparece nas narrativas dos sujeitos como se este objeto simbólico se configurasse na maior representação de consumo. O indivíduo faz codificações das coisas por meio de significações e esse movimento elucida seu contexto humano e também social.

E2: Oh os cachimbo que eu faço aqui... (tirou da mochila três cachimbos e mostrou). Esse aqui (apontou para um que estava em suas mãos) é ferro, borracha e alumínio.

E5: Aí eu to sabendo... que eu até recebia os cachimbo que vocês distribuía também..

A relação que se estabelece entre o usuário e o objeto mediador do consumo e do prazer configura o principal cenário de interação e vínculos sociais. A própria movimentação do redutor de danos em informar acerca do "não compartilhamento", surge do pressuposto de que há minimamente uma interação com o outro(15).

E4: ... e não pode emprestar o seu cachimbo pra ninguém..

O processo de construção do cachimbo permite a produção de saúde e o entendimento deste objeto como um ser que também é social e passível de interação. Ele faz parte do universo íntimo do sujeito e representa essa tendência de incluir em sua humanidade aquilo que é importante e que o acompanha nas dificuldades(15).

E2: .. E um cachimbo... é tipo assim... tem de ser íntimo... é você e você... Só entrega pra uma pessoa se você ver que aquela pessoa merece.. Eu não dou meu cachimbo pra ninguém... Eu faço meus cachimbos... Esse aqui eu tirei pra mim usar (mostrou um outro cachimbo que estava no seu lado). Se minha mãe chegasse... e falasse.. ‘filho me dá aqui’... eu num dou não.

Problematização da Redução de Danos

No momento em que os sujeitos entrevistados indagam sobre a efetividade do insumo, suscitam uma problematização que vai de encontro com o sentido que o programa adquire para seu público-alvo. Existe aí o questionamento ou até mesmo a desconstrução de uma lógica salvadora de que as ações de RD modificarão o comportamento do sujeito. O entrevistado provoca uma reflexão acerca dos reais efeitos e observâncias destas ações para alguns.

E5: Camisinha pra que moço? Pra bater punheta e não sujar a mão? (risos)

Observa-se que os relatos que enfocam a medicina como verdade universal (Uso do preservativo)  confrontados por outro fator implícito que corresponde aos aspectos socioculturais da saúde (O ‘porque’ do sujeito não encontrar no preservativo um sentido). Ao mesmo tempo em que existe a identificação da distribuição do preservativo como algo bom, a certeza de que essa medida evitará gravidez ou alguma doença não é palpável(13).

E3: E para os outros... e outros drogados é bom também.. Mas que as vez não liga pra isso.. igual eu te falei.. tem as menina ai que tão gestante.. tem muitas né? Não liga.. não liga pra isso não.

A distribuição dos insumos pela RD pode virar uma moeda de troca a qual retira desse insumo toda a estabilidade e rigidez demonstrada no ato de sua distribuição. A venda do insumo, a troca deste por materiais de qualquer espécie (Dinheiro, substâncias) produz certa estranheza e até mesmo uma problematização no que diz respeito ao sentido que este adquire ao público ao qual é destinado.

E5: Oxi... Me contrata então... Eu faço cachimbo... Material bom.... Faço baratinho (...) Ah, eu posso fazer pra vocês por um preço barato... 4 reais?

Entrelaçando os sentidos e posicionamentos

Entrelaçar o sentido e o posicionamento dos sujeitos promoveu um diálogo intenso e um silêncio estrondoso, na medida em que, muito foi dito e muito também silenciado. A Redução de Danos, no olhar dos usuários, produziu aberturas nas relações petrificadas pelo código moral, considerando  que o contemporâneo pode ser capaz de adquirir um sentido quando se pode sustentar uma ética não mais suportada pela tradição nem pela razão, mas como um "artista de si mesmo"(19).

Artistas de si mesmos são redutores e usuários em uma relação de "troca" que traduz o cuidado presenciado no cenário da rua. A RD na figura do redutor perpassa a vinculação entre sujeito e droga, ofertando não só insumos, mas tecnologias leves que podem despertar no sujeito uma sensação de gratidão, sentimento este explicado por toda realidade estigmatizadora na qual está imerso(12).

As narrativas demonstram a nítida figura do usuário de drogas como um indivíduo de desejos e que a RD, como um dispositivo de diferenciação, acena para a possibilidade de exercitar. As "micropolíticas dos agires", enfatizam um ponto simples: o lugar do sujeito(20). O sentido atribuído por esse sujeito que "não tem lugar", mas que tem posicionamento diante das intervenções as quais é submetido.

A partir das vozes resultantes foi possível tecer interlocuções teóricas, percebendo-se um grito abafado por cidadania e por inclusão do usuário no mesmo coletivo que, de alguma forma, separa os mundos daqueles que fazem uso e daqueles que não o fazem. Esses dois mundos, ou até mesmo o submundo, que foram referidos como explicações desta realidade que é tecida pelo consumo de drogas, têm na figura do redutor, alguém que consegue de alguma forma atravessar a exclusão e os estigmas carregados por esta população específica.

 

Considerações finais

Esta construção certamente não tem a pretensão de uma obra finalizada, mas sim de socializar o sentido atribuído pelos usuários como algo que pode disparar processos de desalienação subjetiva e coletiva frente à dureza das normas implícitas nas ações com esses sujeitos .

A escuta diferencia-se das tecnologias que disparam o confessar-se, implicando no desejo pela via da verdade do indivíduo, no sentido de libertá-lo da submissão a mandatos sociais que rejeitam o "singular". O olhar dos usuários conduziu para a ressignificação do "não ver", o que alarga os nossos campos do sentir e perceber. Mesmo que apenas como um flash, quando ilumina uma cena, aponta-se aqui para uma possibilidade de abertura, de alargamento desse olhar que tensiona a resistência coletiva em deixar na invisibilidade e na mudez o que pensam os usuários de substancias psicoativas. A ideia é diminuir a cegueira, afinar a escuta e colaborar na discussão dos profissionais que atuam nos consultórios na rua, psicólogos, assistente social e enfermeiros. Sem mais nenhuma pretensão.

 

Referências

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Recebido: 17.5.2015
Aprovado: 15.12.2015

Correspondência:
Josenaide Engracia dos Santos
Universidade de Brasília. Faculdade de Ceilândia
Centro Metropolitano, conjunto A, lote 01
CEP: 72220-900, Brasília, DF, Brasil
E-mail: josenaidepsi@gmail.com

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