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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.13 no.3 Ribeirão Preto jul./set. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v13i3p156-166 

ARTIGO DE REVISÃO
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v13i3p156-166

 

Resiliência em crianças e adolescentes vítimas de estresse precoce e maus-tratos na infância

 

La resiliencia en niños y adolescentes víctimas de estrés temprano y maltrato en la infancia

 

 

Isabela Masucci de Lima CamargoI; Maria Neyrian de Fátima FernandesII; Marina Sayuri YakuwaIII; Ana Maria Pimenta CarvalhoIV; Patricia Leila dos SantosV; Edilaine Cristina Silva Gherardi-DonatoIV; Débora Falleiros de MelloIV

IMestranda, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IIDoutoranda, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Professor Assistente, Universidade Federal do Maranhão, Imperatriz, MA, Brasil
IIIDoutoranda, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IVPhD, Professor Associado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
VPhD, Professor Doutor, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo caracterizar a resiliência em crianças e adolescentes que sofreram abusos na infância a partir de revisão da literatura científica. Revisão integrativa com evidências da literatura, nas bases de dados Web of Science, PubMed/Medline e PsycInfo, com os descritores resilience, psychological e child abuse. Foram encontrados 17 artigos, no período de 2011 e 2015. De acordo com a produção científica analisada, encontrou-se que os abusos na infância têm relação negativa com o desenvolvimento da resiliência e favorável ao surgimento de sintomatologia depressiva e ansiosa. Fatores como o apoio social e familiar apresentam relação positiva com a resiliência. Conclui-se que o desenvolvimento da resiliência em crianças e adolescentes vítimas de abuso pode atuar como fator protetor para estes indivíduos.

Descritores: Resiliência Psicológica; Estresse Psicológico; Maus-tratos Infantis.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo caracterizar la resiliencia en niños y adolescentes abusados en la infancia. Se encontraron 17 artículos, entre 2011 y 2015. De acuerdo con la literatura científica analizada, se encontró que el abuso infantil tiene relación negativa con el desarrollo de la capacidad de recuperación y positiva con la aparición de los síntomas depresivos y de ansiedad, así como, factores positivos tales como el apoyo social y familiar tiene relación positiva con la capacidad de recuperación. Se llegó a la conclusión de que el desarrollo de la resiliencia en niños y adolescentes víctimas de abuso puede actuar como un factor de protección para estas personas.

Descriptores: Resiliencia Psicológica; Estrés Psicológico; Maltrato a Los Niños.


 

 

Introdução

Desde a mais tenra idade até o final da vida, o ser humano vivencia os mais variados tipos de estressores e precisa aprender continuamente a adaptar-se às diferentes realidades moldadas por essas adversidades. Pode-se dizer que os indivíduos passam a vida inteira procurando mecanismos e estratégias para superar e conviver com os lutos, as mudanças e as constantes tentativas de transformar as experiências negativas em algo positivo, seja para evitar o seu contato com os estressores, ou para diminuir suas reações diante deles.

Assim, é possível afirmar que a vida é um processo contínuo de perdas e ganhos e faz-se necessária uma espécie de cicatrização para aprender a lidar com as perdas. Esse processo de cicatrização pode ser comparado ao desenvolvimento da resiliência nos indivíduos, pois ela surge a partir de uma ferida aberta por um trauma(1).

Nesse sentido, a resiliência pode ser definida como um processo interativo e subjetivo que ocorre em alguns indivíduos os quais têm uma evolução relativamente boa, mesmo vivenciando fortes estresses ou adversidades. Nesses indivíduos observa-se uma resposta melhor do que em outros indivíduos que sofreram as mesmas experiências, consolidando algum tipo de desenvolvimento(1-2).

Como as adversidades podem estar presentes desde a concepção dos seres humanos, é preocupante o impacto que essas podem ter no desenvolvimento infantil e, consequentemente, aumentar a chance do indivíduo desencadear dificuldades físicas e mentais ao longo da vida. Considera-se os maus-tratos como eventos adversos durante a infância(3), os quais denominamos de estresse precoce. O estresse caracteriza-se como uma reação do indivíduo à adversidades, impelindo-o a buscar um ajustamento ou resposta a condições que despertaram ansiedade ou medo, objetivando estabilizar processos biológicos internos e preservar a autoestima(4).

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS/WHO) os maus-tratos infantis caracterizam-se como qualquer tipo de abuso e negligência que ocorrem em crianças menores de 18 anos. Incluem-se todos os tipos de maus-tratos físico ou emocional, abuso sexual, abandono, negligência ou exploração de qualquer natureza que podem resultar em danos, potencializar danos imediatos ou a longo prazo na saúde, na sobrevivência e no desenvolvimento da dignidade no contexto das interações sociais(5).

Os maus-tratos infantis levam ao sofrimento da criança e dos seus familiares, gerando o estresse que é associado com uma ruptura no desenvolvimento do cérebro, em casos extremos podem comprometer o desenvolvimento dos sistemas nervoso e imunológico(5).

Estudos(3,6-7) mostram que adultos com histórico de maus-tratos na infância apresentam maior risco de desenvolvimento de transtornos mentais, incluindo depressão e ansiedade. Índices de uso de drogas e outras substâncias e comportamentos de risco, também são mais prevalentes nesses adultos.

A maior chance de comprometimento da saúde na vida adulta está relacionada às alterações na resposta ao estresse desencadeadas pelas experiências traumáticas, ou seja, o efeito do estresse como fator de risco para diversas patologias, estaria aumentado em indivíduos com histórico de maus tratos na infância, pois estes indivíduos tendem a apresentar uma resposta aumentada ao estresse na vida adulta.

Nesse contexto, percebe-se que enfrentar infortúnios da infância pode causar marcas profundas no indivíduo por tempo indeterminado. Deste modo, nota-se então que eventos adversos, como os maus-tratos na infância, geradores de estresse precoce são fatores que catalisam e podem levar ao desenvolvimento de patologias clínicas e transtornos mentais na vida adulta.

Ainda que esteja clara a relação existente entre estresse precoce e desenvolvimento de patologias na vida adulta por sujeitos que sofreram maus tratos na infância, nem todos os indivíduos que vivenciaram este tipo de experiência traumática desenvolvem patologias. Entre os fatores para o estabelecimento dessa relação, a literatura tem considerado a disponibilidade genética, psicológica e social.

Assim, um mesmo evento estressor ocorrido precocemente poderia enfraquecer a resposta ao estresse na vida adulta, favorecendo o desenvolvimento de patologias, ou atuar como fator catalizador para o desenvolvimento de uma maior capacidade de responder a adversidades futuras, configurando nos sujeitos um maior nível de resiliência diante dos eventos estressores.

Diante da problemática exposta e da produção científica acerca do tema, formulou-se a seguinte questão norteadora: Quais as características da resiliência em crianças e adolescentes vítimas de abusos na infância? Nesse sentido, o objetivo do presente estudo é caracterizar a resiliência em crianças e adolescentes que sofreram abusos na infância, a partir de revisão da literatura científica.

 

Método

Trata-se de uma Revisão Integrativa da Literatura, método que propõe incorporar a aplicabilidade de resultados de estudos, estabelecimento de critérios sobre a coleta de dados, bem como a síntese de conhecimento, permitindo a inclusão de estudos experimentais e não-experimentais(8-9).

Neste estudo, a revisão integrativa perpassou primeiramente pela identificação do tema e da seleção da questão norteadora do estudo; posteriormente pelos critérios de inclusão e exclusão; categorização dos estudos; avaliação dos estudos incluídos na revisão integrativa; interpretação dos resultados e a síntese do conhecimento(10-11).

O tema abordado neste estudo foi sobre o desenvolvimento da resiliência em crianças e adolescentes que sofreram abusos na infância. E a questão norteadora da pesquisa foi: como ocorre o desenvolvimento da resiliência em crianças e adolescentes que sofreram abusos na infância?

Para o levantamento dos artigos na literatura, efetuado nos meses de março a abril de 2016, foi realizada a busca nas seguintes bases de dados: Web of Science, PubMed/Medline (Medical Literature and Retrivial System on Line), PsycInfo. Foram utilizados os descritores pelo DecS (Descritores em Ciências da Saúde) e no MeSH (Medical Subject Headings): resilience, psychological e child abuse.

 Adotou-se como critérios de inclusão dos achados: artigos publicados no período de 2011 a 2015 para incluir as evidências mais atualizadas na temática, artigos originais na íntegra, divulgados nos idiomas português, inglês ou espanhol. Foram excluídos artigos que não tratavam de abuso em crianças e adolescentes (abuso sofrido até os 19 anos de idade), pesquisas realizadas com adultos, ou maiores de 19 anos de idade, estudos teóricos ou de revisão.

A figura 1 mostra os resultados das buscas de artigo por banco de dados. O resultado inicial diz respeito ao número total de artigos encontrados de acordo com os descritores utilizados, em seguida, utilizou-se os critérios de inclusão (filtro) para refinar a busca. Desses estudos listados, 287 atenderam os critérios de inclusão. Após a aplicação dos critérios de exclusão e da leitura integral dos artigos, o corpus deste estudo foi composto por 17 artigos. Em seguida, procedeu-se a extração dos dados pertinentes para esta revisão e o agrupamento das informações.

 

 

A classificação geral dos artigos baseou-se nas evidências científicas disponíveis atualmente na literatura, incluindo os níveis de evidências e graus de recomendação como forma de obter os melhores resultados. O nível de evidências foi classificado pelo tipo de estudo de acordo com o Oxford Centre for Evidence-based Medicine(12).

No nível 1, as evidências são provenientes de ensaios clínicos controlados randomizados com com intervalo estreito de confiança ou de revisão sistemática ou metanálise de todos os relevantes ensaios clínicos randomizados controlados ou oriundos de diretrizes clínicas baseadas em revisões sistemáticas de ensaios clínicos randomizados controlados; nível 2, evidências derivadas de estudo de coorte histórica ou com segmentos de casos comprometidos (pelo menos um ensaio clínico randomizado controlado bem delineado, mas de menor qualidade) e estudo ecológico; nível 3, evidências obtidas de ensaios clínicos bem delineados sem randomização (estudos caso-controle), revisões sistemáticas de estudos caso-controle; nível 4, relatos de casos (coorte ou caso-controle de menor qualidade); nível 5, evidências originárias de opinião de autoridades e/ou relatórios de comitê de especialistas. Nesta pesquisa, considerou-se os estudos com evidências até o nível três(12).

Para proceder a análise e interpretação dos dados, organizou-se as informações em um formulário de identificação preparado previamente(10) contendo a identificação do estudo, ano de publicação, autores, tipo de estudo, local e população estudada; preenchido para cada artigo da amostra, possibilitando a catalogação dos dados. Dessa forma, a visualização dos artigos foi facilitada e possibilitou uma melhor comparação dos estudos. Os dados foram organizados de acordo com as semelhanças dos conteúdos que emergiram no corpus investigado e analisados descritivamente. Os artigos foram divididos em três categorias: resiliência e abuso familiar e institucional; resiliência e abuso sexual e, resiliência e fatores intrínsecos ao indivíduo.

 

Resultados

Os artigos do corpus deste estudo foram escritos em sua maioria na língua inglesa. A figura 2 sintetiza os dados gerais dos artigos selecionados, a maioria (88%) era de delineamento quantitativo. Quanto ao local de origem, oito foram pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos mas houve variabilidade entre os países, com resultados do Canadá, Reino Unido, Sérvia, Argentina, Nova Zelândia, Israel, Coréia, entre outros. Quanto aos níveis de evidência, todos os artigos foram classificados no nível 1 de evidência.

 

 

Os 16 artigos foram divididos em três categorias: resiliência e abuso familiar e institucional (10); resiliência e uso e abuso de substâncias (3) e resiliência e fatores intrínsecos ao indivíduo (3).

Resiliência: abuso familiar, institucional e o estresse precoce

Nesta categoria, foram incluídos estudos que tratam da resiliência em crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos familiares e institucionais; foram obtidos dez artigos para esta análise. Cinco estudos(13-17) investigaram exclusivamente os maus-tratos que ocorreram no ambiente familiar, outros cinco(18-22) abordaram os abusos e maus-tratos institucionais. Ressalta-se que dos dez estudos incluídos nesta categoria, dois(13, 22) investigaram tanto os maus-tratos familiares quanto os institucionais.

Encontrou-se que a ocorrência de abusos e maus-tratos na infância relaciona-se estreitamente com maiores índices do surgimento da sintomatologia de transtornos e desordens psiquiátricas(13-15, 19), bem como uma menor taxa de resiliência e dificuldades de aprendizagem em crianças vítimas de abusos(15), além de uma maior ocorrência de comportamentos de delinquência e sintomatologia depressiva e ansiosa em meninas vítimas de maus-tratos, quando comparadas à meninas sem história de abuso(13).

No tocante ao abuso familiar, foram descritos fatores que influenciam positivamente o desenvolvimento da resiliência pelas crianças e adolescentes, como a aceitação paterna e a autopercepção dos adolescentes como resilientes(16) e a intervenção de família secundária, como tios ou avós, nos maus-tratos ou negligência(15).

Também, foi identificado em um estudo(17) que o maior envolvimento do cuidado materno e seus benefícios possibilita uma diminuição nos sintomas da depressão, porém não protege do surgimento dos mesmos. Fatores familiares como a exposição à violência, podem ter efeito negativo no desenvolvimento da resiliência(14), e ainda, crianças e adolescentes com maiores índices de resiliência quando comparadas àquelas com menores índices, possuíam maior capacidade de identificar a existência de uma problemática familiar(15).

Quanto ao abuso em instituições, foram identificados estudos das quais a crianças ou o adolescente que sofreram abuso influenciam seu desenvolvimento. Encontrou-se(20), também, que o bullying na adolescência está associado a níveis maiores de sintomas depressivos e comportamento de delinquência, houve ainda associação com menor autoestima e maior conflito com os pais; no entanto, a maior parte dos adolescentes do sexo masculino apresentaram menores índices destes sintomas, mostrando-se mais resilientes. Por outro lado, adolescentes do sexo feminino, apesar da experiência traumática, apresentaram maior autoestima e menor índice de conflitos familiares. O maior nível de resiliência foi ainda, associado ao menor uso de álcool e outras drogas.

No que se diz respeito a relação da resiliência e o estresse precoce é que os níveis medianos de estresse precoce podem sugerir níveis mais altos de resiliência(14), bem como, a exposição à violência no âmbito familiar e na comunidade pode ser um fator de risco para o desenvolvimento de sintomatologia para estresse pós-traumático em crianças e adolescentes(14).

Além disso, foi identificado que adolescentes com dois ou mais tipos de experiências negativas alcançaram resultados inferiores de resiliência, aqueles com quatro ou cinco diferentes vivências traumáticas obtiveram os menores escores quando comparados com aquelas vítimas de apenas um tipo(18). A idade em que a experiência traumática é vivida também exerce influência no desenvolvimento da resiliência. Percebeu-se que adolescentes mais velhos e mais novos atingiram níveis similares de resiliência, porém, sujeitos mais velhos possuíam um melhor aproveitamento dos serviços em que estavam inseridos(21). Outros fatores que influenciam o desenvolvimento comportamental são variáveis pessoais, como senso de esperança ou expectativa e inteligência, influenciam o desenvolvimento da resiliência. Adolescentes com menores níveis de engajamento escolar, apoio social, esperança e expectativa, bem como história prévia de abuso sexual, apresentavam maiores problemas comportamentais e menor probabilidade de serem resilientes(22).

Resiliência e uso e abuso de substâncias

Nesta categoria foi incluído um artigo(23) que analisava os efeitos do ambiente pré-natal exposto à drogas e sua influência no desenvolvimento da criança e da capacidade resiliente; e dois(24-25) que relacionava uso e abuso de substâncias com maus-tratos vivenciados na infância.

O abuso de substâncias psicoativas ainda durante o pré-natal deixa marcas na criança que podem perdurar por toda a vida. Ao determinar o papel dos fatores de risco e de proteção no desenvolvimento de problemas comportamentais associados à elevada exposição a cocaína e polidrogadição durante o pré-natal, constatou que filhos de mães com elevada exposição às drogas tiveram maior probabilidade de desenvolver agressividade e problemas de comportamento durante a vida, predominando nos meninos(23). O outro artigo incluído nesta categoria mostrou que indivíduos com características agressivas têm tendência maior a desenvolver abuso e dependência às drogas(24).

As crianças filhas de mães com elevada exposição às drogas possuíam baixos índices de QI verbal e déficit de atenção. Todavia, a pesquisa mostrou que crianças com índices elevados de resiliência eram protegidas dos problemas de comportamento na infância e adolescência(23).

Encontrou-se associação entre aumento do risco de psicopatologia, diferenças individuais de personalidade e a gravidade dos maus-tratos precoce na infância com os sintomas do abuso e dependência de cannabis no início da adolescência. Nesse estudo, percebeu-se que crianças com severos níveis de maus-tratos foram menos predispostas a desenvolverem a resiliência e apresentaram mais sintomas externalizadores (egocentrismo e agressividade). Maus-tratos infantil, desordem de personalidade e sintomas internalizadores ou externalizadores predispõem ao uso regular de cannabis e desenvolvimento da dependência do cannabis. Percebendo-se, assim, que existe relação positiva entre exposição a traumas e desordem do uso de substâncias(24).

Resultados semelhantes também foram encontrados em outro estudo(25), no qual os maus-tratos infantis foram percebidos como estressores ambientais que potencializam o comprometimento do desenvolvimento da personalidade, resultando no aumento das psicopatologias na adolescência e tendência maior ao uso de cannabis.

Resiliência e fatores intrínsecos ao indivíduo

Nesta categoria foram incluídos quatro artigos, sendo dois relacionados a interação do genótipo com o fenótipo, outro que abordava as características neurológica de adolescentes expostos ao estresse precoce e um último que abordava a relação entre autoestima e resiliência.

De acordo com os estudos(26-27), existe uma relação estreita entre o genótipo e os eventos estressores experienciados por crianças e adolescentes, fase crucial no desenvolvimento humano. Como por exemplo, eventos estressores podem provocar alterações no fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF, do inglês brain-derived neurotrophic factor), este é um componente da família de proteínas homólogas conhecidas como neurotrofinas, e tem um papel central no desenvolvimento, fisiologia, e patologia do sistema nervoso; como também em processos relacionados à plasticidade cerebral como a memória, e o aprendizado(27).

Nos achados da investigação(27), encontrou-se que sujeitos homozigotos para o BDNF foi estatisticamente associado ao fenótipo de resiliência. Agregado a isso, evidenciou-se que o genótipo BDNF associado a quantidade de adversidades vivenciadas na infância, tais como abusos, negligência e disfunções familiares, mal ajustamento familiar, morte parental e vivência de experiências de doenças graves; mostraram um efeito protetor para o risco de desenvolver depressão ao longo da vida. Mas esses resultados foram evidentes apenas em mulheres.

A outra pesquisa(26) na tentativa de descobrir se existiam variantes de genes específicos que ao interagir com a experiência de maus-tratos infantil estariam associados com níveis mais elevados de funcionamento resilientes em crianças de baixa renda com maus-tratos. Os resultados indicaram baixas funções resilientes em crianças com maus-tratos. Descobriu-se, também, que as características da personalidade individual, como ego resiliente e super-ego moderado, processo de autoestima e fatores de relacionamento foram diferencialmente preditivos do funcionamento resiliente em crianças que sofreram ou não maus tratos.

Os resultados desta pesquisa mostraram que algumas variantes genética exercem um efeito insignificante na previsão da resiliência no grupo de crianças com maus-tratos. Por outro lado, o genótipo contribui para o alto funcionamento da resiliência em crianças não maltratadas quando comparadas com crianças maltratadas com o mesmo genótipo. Experiências de maus-tratos também podem influenciar processos genéticos, incluindo os processos epigenéticos e o grau para o qual os genes são expressos(26). Ou seja, os maus-tratos na infância conseguem anular os efeitos de um genótipo favorável ao desenvolvimento da resiliência.

Outro caminho percorrido para compreender o desenvolvimento da resiliência é o neurobiológico. Explorou-se a projeção da substância branca do córtex cerebral das diferenças percebidas no corpo caloso para avaliar a relação entre os eventos negativos da vida e os valores de anisotropia fracionada (AF) em uma amostra de adolescentes. Os resultados mostraram que o AF é elevado após exposição a eventos estressantes e que altos níveis de AF é associado à elevada capacidade de resiliência(28).

Os resultados mostraram aumento do AF em determinados segmentos do corpo caloso no grupo resiliente (adolescentes com baixo risco de transtorno mental mesmo tendo sido expostos a eventos estressores). Desta forma, um corpo caloso sólido deve proteger dos transtornos mentais aumentando a resiliência. Assim, é possível afirmar que a natureza da resposta do corpo caloso ao estresse precoce pode exercer um papel importante na determinação da resiliência psiquiátrica(28).

Outro fator analisado foi o papel mediador da autoestima e da resiliência nos maus-tratos psicológicos e emocionais, indicando que estes são negativamente correlacionados com a resiliência e autoestima, e positivamente correlacionados com problemas comportamentais e problemas emocionais em adolescentes(29). Desta forma, altos níveis de resiliência e de autoestima defendem os adolescentes de problemas comportamentais, mesmo que eles estejam vivenciando maus-tratos psicológicos, desempenhando, assim, uma função importante na proteção do bem-estar de adolescentes que enfrentam adversidades(29).

 

Discussão

A pesquisa sobre o desenvolvimento da resiliência entre indivíduos vítimas de maus-tratos na infância é complexa e exige uma abordagem multidisciplinar. Pois, perpassa pela visão fundamental da neurobiologia e dos caminhos psicológicos do desenvolvimento para promover mecanismos de mudança e pontos de reflexão para intervenção no ciclo de vida humano(30). Por isso, promover a resiliência é um fator crítico para crianças que vivenciam abusos e negligência precocemente.

Os resultados desta revisão condizem com outro estudo(31) que considera as variações na resiliência associadas à diversas influências como a idade em que a situação estressora é vivenciada, temperamento e personalidade da criança, disponibilidade de capital social no lar e na comunidade, bem como com a pobreza familiar.

Além disso, o desenvolvimento da resiliência também é visto em crianças e adolescentes que fazem uso de drogas. Notou-se que o uso frequente é prejudicial, principalmente em famílias disfuncionais, podendo gerar mais agravos como as doenças sexualmente transmissíveis, bem como problemas cardiorrespiratórios e lesões decorrentes da violência(32).

Estudos(31, 33) do desenvolvimento humano mostram a influência da qualidade da parentalidade sobre os indivíduos. Uma parentalidade eficaz tem sido associada a resultados positivos em crianças expostas a uma gama de condições adversas, como pobreza, divórcio ou morte de um dos pais. Assim, pode-se considerar a parentalidade um importante recurso de promoção da resiliência.

A presença de depressão no cuidador também é um fator a ser considerado no desenvolvimento infantil. Pois, sintomas depressivos foram associados com crianças pouco susceptíveis a desenvolver os critérios de competência nos domínios social, comportamental e resiliente(30). Além da qualidade da parentalidade, ter pais saudáveis é também outro fator importante na promoção da resiliência em crianças pequenas.

O estudo da resiliência deve, constantemente, considerar o quão impressionante é a complexidade pela qual os corpos e os cérebros interagem através dos diversos ambientes(26). Na atualidade, o campo da genética está se voltando rapidamente para os estudos de perfil de expressão genômica global em grandes populações para examinar as complexas contribuições genéticas para a resiliência, com polimorfismos genéticos adicionais e interações gene-gene e gene-ambiente sendo atualmente identificadas. A medida que as bases genéticas da resiliência se tornarem mais evidentes, pode-se prever que genes e drogas terapêuticas podem ser desenvolvidas especificamente para perfis genéticos de baixa resiliência(34) .

Embora o apoio social e a influência dos relacionamentos sociais sejam essenciais para ajudar as crianças a transporem as dificuldades vivenciadas precocemente, as evidências sugerem que não são apenas as características intrínsecas nem os fatores externos que influenciam isoladamente, mas uma combinação desses que promovem e ajudam a manter a resiliência(35).

 

Conclusão

Os aspectos analisados mostram que crianças e adolescentes em situação de adversidades conseguem desenvolver resiliência de acordo com diversos fatores que vão desde características genéticas até a qualidade da relação com as instituições sociais. Conhecer esses fatores possibilita conhecer e compreender como um indivíduo é capaz de adaptar-se a novas formas, buscar recursos em si mesmo e no ambiente que o rodeia, para resolver os problemas que encontram no decorrer da vida, por meio do desenvolvimento da resiliência.

      As evidências científicas dos estudos analisados deixam claro que a identificação de estressores na infância e adolescência é essencial para as ações de prevenção e promoção em saúde, a fim de aumentar as possibilidades para o desenvolvimento de resiliência nesses indivíduos. Considerando-se a prática dos profissionais de saúde, é fundamental a inclusão dessa temática na formação, na educação permanente e no planejamento da atenção em saúde, buscando-se instrumentalizar a atuação profissional para a detecção e a intervenção junto a crianças e adolescentes em situação de maus-tratos.

Todavia, ainda são necessários mais estudos para que seja possível compreender como se deve intervir para facilitar a promoção da resiliência desde a infância, passando pela rede de apoio social e familiar que a criança ou adolescente possa ter, para que cresça e desenvolva-se de forma saudável e segura, tendo seus direitos garantidos.

Nota-se que apesar de haver uma produção científica numerosa sobre as questões referentes à resiliência, quando se deseja pesquisar e conhecer a temática relacionada à crianças e adolescentes vítimas de maus tratos, este corpo de conhecimento ainda é insuficiente. Considerando-se que, para a faixa etária descrita, o desenvolvimento da resiliência é um fator protetor determinante para um desenvolvimento saudável, fica clara a necessidade de investimento em estudos de intervenção que contribuam para construção de evidências científicas focadas no desenvolvimento de resiliência para a melhoria da assistência a crianças e adolescentes que vivenciam situações de estresse precoce.

 

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Recebido: 12.08.2016
Aceito: 30.07.2017

Correspondência:
Maria Neyrian de Fátima Fernandes
Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
Av. dos Bandeirantes, 3900
Bairro: Monte Alegre
CEP: 14040-902
Ribeirão Preto, SP, Brasil
E-mail: neyrianfernandes@gmail.com

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