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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

On-line version ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.12 no.4 Ribeirão Preto Dec. 2016

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v12i4p231-239 

DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v12i4p231-239
ARTIGO ORIGINAL

 

Experiência comunitária e realização pessoal em Alcoólicos Anônimos: uma pesquisa fenomenológica1

 

Experiencia comunitária y autorrealización en Alcohólicos Anónimos: un estudio fenomenológico

 

 

Ana Cláudia Bernardes GuimarãesII; Miguel MahfoudIII

IIMSc, Psicóloga, Prefeitura Municipal de Nova Lima, Nova Lima, MG, Brasil. Professor, Faculdade de Pará de Minas, Pará de Minas, MG, Brasil
IIIPhD, Professor Associado, Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, MG, Brasil

 

 


RESUMO

Objetivamos compreender como os sujeitos que se autorrealizam em Alcoólicos Anônimos (A.A.) vivenciam a experiência comunitária nesse contexto e como essa experiência se associa à realização e formação pessoal. Realizamos entrevistas com quatro participantes de A.A., cujos dados foram analisados fenomenologicamente. Apreendemos que o encontro com o outro possibilita a ressignificação da vida e da condição de alcoolista, crescimento pessoal e autorrealização; a convivência comunitária é marcada por relações de amizade, solidariedade, construção do contexto de A.A. que é sustento para o processo de recuperação. Concluímos que a realização pessoal, a conquista e a manutenção da sobriedade são favorecidas pela formação pessoal de vínculos comunitários em A.A. e pela sintonia entre princípios formais e valores pessoais.

Descritores: Alcoólicos Anônimos; Alcoolismo; Relações Interpessoais.


RESUMEN

Nuestro objetivo es entender cómo los sujetos que experimentam autorrealización en Alcohólicos Anónimos (A.A.) experimentam la experiencia comunitaria en este contexto y la forma en que la experiencia se asocia con el autorrealización y la formación personal. Hemos llevado a cabo entrevistas con cuatro participantes de A.A. cuyos datos fueron analizados fenomenológicamente. Aprehendemos que el encuentro con el otro permite el replanteamiento de la vida y la condición de los alcohólicos, el crecimiento personal y la autorrealización; la relación comunitaria está marcada por las relaciones de amistad, la solidaridad, la construcción del contexto de A.A. que es mantener para el proceso de recuperación. Llegamos a la conclusión de que a autorrealización, el logro y el mantenimiento de la sobriedad son favorecidos por la formación personal de los lazos comunitarios en A.A. y la línea entre los principios formales y los valores personales.

Descriptores: Alcohólicos Anónimos; Alcoholismo; Relaciones Interpesonales.


 

 

Introdução

A proposta de A.A. preza o compartilhamento das experiências entre os seus membros em prol de um objetivo comum: a sobriedade(1): "Alcoólicos Anônimos é uma irmandade de homens e mulheres que compartilham suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver seu problema comum e ajudar outros a se recuperarem do alcoolismo. O único requisito para se tornar membro é o desejo de parar de beber: para ser membro de A.A. não há taxas ou mensalidades; somos autossuficientes, graças às nossas próprias contribuições. A.A. não está ligada a nenhuma organização ou instituição; não deseja entrar em qualquer controvérsia; não apoia nem combate quaisquer causas. Nosso propósito primordial é mantermo-nos sóbrios e ajudar outros alcoólicos a alcançarem a sobriedade"(2).

Estudos(3-5) pontuam a presença de elementos intragrupais em A.A. que estimulam o desenvolvimento da singularidade no integrante. Contudo, outra parcela de pesquisas considera que em A.A. não há espaço para a subjetividade, considerando-se que o roteiro básico, para o relato das histórias de vida nas reuniões, favorece o surgimento de um discurso homogêneo ao invés da singularidade(6-7).

É diante desse campo polarizado de compreensões acerca de A.A., que nos interessa entender a dinâmica intragrupal que possibilita a pessoa lidar com as próprias dificuldades chegando a se singularizar no processo de sobriedade. Almejamos captar um tipo de relação intersubjetiva própria da comunidade que favorece a constituição da pessoa em sua singularidade(8), de modo que a autorrealização se concretize.

Para tanto, recorreremos aos conceitos de realização pessoal e de comunidade.

O sujeito neste momento se realiza ao se posicionar em direção à realização da estrutura de seu eu – sua pessoalidade(9-10) –, ainda que vivencie dificuldades nesse processo. É necessário que a pessoa esteja atenta a si mesma, considere o próprio eu na relação com o mundo, ao próprio ponto de referência a partir do qual pode se guiar, e assim se realizar. "Autorrealização se dá na medida em que o eu atualiza a totalidade da sua estrutura propriamente humana. E, para realizar a pessoa em sua totalidade, é preciso que o ato corresponda a uma exigência que brote do centro de si mesmo"(11). A dinâmica de realização é potencializada quando a pessoa participa ativamente no mundo de relações que a constitui, construindo e contribuindo para o mundo. Nesse processo, pode emergir uma experiência de satisfação, vivenciando um gosto por agir de modo correspondente às próprias buscas na realidade(12-17). A formação pessoal consiste em a pessoa tornar-se si mesma, "organizar o que vai assumindo e se estruturar, se formar, fazer de si uma forma"(18), realizar a pessoalidade, desenvolvendo suas potencialidades e suas características próprias, colocando-se no mundo com um modo pessoal de ser(12,19).

Adentrando ao tema da comunidade, segundo Stein(10), as comunidades podem ser passageiras, durando algumas horas, por exemplo, em reuniões sociais, ou duradouras, como em associações. Mas o que define um agrupamento considerando-se comunidade é o modo com as pessoas que a integram a vivenciam e interagem entre si. O sujeito da vivência comunitária é o "nós", o que sinaliza a existência de uma pertença, considerando-se elemento estrutural das vivências comunitárias e fator de constituição da comunidade mesma, que é possibilitada quando os membros vivenciam o núcleo de sentido comum gerando, assim, a unidade das pessoas da comunidade(12). É a solidariedade, considerando-se tomada de posição de caráter positivo e atitude de disponibilidade de um ser humano perante o outro, que alicerça a comunidade. É a abertura e ação recíproca solicitando uma responsabilidade comum que constitui e fortalece a vida em comum.

Além disso, em contato com outra pessoa é possível que se desperte em si algo que estava anestesiado ou se desenvolva traços novos na personalidade. Por outro lado, Stein(12) acentua sobre a possibilidade de uma pseudoformação considerando-se alienação, quando esses traços apreendidos de outra pessoa não correspondem ao próprio eu, ou seja, não possibilitam que o sujeito seja si mesmo. Não somente o outro pode ser provocação para o autoconhecimento e desenvolvimento de características próprias, mas também o contato com a bagagem cultural e os valores comunitários favorece o membro a crescer interiormente, caso a apreensão dos elementos culturais estejam em sintonia com o núcleo pessoal. O fator importante da vida em comunidade é justamente essa ser sustento para a vida pessoal. Da mesma forma em que há constituição de relações comunitárias e da cultura comunitária pelo sujeito, o que se constrói é nutriente para o próprio sustento e processo de tornar-se si mesmo. A comunidade é composta por um certo tipo de vínculo intersubjetivo que tem "a força da constituição da pessoa"(8).

Nosso objetivo nesse artigo é compreender como os sujeitos que se autorrealizam ao participarem de A.A. vivenciam uma experiência comunitária nesse contexto e como essa experiência se associa à realização e à formação pessoal.

 

Metodologia

Efetivamos essa pesquisa qualitativa em dois momentos em 2013: realizamos*, inicialmente, a observação participante em três grupos de A.A. e no Escritório de Serviços Locais de A.A. (ESL) em Belo Horizonte e, em um segundo momento, as entrevistas com os sujeitos, que ocorreram no ESL. Utilizamos a observação participante considerando-se modalidade de inserção a campo a fim de conseguirmos colher os aspectos envolvidos na dinâmica de A.A. Inclusive o conhecimento da proposta de A.A. favoreceu o estabelecimento de diálogos com os integrantes.

Considerando-se que almejamos apreender os elementos invariantes de experiência realizadora em A.A. nos propomos selecionar integrantes para a entrevista que seguissem os seguintes critérios: sejam pessoas realizadas em A.A. que possuam tempos distintos de participação nesse contexto e presença de diversidade quanto ao sexo. Operacionalmente, utilizamos um método misto de seleção dos sujeitos para as entrevistas. Foram escolhidos por seleção intencional os sujeitos Lilita e Aguinaldo, pois a partir do trabalho de campo (em grupos de A.A.) identificamos que estavam dentro dos critérios estabelecidos anteriormente, por possuírem maior tempo de participação em A.A. e apresentarem um discurso pessoalizado acerca de A.A. expressando efeito vivificante da participação nesse contexto sobre si mesmos, que poderia indicar experiência de realização tal como definido por Stein e Giussani. E Suzana e Domênico, foram indicados por um informante-chave identificado no trabalho de campo no Escritório de Serviços Locais de A.A. de Belo Horizonte a partir dos critérios: pessoas que considerassem realizadas em A.A., que possuíssem pouco tempo de participação nos grupos, sendo um do sexo masculino e a outra do sexo feminino.

No início das entrevistas, adotamos a seguinte pergunta disparadora: gostaria que me contasse momentos significativos em A.A. Ao longo das entrevistas, realizamos outras perguntas, como forma de aprofundarem aspectos importantes para a pesquisa. Optamos por analisar as quatro entrevistas por reconhecermos experiência de realização pessoal nas mesmas e por este número específico de sujeitos ser suficiente para atingir os objetivos desta pesquisa qualitativa. Após a seleção das entrevistas, efetuamos transcrição e textualização das gravações.

A análise dos dados das entrevistas se baseou no método fenomenológico(20) por este considerar os relatos como expressão da vivência e adentrar a subjetividade e o mundo-da-vida(21). Assim, propomos uma aproximação compreensiva das experiências e vivências dos membros pela via das conexões de sentidos, buscando os elementos invariantes (significado geral) do fenômeno da dinâmica existente entre vivência comunitária e realização pessoal.

Primeiramente, efetuamos leituras sucessivas do material buscando apreender o modo próprio de elaboração de cada sujeito e após esse percurso, compreendemos os dados em termos da experiência de nosso interesse, considerando o modo como a pessoa se realiza em sua experiência e como ela se posiciona às solicitações e propostas do contexto sociocultural que adere. Realizamos seleção de trechos mais significativos e representativos de cada momento para posterior análise baseada no método fenomenológico tal como proposto pelos passos de van der Leeuw(20,22):

1) nomeação do conjunto de vivências: separar e agrupar o conjuntos de vivências, tornando-as organizadas e assim, inteligíveis. Foram utilizadas expressões contidas nos relatos dos próprios entrevistados; 2) inserção metódica na própria vida: tornar-se cônscio da forma como o fenômeno estudado ressoa no pesquisador. Reconhecendo que a pesquisa é um campo de provocação para o pesquisador, permite colocar em evidência o interesse real pelo processo de investigação e retomada dos critérios para que essa investigação cumpra seus objetivos de modo qualificado; 3) epoché: suspensão de juízos pessoais para que a essência do fenômeno emerja; 4) elucidação das vivências e esclarecimento das conexões de sentido: estabelecimento de categorias que ressaltam as conexões existentes. Elucidando as vivências e clarificando suas conexões de sentido, podemos chegar a uma conexão típica ideal ou experiência-tipo; 5) compreensão das conexões de sentido: revelação das várias vivências colhidas em informação plena de sentido. 6) correção contínua: confrontação das compreensões com os dados colhidos e com outros materiais. Retomando as informações apreendidas durante toda a pesquisa de campo, foi possível retificar as compreensões alcançadas. Além disso, recorremos aos diálogos com pares em espaço de discussão acadêmica e supervisões com o orientador para auxiliar nessa correção; 7) reconstrução da experiência vivida pelo sujeito: a finalidade deste passo é dar testemunho do fenômeno, ou seja, permitir o acesso de terceiros à compreensão alcançada.

Realizamos esse tipo de análise em cada entrevista. Após todas as análises apreendemos os elementos estruturais e essenciais da totalidade do fenômeno em estudo, ou seja, os elementos comuns a todas as experiências a nós comunicadas.

A seguir, apresentaremos resultados alcançados com a análise das experiências. Os trechos das entrevistas ilustram uma análise muito mais ampla contemplada pela pesquisa de mestrado.

 

Resultados e discussão

No centro, comunidade: ressignificação da vida e doação de si

Cada um dos sujeitos descreveu experiências de encontro com o outro no grupo a partir do qual pôde ressignificar a própria vida a ponto de reconhecer um caminho para a mudança pessoal. Suzana, com 2 anos em A.A. e 48 anos de idade, expressou o quanto foi significativo o primeiro dia em A.A:

Olha o melhor momento para mim foi quando eu ingressei. Aí eu fui numas duas reuniões que eu assisti e ingressei na terceira vez. O momento melhor para mim foi o dia que eu ouvi uma mulher lá na frente, sabe? Na palavra franca. Parecia que ela estava falando... ela estava contando a minha vida, né?(Suzana)

O impacto que vivenciou ao escutar o depoimento gerou um reconhecimento de si na experiência da participante. O que foi comunicado especificamente por uma mulher comoveu-a a mirar o olhar para si mesma. Que elementos semelhantes à sua vivência a ajudou a considerar esse momento como importante em sua vivência em A.A.? O que ela reconheceu como semelhante à sua vida que a comoveu?

Teve uma que parecia que era... até a casa dela é igual a minha. (...). E ela contando que ela sobia as escadas de gatinho. Às vezes acontecia isso comigo. Eu bebia, bebia, bebia na parte de baixo quando ia para dormir tinha que subir de gatinho. (...). Então, até isso [ênfase] ela contando encaixou, sabe? Aí foi esse momento – sabe? – quando eu virei e falei "eu sou uma alcoólatra" acabou. A partir disso aí eu abracei aquilo ali o máximo que eu pude. (Suzana)

Foi tão correspondente a si mesma, fez tanto sentido para si presenciar depoimento da outra mulher, que além de ter admitido o próprio limite, pôde afirmar com clareza seu movimento de autocuidado: eu abracei aquilo ali o máximo que eu pude. O outro considerando-se presença provocadora contribuiu para a percepção e aceitação da própria fragilidade.

Para Lilita, com 16 anos de A.A., 50 anos de idade, ser valorizada pelos companheiros de A.A. no início de sua participação foi decisivo para ressignificar a própria vida:

Na hora de ir embora, acabava a reunião, os companheiros iam comigo no ponto do ônibus: eu achava lindo! (...). E aí a gente ficava ali batendo um papo, batendo um papo. E eu ficava pensando assim: "Por que eles vieram comigo?" E aí, eu fui entender que isso é companheirismo, é proteção. Não faziam só comigo, faziam com outros companheiros também, com companheira. E isso vai dando assim uma, uma... Sabe aquela coisa assim de redescobrir a vida? De falar "puxa vida, eu tenho valor, alguém se importa comigo". Sem falar nada, fazendo... Mas é muito, muito bonito. (Lilita)

Foi a partir da valorização do outro em direção à Lilita que ela percebeu o próprio valor, a ponto de redescobrir a vida que havia em si. Ter apreendido esse sentido da ação dos companheiros provocou em si uma vivência de beleza que realizava a pessoa de Lilita: é muito, muito bonito.

Também para Domênico, com 2 anos de A.A. e 58 anos de idade, o encontro inicial com os participantes de A.A. continha um significado especial:

No primeiro dia, vi que eu estava encontrando um caminho de esperança. Foi a primeira palavra em que eu pensei no dia em que ingressei. Por que esperança? Porque se eu cheguei totalmente destroçado... Já julgava que minha vida pudesse até artefinalizar muito rápido... naquele processo em que eu estava. Então, eu encontrei um amparo, um carinho, uma proteção, um colo... um ombro para chorar. Ou seja, eu comecei a vislumbrar uma nova vida. Com palavras... Através de palavras simplesmente. Através de um olhar... através de um acolh... de um abraço! Através de um abraço... eu aprendi que abraçar é bom... que abraçar com sinceridade é fantástico! (Domênico)

O outro com seu olhar valorizando-o de uma forma livre, sincera, provocou um reencontro consigo mesmo, com a própria capacidade de se abrir, expressar afeição pelo outro e se realizar com esse ato: dinamismo propriamente comunitário.

Aguinaldo, com 20 anos de A.A. e 69 anos de idade, encontrou no primeiro momento em A.A. possibilidade de vislumbrar uma nova vida:

Então, lá no A.A. me falaram: "Não sô, você não pediu para ser doente não. Isso é doença!" "Ó, e é uma doença fatal! Se você não parar de beber agora, você vai morrer! (...) Ou de loucura." E a gente, então, acorda, sabe? Toma um impacto psíquico muito grande na vida da gente e fala: "peraí, tem alguma coisa errada na minha vida que eu preciso de consertar." (Aguinaldo)

Ao mesmo tempo em que se reconhecia em seus limites, também foi olhado de um modo que ele mesmo não dava conta: o outro apostava na possibilidade de Aguinaldo findar com a alcoolização. Da percepção de si, da própria condição de alcoolista, do próprio sofrimento e da oportunidade de mudar, a pessoa inteira de Aguinaldo foi mobilizada, a ponto de refletir sobre como estava cuidando da própria vida.

O posicionamento livre, genuíno, interessado do outro em direção aos sujeitos, mobilizava neles uma atenção para a própria condição de alcoolista e um valor pela vida vislumbrando um horizonte de sentido renovado acerca das capacidades pessoais de agir no mundo, de se cuidar e se realizar; dinamismo esse próprio da vida em comunidade(12). Por isso, voltar ao encontro com o outro que o ajudava a se olhar, confiando na possibilidade de superação pessoal foi significativo.

Stein(17) ao elaborar o conceito de empatia apreende que a pessoa abriga em si a possibilidade de engano acerca das próprias características e capacidades. A vivência da empatia é considerada como um corretivo dos enganos, como ela mesma descreve: "É possível que o outro me ‘julgue melhor’ que eu mesmo e me proporcione maior clareza sobre mim mesmo. (...). Assim, trabalham mão a mão empatia e percepção interna para dar-me eu a mim mesmo". Nesse sentido, encontrar um outro é possibilidade de a pessoa descobrir em si um ponto de novidade que diz do próprio ser, que remete a algo que verdadeiramente é próprio. A percepção do outro ajuda a desenvolver a consciência de si na inteireza e singularidade: eis um processo característico da experiência comunitária.

Indo na mesma direção, Giussani(23) afirma que a pessoalidade não é alcançada por um raciocínio a partir da qual o eu volta-se para si mesmo em um fechamento autorreflexivo. É somente por meio de um encontro com uma realidade humana viva que é possível descobrir a si mesmo e vislumbrar possibilidade de mudança. A partir da descoberta de si, a pessoa se dá conta dos próprios limites, recursos, potencialidades; enfim, de tudo que a constitui. E assim, pode se empenhar existencialmente a favor da autorrealização.

A ressignificação da própria vida incluindo tudo que a constitui é propiciada pela companhia de alguém que aponte um horizonte de vida, de possibilidades. Assim, uma companhia sendo uma presença mobilizadora convida a pessoa a seguir as indicações da própria experiência, retomar a sua abertura genuína tanto para si mesma quanto para o mundo, e esperar por algo que a corresponda. É essa companhia própria da convivência comunitária, vivida pelos sujeitos da pesquisa, que permiti uma consciência e uma descoberta de si(12,19,23).

A experiência realizadora de si dos sujeitos no início da participação em A.A. ou o primeiro contato com algum participante do grupo e a própria convivência comunitária no grupo foram fatores importantes para os mesmos terem continuado a vinculação com os outros integrantes. A partir da integração no grupo, doaram-se numa abertura ao outro em ato de solidariedade.

Para Lilita, ter vivenciado o acolhimento propiciou a descoberta do quão foi importante para si doar-se:

Fizeram comigo, me acolheram. Então, eu sinto um prazer em fazer com o outro, e o outro quer fazer com o outro. (...). O simples fato de eu saber que você tem um problema, sofre com ele, o mesmo que eu sofri, eu quero que você esteja bem. É tão, é tão bonito isso, assim! É inexplicável! Não sei explicar. Porque a gente não encontra palavras para definir, né? (...). E é gostoso a gente saber que a gente contribuiu um pouquinho. (Lilita)

Reconheceu que era capaz de se colocar no mundo cuidando de si e colaborando com o outro. Aqui se apresenta um dinamismo propriamente comunitário de cuidado com a afirmação do outro e contribuição com o processo pessoal alheio.

Domênico revelou o quanto se cuidava e ajudava o outro no momento mesmo da reunião:

Porque essa nossa recuperação, ela só é funcional um conversando com o outro, nas reuniões. Por que ela é funcional? Porque nós (ênfase) começamos a entender. Nós aprendemos a cuidar de nós mesmos através do que o outro nos fala. E o outro vai aprender a cuidar dele mesmo através do que eu falo para ele. Ou seja, (...) pego o que tem sido bom para ele. E quando ele tem alguma coisa que não está... que está menos boa... eu tenho a oportunidade de mostrar (...) através de sugestão que ele pode mudar aquele quadro. Ele pode mudar aquele quadro. Eu estou escrevendo uma nova vida. (Domênico)

Comparecer às reuniões não se tratava de um gesto automático, mas sim carregado de afeto e significado que o ajudava a ser mais si mesmo; eis uma experiência de autorrealização que marcava sua vivência em A.A.:

Sentindo prazer de chegar ao grupo, antes da reunião. Abraçar a todos que estão lá! E tem uns que eu chamo de guru, que já tem a idade cronológica um pouco maior que a minha. Até beijo na testa eu dou. Olha, um cara que não conhecia nada disso! Quer dizer, isso não é viver feliz? Eu saber que hoje eu posso ser... o Domênico que nunca fui. (Domênico)

Para Suzana, as reuniões foram possibilidade viva de constituição de relacionamentos comunitários para além do grupo de A.A. que a realizavam, provocando satisfação:

Mas assim, outra coisa que é muito gostoso, né? (...) A amizade que (...) você tem lá dentro você pode ter aqui fora também. Só que não tem mais a bebida! Você pode dançar, ir ao cinema. Você pode convidar uma amiga para ir ao restaurante... Pode continuar fazendo tudo! Só não tem a bebida. Uma coisa que vai ter com pessoas que é do seu convívio aqui fora, não vai ter mais lá dentro. Mas a amizade é mais gostosa! (...) Nossa (ênfase), é uma amizade assim...: é um vínculo que cresce tão grande! (Suzana)

E na experiência de Aguinaldo, como ele se vinculava ao outro?

É como eu estou te falando, na minha doença, você precisava ver a manifestação de carinho, de amor, e de amizade que me deram. Quer dizer, é aquela gratidão que fica no coração de cada um. "Não, o Aguinaldo está doente, nós precisamos de visitá-lo; nós precisamos mandar uma mensagem para ele, né?" (...) Então, são pessoas que ficam uma gratidão muito grande no coração, sabe? E gratidão no coração é amor. Gratidão é amor; é ou não é? (falou rindo). É amor que fica. (Aguinaldo)

É evidente que a ajuda era mútua; a doação e amizade eram vividas reciprocamente; o que se construía ali eram relacionamentos genuínos de amor, regados pelo cuidado e pela gratidão; uma vida comunitária marcada pela solidariedade, reconhecimento do outro e abertura ao mesmo, em um processo recíproco.

Tendo em vista a elaboração que os sujeitos nos relataram, apreendemos uma centralidade do relacionamento com o outro na constituição da experiência de autorrealização na relação com o contexto comunitário de A.A. Participar de A.A. carregava um sentido vitalizado para os mesmos quando foi possível conviver com os outros integrantes, seja durante a reunião grupal, seja em um contexto externo a esta. Essa convivência propriamente comunitária marcou o modo de viverem A.A. É nessa relação recíproca que os sujeitos da presente pesquisa viveram uma confirmação mútua na humanidade e singularidade, processo próprio da experiência em comunidade(12). E o que se construiu com a ação compartilhada de doação ao outro foi um fortalecimento de vínculos comunitários que foram estruturantes no processo pessoal de busca por ser mais si mesmo.

Vale ressaltar, que por viverem um processo de crescimento pessoal, os sujeitos não nos deixam de nos comunicar os percalços pessoais e vividos no contexto de A.A. No entanto, cada um deles se posicionou de modo a apreender um novo significado e afirmar o que foi importante para si. Suzana ao viver a decepção com A.A. pôde elaborar a própria tensão e o mal-estar retomando o que foi significativo no grupo a ponto de voltar a frequentá-lo; Lilita ao se dar conta da própria manipulação no grupo que a machucava tomou posição para controlar essa tendência; Domênico diante da tensão vivida no grupo e da própria reação de explosão com o outro se conscientizou do erro retomando o que era correspondente a si: respeitar o outro; Aguinaldo diante das dificuldades no início da constituição do grupo, do próprio abalo pelo suicídio de um companheiro resgatou o valor da própria vida e do grupo, ressaltando que precisava ter um final feliz, além de nos comunicar a dificuldade vivida em manter a estruturação do contexto grupal devido à sugestão de integrantes que não se dedicavam para alcançar conhecimentos dos princípios de A.A. Salta aos nossos olhos o modo livre de terem se expressado para nós, pesquisadores, dificuldades e problemas que viveram, comunicando-nos o quanto que A.A. e eles mesmos não se reduzíam aos limites; daí a tranquilidade de se mostrarem, sem negar as fragilidades e dando-se conta do horizonte maior de vida no qual se inseriam.

Ao invés de terem lidado com a própria dor, seja recaindo ao álcool ou drogas, seja ignorando a provocação que ela suscita, cada um apreendeu na própria dificuldade oportunidade para rever as próprias ações no grupo de A.A. de modo a buscar aquelas que favoreciam o crescimento pessoal e a estruturação comunitária.

 

Conclusão

Apesar das limitações deste estudo no que se refere à seleção de pessoas que se identificaram com A.A., contribuindo, assim, para apreensão de resultados favoráveis ao grupo, podemos tecer algumas conclusões. A partir das experiências dos sujeitos, há possibilidade de apreendermos elementos nucleares presentes na experiência comunitária daqueles integrantes que se realizam no contexto sociocultural de A.A., tais como:

O encontro inter-humano considerando-se relação propriamente comunitária, tanto no momento anterior à participação em A.A. quando no ambiente grupal, marcado pelo acolhimento ao integrante, propicia ressignificação do sentido da vida e da condição de alcoolista. A vivência de valorização do integrante e o reconhecimento que recebe de um outro, considerando-se exemplo de superação, pode mobilizar uma experiência realizadora de si por vislumbrar um caminho de esperança e de retomada das próprias buscas por correspondências na realidade. A condição de alcoolista pode ser vivida como ocasião profícua para se cuidar, reconhecendo a limitação, mas não reduzindo o próprio ser a ela;

A abertura recíproca, durante a partilha de testemunhos, considerando-se fator comunitário, propicia experiências de aprendizagem e crescimento pessoal. Durante a troca de experiências, como proposta de A.A., o integrante pode viver uma experiência de realização de si e de afirmação da potência pessoal, ainda que vivencie decepções, frustrações, dificuldades e sofrimentos ao longo do processo. A decepção vivida, ao invés de ser apreendida como um fim esvaziado de sentido, pode ser ocasião para dar se conta do significado da dor e das indicações que ela contém;

O cultivo de relações de amizade e de solidariedade é ponto fundante da experiência comunitária. A proposta de A.A., que preza a convivência na reunião, configura-se como ocasião de formação de vínculos comunitários, calcados pela afeição, ajuda e experiência de liberdade e crescimento pessoal. Diante de um momento de sofrimento, o ato de ajudar, aliviando a dor do outro, mostrando a este novas maneiras de autocuidado, buscando o bem deste é uma potente ação autorrealizadora e de cuidado com o outro. Em ambas dinâmicas, marcadas pela doação do sujeito ao outro, emerge como ponto central a relação com o outro considerando-se formação pessoal de vínculos e do contexto comunitários que são sustento para o próprio processo de ser si mesmo e da conquista e manutenção da sobriedade;

Os vínculos genuinamente comunitários, que potencializam a formação pessoal, fortalecem não apenas o próprio eu mas também a realidade no qual se insere, a proposta cultural de A.A., o mundo social que recebe uma atuação solidária considerando-se ponto de novidade em meio às tendências individualistas da cultura contemporânea.

A partir dos dados de nossa pesquisa, referentes a pessoas que se identificaram e se envolveram com A.A., podemos problematizar os resultados de alguns trabalhos: o discurso homogêneo realizado pelo integrante ao seguir o roteiro básico de partilha das experiências inviabiliza a manifestação da singularidade; e o grupo é apenas um substituto da dependência ao álcool para o integrante que se subordina a A.A., resultando em alienação ao invés de autonomia pessoal. Diante desse debate, reafirmamos a urgência de atentarmos para a possibilidade fecunda uma experiência propriamente comunitária do integrante de A.A vinculada a uma experiência de singularização e realização pessoal. A consonância entre os valores pessoais e os princípios da proposta formal possibilita uma experiência pessoalizada das sugestões de A.A. ao invés de alienação. Não ignoramos a existência de processos alienantes do eu; afinal, em todo contexto institucional essa possibilidade se faz presente, inclusive essa possibilidade está presente em A.A. Mas a proposta societária, seja em A.A., seja em qualquer realidade social, por incluir uma dimensão comunitária pode se tornar um potente chamado para a pessoa tornar-se mais si mesma, para o eu se conectar com o âmago de seu ser, abrindo-se para a vida que é e que o rodeia.

 

Referências

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Recebido: 28.10.2014
Aprovado: 25.07.2016

Correspondência:
Ana Cláudia Bernardes Guimarães
Faculdade de Pará de Minas, curso Psicologia
Rua Ricardo Marinho, 110, São Geraldo
Pará de Minas, MG, Brasil
CEP: 35660-398
anaclaudia_bg@yahoo.com.br

 

 

1 Artigo extraído de Dissertação de Mestrado "Realização pessoal na experiência comunitária em Alcoólicos Anônimos: uma pesquisa fenomenológica" apresentada a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

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