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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

On-line version ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.13 no.2 Ribeirão Preto Apr./June 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v13i2p78-85 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v13i2p78-85

 

Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e cocaína-crack: o que indica a comparação entre grupo de usuários e não usuários?1

 

Trastorno por Déficit de Atención y Hiperactividad y Cocaína de crack: que indica la comparación de los usuarios y no usuarios?

 

 

Ana Carolina Maciel CancianII; Luiza Drissen Signorelli GermanoIII; Fernanda CeruttiIV; Margareth da Silva OliveiraV

IIMestranda, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
IIIAluna do curso de graduação em Enfermagem, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
IVDoutoranda, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
VPhD, Professor Doutor, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo, neste estudo, foi analisar a relação entre o uso de cocaína-crack e o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. Foram analisadas associações entre o grupo clínico de usuários de cocaína-crack e o não clínico, proveniente da população geral, de amostra de 971 participantes, que responderam ao Adult Self-Report. Foram encontradas diferenças significativas relacionadas à presença do diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (p=0,001), como problemas de atenção (p=0,001) que podem estar relacionados a alterações associadas à busca por situações recompensadoras, como o uso de substâncias. Isso, aliado à impulsividade, nos dois transtornos, tornaria tal associação digna de formulação de diretrizes específicas a fim de maximizar a eficácia do tratamento.

Descritores: Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade; Cocaína-Crack; Adult Self Report.


RESUMEN

El objetivo de este estudio es analizar la relación entre el consumo de cocaína crack y el diagnóstico de Trastorno por Déficit de Atención y Hiperactividad. Se analizaron asociaciones entre el grupo clínico de los consumidores de cocaína crack y no clínico de la población general de una muestra de 971 participantes que completaron el Adult Self-Report (ASR). Diferencias significativas fueron encontradas en relación al diagnóstico de Trastorno por Déficit de Atención y Hiperactividad (p = 0,001), como más problemas de atención (p = 0,001), que pueden estar vinculados a una mayor búsqueda de situaciones gratificantes, como el uso de sustancias. Esto, junto a la impulsividad en ambos trastornos, es digno de directrices específicas para maximizar la eficacia del tratamiento.

Descriptores: Trastorno por Déficit de Atención e Hiperactividad; Crack; Adult Self-Report.


 

 

Introdução

O uso anual de cocaína apresenta maior prevalência na América do Sul (1,3% da população adulta), em comparação com números da América do Norte. Em levantamentos recentes, é possível notar crescimento significativo do uso dessa substância ilícita no Brasil(1).

O crack é substância derivada da cocaína, cujo uso compulsivo instala-se em curto espaço de tempo. Atualmente, é considerado grave problema de saúde pública no Brasil, tanto pelo fácil acesso à substância quanto pelos graves danos causados à qualidade de vida do usuário(2). O perfil dos usuários de crack, no país, é composto de jovens com média de 27,3 anos de idade, predominantemente do sexo masculino, com baixa escolaridade e desempregados, sendo que, aproximadamente, 40% deles encontram-se em situação de rua(2-4). Além disso, em estudos, aponta-se que essa população frequentemente está associada à criminalidade – roubos, violência e endividamento com traficantes –, portanto, aumentando o risco de morte por homicídio(4).

No Brasil, o crack é mais frequentemente consumido em cachimbos, mas também são utilizadas latas de alumínio, o que representa grande risco de contaminação por metais pesados, além de vírus da imunodeficiência humana (Human Immunodeficiency Virus – HIV) e hepatite C(2). Os prejuízos causados pelo crack, e as características decorrentes do uso na população de usuários, são objetivos em estudos cada vez mais específicos e aprofundados em relação aos prejuízos relacionados ao uso, bem como as formas de proporcionar qualidade de vida a esses indivíduos(2).

O consumo problemático de cocaína e crack já foi associado a diversas comorbidades, sendo significativa a presença do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), que pode estar relacionado ao Transtorno por Uso de Substâncias (TUS) em cerca de 20% dos indivíduos, independentemente de gênero ou etnia(5). Em outros estudos, sugere-se que a relação com o TDAH pode variar de 2 a 83% em usuários de substâncias que buscam tratamento(6). Pesquisadores sugerem que esses dois diagnósticos possam ser resultado de sobreposição de fatores de risco, como vulnerabilidade genética(5).

Conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM 5), o TDAH é definido como padrão persistente e disfuncional de desatenção, podendo estar associado a sintomas de hiperatividade e impulsividade. Esse padrão se desenvolve durante a infância, podendo interferir no desenvolvimento. Cerca de 5% das crianças são diagnosticadas com TDAH, e essa condição pode acompanhar o indivíduo na idade adulta, especialmente o aspecto da desatenção. Aproximadamente 3% dos adultos são diagnosticados com TDAH(7).

Os usuários de cocaína com TDAH podem apresentar prejuízos de autorregulação comportamental. Em hipóteses, indica-se que a ativação dopaminérgica repetitiva dos circuitos neurais, por meio do uso crônico de cocaína, pode causar prejuízos nas funções inibitórias, levando à perda de controle sobre os comportamentos impulsivos, inclusive sobre a autoadministração de cocaína(8).

Em relação aos fatores cognitivos do Transtorno por Uso de Cocaína (TUC), em evidências, aponta-se que há aumento na impulsividade motora e cognitiva (i.e., tomada de decisão impulsiva). Já o TDAH parte da combinação de prejuízos no sistema de recompensa/motivacional, e isso pode ser peça-chave dessa psicopatologia, pois há busca por recompensa instantânea e adiamento de atividades não prazerosas. Portanto, ao se sobreporem os déficits no processamento de recompensas, atenção e memória de trabalho entre indivíduos com TDAH e substâncias psicoativas, aqueles com TDAH e dependentes de cocaína apresentam níveis significativamente altos de impulsividade, tanto motora quanto cognitiva(9).

A presença de TDAH nos TUS interfere no prognóstico, estando relacionada ao maior número de recaídas e menor adesão ao tratamento(10). Em evidências, aponta-se que usuários de cocaína com TDAH que buscam tratamento sentem maior fissura nos dias posteriores ao início do tratamento e se mantêm abstinentes por menor período de tempo(11). O TDAH está associado a problemas escolares e ocupacionais, e a impulsividade presente no transtorno pode ser um problema, especialmente na idade adulta(7). Dessa forma, fazem-se necessários estudos brasileiros em que se investigue essa associação, visando a desenvolver formas mais direcionadas de tratamento. Para tanto, o objetivo, neste estudo, foi analisar a relação entre o uso de crack e o diagnóstico de TDAH, por meio da comparação entre um grupo clínico e outro não clínico.

 

Método

Participantes

A composição da amostra se deu por conveniência, abrangendo 971 participantes, todos adultos, de 18 a 59 anos. A amostra total foi dividida em dois grupos: clínico (n=407) e não clínico (n=564). Os critérios de inclusão para o grupo clínico, composto de usuários de cocaína-crack, foram: a) estar internado em serviços especializados, públicos e/ou privados, que atendem pacientes provenientes tanto da capital, Porto Alegre, RS, Brasil, como da Região Metropolitana; b) estar entre o 7º e o 15º dia de abstinência de substâncias psicoativas; c) ter, no mínimo, cinco anos de estudo formal completos e d) relatar o uso de cocaína-crack como fator que motivou a procura pela internação.

O grupo não clínico foi composto de participantes residentes no Estado do Rio Grande do Sul, principalmente da Região Metropolitana de Porto Alegre. Os participantes foram escolhidos a partir dos seguintes critérios de inclusão: a) adultos com idade entre 18 e 59 anos; b) de ambos os sexos; c) com, no mínimo, cinco anos de escolaridade; d) que não estavam recebendo nenhum tratamento psicológico ou psiquiátrico e e) que não tinham diagnóstico de transtornos mentais.

Instrumentos

Foi utilizado o Adult Self-Report (ASR), que é uma escala Achenbach System of Empirically Based Assessment (ASEBA), destinada especificamente a indivíduos de 18 a 59 anos. O uso desse instrumento de autorrelato tem como fim avaliar aspectos do funcionamento adaptativo e psicopatológico, é constituído de 126 itens distintos, levando em torno de 30 minutos para ser aplicado(12).

O instrumento é dividido em quatro grandes áreas de avaliação, subdivididas em escalas. A primeira área de avaliação é denominada escalas que avaliam síndromes (comportamentos internalizantes e externalizantes). Os sintomas internalizantes correspondem a ansiedade/depressão, isolamento/depressão e problemas somáticos; e os externalizantes dizem respeito a comportamentos agressivos e intrusivos e quebra de regras(12).

A segunda área de avaliação é denominada escalas que avaliam o funcionamento adaptativo atual (família, trabalho, casamento, amizades, educação e média adaptativa geral), a terceira, escalas que avaliam o uso de substâncias (tabaco, álcool, drogas e média de uso de substâncias). A quarta e última área de avaliação, escalas orientadas pelo DSM (transtornos clínicos e transtornos de personalidade)(12).

Existem pontos de corte específicos para cada escala avaliada, os quais classificam a pontuação obtida em faixa normal, limítrofe ou clínica(12). Um estudo de evidências de validade do ASR foi realizado para adaptação à realidade brasileira. Esse contou com amostra total de 1.444 pessoas, divididas em três subamostras (população geral, dependentes químicos e pessoas com problemas clínicos ou emocionais). Os índices de consistência interna encontrados entre as escalas variaram de α=0,70 a α=0,86(13).

Procedimentos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), sob nº 09/04941. Aos participantes, foram garantidos sigilo e anonimato, e a avaliação só foi realizada após a compreensão dos objetivos nem estudo, o aceite quanto à participação e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em duas vias, uma para o participante e outra para o pesquisador.

A coleta de dados foi realizada por psicólogos e alunos de graduação em psicologia treinados. O grupo clínico foi composto de indivíduos atendidos em ambulatórios e clínicas de internação especializadas no tratamento de dependência química, os quais foram convidados para responder aos instrumentos após passarem por triagem, a fim de verificar os critérios de inclusão. O recrutamento dos participantes da população geral foi realizado na universidade em que se deu a pesquisa e na estação rodoviária da cidade, locais previamente autorizados para realização da coleta. Todos os participantes foram orientados quanto aos instrumentos aplicados e assinaram o TCLE.

Análise de dados

Para análise dos dados do ASR, primeiramente, utilizou-se o software Assessment Data Manager (ADM), recurso utilizado para correção das escalas ASEBA(14). Posteriormente, os dados computados foram exportados e analisados pelo programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 17.0. Foram realizadas análises descritivas (percentuais e desvios-padrão – dp) e análise de associação, por meio do teste qui-quadrado de Pearson, considerando a análise dos resíduos ajustados.

 

Resultados

A partir da análise descritiva dos dados sociodemográficos, considerando o total de participantes (N=971), evidenciou-se que a maioria era do sexo masculino (63,2%), com ensino superior (49,2%) e idade média, em percentual, de 31,13% (dp=11,18). Na Tabela 1 estão apresentados os dados dos participantes divididos entre os dois grupos (clínico e não clínico).

 

 

Como pode ser observado na Tabela 1, o grupo clínico foi composto de 407 usuários de cocaína-crack, com idade média de 31,55 anos (dp=9,60). A maioria dos participantes era do sexo masculino (87,5%), com ensino médio completo (42,3%). A discrepância entre os percentuais da variável sexo, em que o uso de cocaína-crack é mais prevalente entre os homens, foi considerada e controlada na análise estatística. O grupo não clínico foi composto de 564 participantes da população geral, com idade média de 30,84 anos (dp=12,19), a maioria do sexo feminino (54,3%), com ensino superior completo (62,6%).

Quanto às análises de associação entre os grupos clínico e não clínico e, também, à variável problemas de atenção, a maioria dos participantes do grupo de usuários de cocaína-crack (21%; n=85) demonstrou-se significativamente envolvida na categoria clínica (p=0,001), enquanto os participantes do grupo da população geral (88,6%; n=499) estiveram predominantemente representados na categoria normal dos problemas de atenção (p=0,001).

Já em relação ao diagnóstico de TDAH, houve diferenças significativas entre os grupos clínico e não clínico (p<0,001). Conforme está apresentado na Tabela 2. Observa-se, com os grupos distribuídos nas faixas de classificação normal, limítrofe e clínica, que houve prevalência maior dos participantes do grupo não clínico (85,6%; n=482) na faixa de classificação normal do referido diagnóstico clínico. Em contrapartida, as classificações limítrofe (24%; n=97) e clínica (23,2%; n=94) foram representadas pelo grupo de usuários de cocaína-crack, em sua maioria. A associação linear-by-linear indica que, quanto maior a pontuação da gravidade dos sintomas de TDAH maior a probabilidade de pertencer ao grupo clínico (p<0,001).

 

 

Discussão

Por meio dos resultados encontrados neste estudo, confirmam-se as evidências apontadas pela literatura sobre a associação entre o TDAH e o uso de cocaína. Essa associação pode ser explicada pela sensibilidade no sistema de recompensa, já que, em evidências, aponta-se que os indivíduos com TDAH teriam menos receptores de dopamina(15-16). Em exames de neuroimagem de indivíduos com TDAH, mostra-se dissociação neural entre decisões para recompensa imediata e adiada e hipoativação orbitofrontal, o que explicaria as respostas alteradas em relação ao reforçamento(17). Dessa forma, esses indivíduos buscariam mais situações recompensadoras e isso pode estar diretamente associado ao uso de cocaína, conforme já apontado na literatura(15-16).

Uma das teorias em que se propõe conceituar o funcionamento cognitivo desses indivíduos seria o Modelo Dualista do TDAH, que apresenta esse transtorno como resultante de disfunções executivas subjacentes às referidas perturbações dopaminérgicas. Isso explicaria alterações importantes na motivação, que, por sua vez, justificariam a busca pela recompensa e a aversão à postergação dessa(17-18). O TDAH em adultos também está associado a outros déficits em funções executivas, como memória de trabalho, processamento emocional, processamento temporal e controle inibitório. Como o TDAH é considerado transtorno de desenvolvimento, espera-se que a maioria desses sintomas diminua na vida adulta. Os sintomas que persistem parecem estar relacionados à faceta da impulsividade. Essa seria uma característica marcante tanto do TDAH quanto dos TUSs(9).

A impulsividade está relacionada a falhas no controle inibitório, o qual seria deficitário em usuários de substâncias. Em estudo realizado com indivíduos com abuso crônico de cocaína, foram encontrados prejuízos nas funções do lobo frontal, considerados importantes para o controle e regulação do comportamento, por meio de exames de neuroimagem. O ambiente seria um gatilho para comportamentos: a falha na regulação, por meio do lobo frontal, levaria a dificuldades no controle inibitório na presença do estímulo(8).

Ademais, o controle de impulso motor e cognitivo é deficitário tanto em pacientes com TDAH quanto em usuários assíduos de cocaína, e há piora quando os dois transtornos associam-se. O controle inibitório depende do bom funcionamento dos lobos frontais, que estão relacionados aos vários subtipos de inibição. Os autores especulam que esses indivíduos necessitam de mais circuitos – ou, talvez, sobreposição desses – no lobo frontal, para que possam alcançar o adequado controle de impulsos. Portanto, indivíduos com TDAH e dependência de cocaína são mais impulsivos do que aqueles sem uso de cocaína, por terem os circuitos executivo e de recompensa/motivacional disfuncionais(9).

A fim de encontrar diferenças nas características de impulsividade, em outro estudo, foram utilizados testes neuropsicológicos e de autorrelato em amostra de usuários de cocaína com e sem TDAH. No estudo em questão, não foram encontradas diferenças significativas nos testes cognitivos, porém, evidenciou-se, por meio da Barrat Impulsiveness Scale (BIS), que o grupo de usuários de cocaína com TDAH foi significantemente mais impulsivo(9). Em evidências, aponta-se que a presença de TDAH pode acelerar o que é apontado na Teoria da Progressão do Uso de Drogas e pode haver relação dessa com a impulsividade. Nessa teoria, sugere-se que o consumo precoce de substâncias lícitas poderia funcionar como porta de entrada para o consumo de substâncias ilícitas mais danosas. O TDAH foi significativamente mais associado com o uso precoce de substâncias, incluindo a cocaína(10,19), e mais associado à severidade do uso de substâncias na idade adulta(19-21).

Usuários precoces de maconha com problemas de atenção na infância parecem estar mais propensos ao uso de cocaína durante a vida e, também, podem representar grupo de risco para uso de outras substâncias(22). Mesmo após controlar variáveis de risco, como uso precoce de substâncias, dificuldades escolares e problemas na família, os resultados significativos foram mantidos, indicando que os problemas de atenção na infância possivelmente estão associados ao risco para uso de cocaína na vida adulta. Adicionalmente, em revisão meta-analítica, levantaram-se evidências de diversos estudos, e apontou-se que a presença de TDAH na infância está mais associada ao desenvolvimento de uso problemático de cocaína na idade adulta, bem como que essa inferência pode ser causal(23).

Outro ponto a ser destacado é o tratamento medicamentoso com metilfenidato, o medicamento mais prescrito para o tratamento de TDAH na infância. Esse psicoestimulante pode alterar a trajetória do desenvolvimento neuronal, durante a adolescência(24). Tanto o metilfenidato quanto a cocaína atuam sobre os carreadores de dopamina, o que, presumivelmente, é o entendimento-chave a respeito do mecanismo de reforçamento da cocaína, pois se ligam aos transportadores e inibem a reabsorção dessa na fenda sináptica.

Quando administrado na adolescência, mas interrompido posteriormente, o metilfenidato aumenta a motivação à autoadministração de cocaína em modelos animais, o que sugere que a medicação deve seguir à risca sua prescrição. A cocaína, ao ser autoadministrada, vai diretamente para o lobo frontal medial, portanto, tal mecanismo pode atuar reforçando e/ou motivando o sujeito a usar cocaína novamente. Em modelos animais, mostra-se que a administração de metilfenidato na fase de pré-tratamento inibe os carreadores de dopamina, produzindo redução na ligação da cocaína nesses transportadores e reduzindo o impacto dessa(24).

 

Conclusão

No presente estudo, teve-se como objetivo analisar a relação entre o uso de cocaína-crack e o diagnóstico de TDAH. Por meio dos resultados, mostra-se associação significativa entre as duas condições, o que confirma os achados prévios da literatura. Várias hipóteses estão envolvidas na relação do TDAH e os TUS, incluindo a maior sensibilidade no sistema de recompensa, já que os indivíduos com TDAH teriam menos receptores de dopamina. Com isso, seriam causadas alterações na motivação e busca por situações recompensadoras e na impulsividade, a qual é característica de ambos os transtornos.

Contudo, na interpretação dos resultados, deve-se levar em consideração as limitações no estudo, de delineamento transversal, cujos instrumentos estão baseados no autorrelato. Sendo assim, não é possível atribuir relação de causa e efeito entre o diagnóstico de TDAH e o uso de cocaína-crack, infere-se, apenas, que há associação significativa, que não se apresenta manifesta da mesma forma no grupo de não usuários da droga. Tendo em vista esses pontos, sugerem-se pesquisas que investiguem o tema longitudinalmente e que contem com outros recursos de investigação, como a neuroimagem.

Em suma, ressalta-se a importância de estudos em que se avaliam as comorbidades nos usuários de substâncias psicoativas, uma vez que comorbidades como o TDAH interferem no prognóstico e no tratamento TUS. Dessa forma, a investigação do TDAH em usuários de cocaína-crack é fundamental para o entendimento do indivíduo, de suas dificuldades e características, que integram o processo de desintoxicação e reabilitação. É interessante que profissionais da área da saúde estejam habilitados a identificar tais associações para direcionar de maneira efetiva o tratamento do usuário.

 

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Recebido: 18.01.2016
Aceito: 23.01.2017

Correspondência:
Margareth da Silva Oliveira
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Av. Ipiranga, 6681, prédio 11, sala 927
CEP: 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil
E-mail: marga@pucrs.br

 

 

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