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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.13 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v13i4p213-220 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.v13i4p213-220

 

A percepção dos moradores em relação aos Serviços Residenciais Terapêuticos: satisfação, liberdade e novo núcleo familiar1

 

The residents’ perception about the Residential Therapeutic Services: satisfaction, freedom and new family

 

La percepción de los habitantes en relación a los Servicios Residenciales Terapéuticos: satisfacción, libertad y nuevo núcleo familiar

 

 

Aline Cristina DadalteII; Enio José Porfirio SoaresIII; Luiz Jorge PedrãoIV

IIDoutoranda, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil
IIIMSc, Professor, Colégio Monteiro Lobato, Franca, SP, Brasil
IVPhD, Professor Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) estão atrelados à Reforma Psiquiátrica Brasileira e ao processo da desinstitucionalização, com a finalidade de (re)inserir na comunidade pessoas com diagnósticos de transtornos mentais, egressas dos hospitais psiquiátricos. Este estudo qualitativo buscou analisar a percepção dos moradores em relação aos referidos serviços. Para tanto, participaram 31 moradores de 11 SRTs do interior do estado de São Paulo, realizaram-se entrevistas semiestruturadas que foram filmadas e transcritas na íntegra e submetidas à Análise de Conteúdo temática. Os temas que emergiram referem-se à satisfação, liberdade e novo núcleo familiar. Detectaram-se melhoras: na qualidade de vida, na ampliação das redes sociais, no fortalecimento do convívio comunitário e no enfrentamento do transtorno mental desses moradores.

Descritores: Serviços Residenciais Terapêuticos; Reabilitação; Saúde Mental; Psiquiatria.


ABSTRACT

The Residential Therapeutic Services (RTSs) are related to the Brazilian Psychiatric Reform and to the process of deinstitutionalization, and have the purpose of (re)integrate to the community people with mental disorders diagnoses, egresses from psychiatric clinics. This qualitative study aimed to analyze the residents’ perception  about these services. For that, we conducted a semi-structured interviews with 31 residents of 11 RTSs in the inner of São Paulo state, semi-structured interviews were filmed, fully transcribed and analized with thematic content analysis. The themes that have emerged refer to satisfaction, freedom and new family. Improvements were detected: in the quality of life, in the social networks expansion, in the strengthening of community life and in coping with mental disorder of these residents.

Descriptors: Residential Therapeutic Services; Rehabilitation; Mental Health; Psychiatry.


RESUMEN

Los Servicios Residenciales Terapéuticos (SRT) están vinculados a la Reforma Psiquiátrica Brasileña y al proceso de desinstitucionalización, intentando (re)insertar en la comunidad las personas con diagnósticos de trastornos mentales, egresados de los hospitales psiquiátricos tradicionales. Este estudio cualitativo buscó analizar la percepción de los residentes en relación a dichos servicios. Por lo tanto, se realizaron entrevistas semiestructuradas a 31 residentes de 11 Servicios Residenciales Terapéuticos en el estado de São Paulo, se realizaron entrevistas semiestructuradas que fueron filmadas y transcritas en su totalidad y sometidas al Análisis de Contenido temática. Los temas que surgieron se refieren a la satisfacción, la libertad y el nuevo núcleo familiar. Se han detectado mejoras: en la calidad de vida, en la ampliación de las redes sociales, en el fortalecimiento de la convivencia comunitaria y en el enfrentamiento del trastorno mental de esos moradores.

Descriptores: Servicios Residenciales Terapéuticos; Rehabilitación; Salud Mental; Psiquiatría.


 

 

Introdução

A vida no manicômio resultou na privação do convívio social por anos, para inúmeras pessoas impedidas de participar dos espaços sociais e exercerem seu direito à cidadania. Ali viveram por serem considerados "loucos" e, assim, perderam o que o homem tem de mais precioso: sua liberdade, o direito de ir e vir e fazer escolhas. Com a desinstitucionalização haveria uma oportunidade de vida melhor, com dignidade e esperança. Para que isso ocorresse, novos dispositivos para o tratamento passaram a ser implementados, dentre eles os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs).

Os SRTs constituem uma ponte entre a pessoa até então enclausurada e a sociedade para a qual está retornando, oferecendo o que deveria ser comum a qualquer pessoa: os direitos e deveres de cidadão. Também apresenta-se o desafio de (re)aprender a conviver em sociedade, pois, depois de anos enclausurados e tratados de forma desumana, esses indivíduos necessitam retomar algumas habilidades sociais, como os cuidados com higiene pessoal, alimentação, tratar com dinheiro, atravessar a rua, organizar sua própria casa e relacionar-se com outras pessoas. Há de se quebrar o preconceito de toda uma sociedade que aprendeu que lugar de "louco" é trancado no hospício. Isso se constitui em uma tarefa complexa, pois, como Foucault(1) analisa, a verdade sobre a loucura é socio-historicamente construída.

O nome "Serviço Residencial Terapêutico" foi oficializado pelo Ministério da Saúde brasileiro no ano de 2000, por meio das portarias 106 e 1.220, que tratam da organização, funcionamento e financiamento dessas residências com a finalidade de incluir na sociedade pessoas com diagnósticos de transtornos mentais e egressos de hospitais psiquiátricos. Os SRTs, também comumente chamados de ‘residências terapêuticas’ ou, simplesmente, ‘moradias’, são casas localizadas preferencialmente no espaço urbano, nas quais se devem respeitar as necessidades, gostos, hábitos e dinâmicas de seus moradores. De fato, conforme as portarias mencionadas(2-3), a inserção de um usuário em um SRT é o início de um longo processo de reabilitação psicossocial que deverá buscar sua progressiva inclusão na sociedade.

Esse processo deve buscar a construção da cidadania e também da contratualidade com três importantes cenários: a casa, o trabalho e a rede social(4). De forma progressiva são ocupados: serviços públicos, organizações, espaços privados e relações com a comunidade (vizinhos, comércio local, etc.).

Estar em casa, envolver-se na/com a vizinhança é de suma importância para o processo de reconstrução de identidades – dilapidadas pela institucionalização vivida – e de (re)significação das conveniências cotidianas, nas quais o sujeito significa-se frente ao outro(5, 6).

Ana Pitta, ao falar sobre Reabilitação Psicossocial, traz-nos a ideia de um processo que destaca as partes mais saudáveis e as potencialidades do indivíduo, com uma modalidade compreensiva, com um suporte vocacional, residencial, social, recreacional, educacional, respeitando a singularidade de cada indivíduo(7).

O papel dos SRTs e da reabilitação psicossocial será melhor desenvolvido  "se houver horizontalização das relações entre usuários e serviços, em presença permanente de diálogo e interação grupal, como fator facilitador da conquista, pelo usuário, de sua autonomia"(8).

Assim, esta pesquisa diz respeito às impressões que os moradores têm sobre os SRTs, e o que mudou em suas vidas como usuários dos serviços. Dessa forma, seu objetivo foi analisar a percepção dos moradores em relação aos referidos serviços.

Tal objetivo justifica-se uma vez que a revisão bibliográfica, realizada durante a produção da tese de doutorado da qual este artigo é fruto, evidenciou a prevalência em pesquisas atuais da investigação desses serviços centradas mais na observação dos sujeitos e contextos(9,10) ou pela perspectiva dos profissionais(11), em detrimento do olhar dos próprios moradores(12). Faz-se importante dar voz a esses sujeitos, pois chega a causar estranhamento o fato de pesquisas e trabalhos fundamentados na Reabilitação Psicossocial pouco explorarem essa autonomia para o falar de si.

 

Método

Trata-se de um estudo transversal de natureza qualitativa devido à forte aproximação com o campo social, o que confere importância à subjetividade dos atores envolvidos em uma realidade em constante transformação.

Participaram do presente estudo 31 moradores de 11 SRTs situados em nove cidades do interior do estado de São Paulo, Brasil

Inicialmente, foi realizado um levantamento na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP), Brasil, de todos os SRTs ali existentes. Foram encontrados 45 municípios com SRTs, perfazendo um total de 49 serviços, pois haviam municípios com mais de um desses serviços(13). O critério de inclusão para seleção dos SRTs foi seu tempo de funcionamento, ou seja, o serviço deveria estar em funcionamento regular há, pelo menos, 10 anos. Dos 49 SRTs, 26 atendiam ao critério. Cada serviço a ser estudado foi sorteado para que não houvesse preferências.

A partir da listagem dos serviços sorteados, foi realizado um primeiro contato com os profissionais por meio de telefonemas nos quais combinamos os dias e horários para as visitas e entrevistas. No dia agendado, visitamos os referidos serviços e o profissional já aguardava a pesquisadora no local. Ao ser apresentada aos moradores deu-se um diálogo informal, estabelecendo um vínculo e informando sobre a pesquisa, o tempo e os procedimentos que se realizariam com o equipamento de gravação e filmagem. Em seguida, foram convidados aleatoriamente os moradores para participar da pesquisa.

Os critérios de inclusão dos participantes foram: o aceite ao convite aleatório, no sentido de evitar-se o risco de preferência de moradores bem adaptados ao serviço. Destaca-se que estabelecemos o mínimo de dois moradores para cada residência, havendo residências que mais de dois moradores interessaram-se em participar.

Para a amostragem dos participantes, adotamos a estratégia de saturação dos dados, definida por suspender a inclusão de novos participantes quando os dados coletados, na visão do pesquisador, mostram uma redundância, uma certa repetição, assim não sendo mais considerado relevante continuar a coleta(14). Dessa forma, iniciaram-se as entrevistas com os moradores do primeiro SRT sorteado e assim sucessivamente; ao término de nove SRTs visitados, observou-se a saturação das informações, sendo empreendidas, então, mais duas visitas que confirmaram tal saturação. Logo, foram incluídos no estudo 11 desses serviços, totalizando 31 participantes, sem recusas.

As principais características sociodemográficas dos participantes podem ser conferidas na Tabela 1.

 

 

Utilizamos técnicas de entrevistas semiestruturadas filmadas. Este tipo de instrumento consiste numa técnica utilizada para orientar uma conversa com uma finalidade específica, com interação direta entre o pesquisador e os atores sociais, partindo da elaboração de um roteiro com perguntas abertas em que o entrevistado discorre livremente sobre o tema proposto(15). As entrevistas seguiram um roteiro sobre a relação do morador com os SRTs e abordaram questões referentes ao dia a dia dos moradores na casa, suas ocupações, relações com outros moradores, com a família e a comunidade.

Após o contato, organizamos um local adequado para evitar acidentes nas gravações e filmagens. As entrevistas foram realizadas individualmente pela pesquisadora (psicóloga de nível mestrado) nas próprias casas dos moradores dos SRTs e gravadas em áudio e vídeo. Cada entrevista teve tempo médio de duração de uma hora e meia.

Para a análise da entrevista, foi realizada uma transcrição das falas e utilizado o método de Análise de Conteúdo Temática, que se organiza da seguinte forma: uma pré-análise; a exploração do material; e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação, procurando nas expressões verbais ou textuais os temas gerais mais recorrentes e ou relevantes, apontando os núcleos de sentido, os quais possuem algum significado para o objetivo da pesquisa(16).

Na primeira fase, deu-se a organização, a pré-análise pela leitura flutuante, estabelecendo contato com o material e conhecendo o texto. Daí surgiram impressões e orientações. Na segunda fase, a exploração do material, descobrimos os núcleos de sentido, realizando os recortes dos textos. No terceiro momento, tratamento dos resultados, transformamos os dados brutos em síntese do conteúdo, iniciamos a categorização dos dados. Essas categorias foram agrupadas de acordo com as falas que possuíam significados da mesma ordem; esse processo deu-se por meio da inferência do pesquisador (16). Por não ser de interesse desta pesquisa a quantificação da frequência com que cada palavra ou tema apareceu, agrupamos as falas dos entrevistados por temas com o mesmo significado, constituindo as categorias temáticas. Para a interpretação, utilizamos a relação entre os dados obtidos e a Reabilitação Psicossocial.

O projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, protocolo CAAE: 27369614.9.0000.5393, e atende às normas estabelecidas pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. A todos os participantes foram explicados os objetivos da pesquisa e realizada a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para garantia do anonimato, foram atribuídos nomes de pedras preciosas aos participantes para apresentação de seus dados.

 

Resultados e Discussão

A desinstitucionalização caminha junto com a cidadania, alguns desses direitos que envolvem o ser cidadão são retratados nas três categorias temáticas de nossa pesquisa, o direito de ir e vir, de fala, de moradia, saúde, lazer, alimentação, transporte e outras. Tais categorias foram definidas a partir das respostas dos moradores durante a entrevista, baseadas nas impressões dos moradores sobre os SRTs, sendo: satisfação, liberdade e novo núcleo familiar.

 

Satisfação

Muitas das falas expressam a sensação de satisfação por parte dos moradores quando referem-se às residências. Essa palavra carrega sentidos interessantes, relacionados a contentamento, prazer pela realização de algo, ou mesmo de reparação por um mal causado a alguém ou algo. Podemos estar satisfeitos, podemos satisfazer ou dar satisfação sobre algo. Mas também surgiram em nossas entrevistas aqueles que não estão satisfeitos com as SRTs. Assim, vejamos alguns dos recortes:

Eu gosto de morar lá. (...) porque na casa não falta nada é uma casa boa entendeu (...) a casa é boa, a casa é limpa, a casa é direita, não tem queixa (...) (Zircão).

Aqui é bom, muito bom. Aqui tem tudo que eu quero, meu cigarrinho, a casa é boa, todo mundo é bom, não tem o que se preocupá, não tenho reclamação nenhuma. (Fluorita).

Acho legal. É uma residência onde mora as pessoas, a gente mora e faz atividade, a casa é nossa (...), tem faxineira que a gente paga pra limpá. (Diamante).

Ali tem tudo de bom, não tem nada de ruim. O importante é você ter uma casa pra morar. É melhor você morar numa casa do que ficar na chuva né, sem um teto né? (Rutilio).

É o tratamento, tô me recuperando, estão tratando de mim, eu tenho que fazer o que a casa manda, eu tenho que obedecer, a casa tem leis, o país tem leis, todo lugar tem leis, no céu tem leis, todo lugar tem lei. (Olho de Tigre).

Aqui a relação é boa, o abrigo é bom, eu gosto de ficar aqui, tem de tudo. Tem banhozinho quente, roupinha lavada, é bom. (Rubi).

Emergem como principais razões de satisfação desses moradores: ter o que fazer; a limpeza da casa; a "bondade" da casa (das pessoas); e a organização.

Daniela Arbex(17) conta-nos a história do Colônia, considerado o maior hospício do Brasil, localizado em Barbacena/MG. E no início do livro encontra-se a seguinte descrição ao narrar a chegada de Marlene Laureano para seu primeiro dia de trabalho no hospício:

"Um cheiro insuportável alcançou sua narina. Acostumada com o perfume das rosas do escritório da Brasil Flowers, onde passou por sua única experiência profissional até aquele momento, Marlene foi surpreendida pelo odor fétido, vindo do interior do prédio. Nem tinha se refeito de tamanho mal-estar, quando avistou montes de capim espalhados pelo chão. Junto ao mato havia seres humanos esquálidos. Duzentos e oitenta homens, a maioria nu, rastejavam pelo assoalho branco com tornozelos pretos em meio à imundície do esgoto aberto que cruzava todo o pavilhão. Marlene sentiu vontade de vomitar"(17).

Tal realidade era regra nas instituições do tipo, onde os participantes da pesquisa passaram bom tempo de suas vidas.

Assim, podemos entender por que surgem, nas falas dos moradores, referências à limpeza, à faxineira, ao banho quente, à roupa lavada, enfim, à organização, (re)invenção da vida cotidiana(5). Há uma manifesta satisfação por estarem limpos, em locais limpos e aparelhados com o necessário para suas vidas, necessário para a (re)construção identitária que havia sido destruída.

Em contrapartida da satisfação com o serviços, apresentamos dois moradores com grande insatisfação em relação ao local de moradia; percebemos que suas falas não demonstram vínculo com o local nem com os profissionais que ali atuam.

Eu tenho casa (...). Eu gosto das pessoas, mas não gosto da casa. Agora onde eu moro eu gosto da casa e das pessoas. Aqui eu só gosto das pessoas não gosto da casa. (...) aqui não tem amor, é uma casa sem amor, na minha casa tem (...) eles só veem as pessoas e vão embora, trocam,  fazem turno. (Madripérola).

Essa casa é número 16, é uma casa da pós-guerra, não vale nada. Eu não gosto. (...) eu só sozinho eu quero é ir embora pro Rio, meus amigos é do Rio, eu morei em baixo da ponte 40 anos, eles arrancaram a ponte (...) (Jade).

Madripérola declara o desejo de viver com a família, pois, em seus dizeres que reproduzem o que o senso comum propaga, não haveria lugar melhor no mundo que o aconchego familiar, onde poderíamos ser nós mesmos, temos intimidade com a casa e as pessoas, etc.(5)

Mângia e Ricci(8), pesquisando o projeto "Pensando o habitar: trajetórias de usuários de Serviços Residenciais Terapêuticos do município de Santo André (SP)", encontraram os desejos dos moradores de ter casa própria ou de retornar à família de origem, assim trazendo uma reflexão sobre o papel dos SRTs e a necessidade de projetos terapêuticos mais participativos e dinâmicos.

Jade é sozinho, não tem família, e demonstra seu desconforto em relação à casa, pois, por quarenta anos, teve suas relações construídas na rua, embaixo de uma ponte que foi destruída. E quanta simbologia há nessa imagem da ponte. Aquilo que representava o espaço de conexão dele, de ligação com o outro, foi colocada a baixo.

Um filme que ilustra muito bem essa situação é "O solista", que fala de um violoncelista que vive na ruas de Los Angeles/USA e com a ajuda de um jornalista que o conhece embaixo da ponte, quando seu carro quebra, passa a participar de um serviço social e é contemplado com uma moradia, com a perspectiva de que morar nesses apartamentos, voltar a tocar seu instrumento e ter seus vínculos familiares resgatados seria a melhor opção para o morador de rua. Porém, o desenrolar da história (baseada em um fato real, contado em uma biografia) mostra que fora na rua que suas relações sociais se constituíram; onde ele conseguia exercer um poder contratual(4) com outros moradores de rua, e naquele habitar ele se sentia bem, não se adequando à nova moradia dita "normal".

Tal caso, relacionado à fala de Jade, evidencia a importância de se ouvir o usuário do serviço para a (re)construção de sua cidadania. Evitando-se, assim a reprodução da lógica institucionalizante. Provavelmente desta lógica emerge a referência à casa não como morada, mas como um número.

 

Liberdade

Esta categoria envolve os dizeres que, de alguma forma, materializam sentidos a respeito da liberdade que os moradores experimentam vivendo nas casas dos SRTs. A liberdade é sempre relativa, mesmo para aqueles ditos "normais"(1,18). E nem sempre a liberdade será sinônimo de algo positivo. Libertar não pode inserir-se na lógica do abandono, uma vez que tratamos de sujeitos que tiveram suas identidades e suas redes sociais contratuais em muito prejudicadas.

Aqui a gente tem toda liberdade, vai, sai, vai pra cidade passear, tomar um refrigerante. Eu vou e volto de circular. Aqui tem televisão, escuto rádio, vou nos bar tomá refrigerante, tomá sorvete, tem a Igreja, aí de vez em quando tem missa lá. (Granada).

(...) aqui eu saio de manhã vou fazer encaminhada, faço encaminhada todo dia de manhã, aí saio vou lá na igreja, assim... dia de domingo. Tem uma vizinha aqui em baixo, mãe do Z., tem outra amiga que eu vou passear na casa dela também. (Turquesa).

Tá muito bem, pra mim tá muito bem. Eu participo do CAPS, vou no CAPS fazer as atividades. As compras que eu faço de roupa é eu que faço. (Magnetita).

Notamos nas falas de Granada, Turquesa e Magnetita que o exercício do ir e vir funciona no processo de reabilitação a partir de uma significação das atividades cotidianas baseada na práxis, ou seja, na vivência das saídas mais corriqueiras que possibilitam a retomada de contratualidades perdidas, as contratualidades com o meio que os cerca desde a casa – ver televisão, escutar o rádio – passando pela retomada do bairro como espaço de contato e conveniência das relações interpessoais(6) – ir ao bar, à igreja, relacionar-se com os vizinhos – chegando a atividades mais complexas – usar o transporte público, ir ao CAPS, fazer compras(4). Por isso a legislação preconizar que as moradias estejam inseridas no espaço urbano(2,3).

Liberdade implica responsabilidade consigo mesmo, com as pessoas e as coisas; responsabilidades do cotidiano com a casa, com pagamentos, com o bem-estar, com as compras; responsabilidades inerentes ao próprio ser humano, social(5).

O SRT passa a representar um lugar propício para operar a reinserção na vida comunitária, daqueles que buscam retomar sua história de vida, sua rotina diária de cidadão livre, com diferenças individuais e demandas próprias para seu ambiente habitacional(9).

Silveira e Santos Júnior(11) relatam que ser cidadão não implica apenas em ter direitos, mas, sim, um processo ativo e contínuo da capacidade de autonomia e liberdade, em que a loucura não significa limitação e incapacidade. Magnetita lembra das atividades no CAPS, o que exemplifica a responsabilidade da busca pelo seu tratamento. Como destacado na introdução, progressivamente os moradores vão reconquistando os espaços públicos, privados e reconstruindo seu estar no mundo sendo imprescindível o apoio e ação dos profissionais envolvidos no processo de reabilitação(4,8).

 

Novo núcleo familiar

Notamos, com as falas a seguir, a formação de um novo núcleo familiar dentro das casas, o convívio entre os moradores, o acolhimento, o cuidado entre eles, o compartilhar de objetos, o desenvolvimento do poder de contratualidade, a troca de experiências, a afetividade, as discussões, são características marcantes de uma família e estão presentes no cotidiano dos SRTs pesquisados.

Aqui é uma família. (Esmeralda).

Ela pinta minha unha eu empresto esmalte pra ela pintar a unha dela. (...) É uma delícia aqui. Considero como minha família. (Ágata).

Nós se damo muito bem aqui, eu, meus companheiro, os colega que mora comigo. A empregada, eu me dou muito bem, não só eu como os colega que mora aqui. Ela cuida bem de nois. (Opala).

Aqui nessa casa é como eu digo sobre as rosas e os espinhos, mas a maioria é gente boa que me compreendeu. (Turquesa).

Tenho amizade com as meninas, converso com elas, a gente se combina, nunca brigo, a gente se dá bem, uma faz uma coisa, outra faz outra. (Ametista).

Nas relações com os companheiros(as) percebemos muito respeito entre os pares na maioria das falas, uma fala muito superficial, sem relatar como é de fato essa relação, mas, uma fala muito coerente, de Turquesa, que faz notar uma naturalidade em sua expressão, remete à ideia de uma família como outra qualquer com seus amores e desamores. "Sabe-se que as relações intersubjetivas são tecidas por laços, mas também atravessadas por nós. Estreitar os laços e desatar os nós é um desafio constante na vida cotidiana"(12) e, portanto, da reabilitação.

A família é fundamental no processo do viver. "Ela não é formada apenas por um conjunto de pessoas, mas pelas relações e ligações entre elas"(10). Por isso, podemos dizer que as residências terapêuticas podem constituírem-se em novos núcleos familiares, uma vez que a vida ganhe significação a partir de vínculos de afeto e cooperação, de compartilhamento de vivências constituídos em seu contexto(9).

 

Conclusão

Esses serviços, que lutam para não terem "cara" de serviços, principalmente de saúde, buscando ser o mais próximo possível de uma casa comum na comunidade, trazem a possibilidade de reconstruir e (re)significar vidas, de morar e habitar casas, de criar novas subjetividades e sujeitos mais autônomos e livres, com direitos e deveres de cidadão e, principalmente, de retomada da dignidade. Essas casas/serviços são lugares de proteção, de contratualidade, de afeto e se transformaram, para muitos, num novo núcleo familiar, por mais que hajam conflitos – comuns nos diversos espaços ditos "normais" –, ali podem se sentir amados, acolhidos, sentimento de cuidado um com o outro desenvolvendo-se e aprendendo a conviver com respeito.

Os moradores deixam seu recado: os SRTs trouxeram benefícios para a vida deles, mesmo com as melhorias que precisam ser feitas, ainda que para eles passem despercebidas; em suas falas encontramos a predominância de coisas positivas. Claro que não agradaria a todos. Temos as queixas de dois moradores, um por ser morador de rua por 40 anos e ter o desejo de voltar para a ponte onde morou e rever seus amigos e outro procura o amor familiar que, ao seu ver, só a família de origem pode oferecer.

Fazendo um paralelo entre como era a vida deles dentro do hospital psiquiátrico, todos os SRTs realmente trazem uma melhoria na qualidade de vida inquestionável no que diz respeito à estrutura física, higiene, alimentação, afetividade e assistência. Já no que diz respeito à Reabilitação Psicossocial, cada um está em um nível diferente de avanços, mas é fato que, a maioria, está em busca da tão sonhada "liberdade" e alguns precisando rever suas práticas. Mas, na perspectiva do morador, essas "pequenas" conquistas simbolicamente tem um grande significado, pois, com certeza, passar grande parte da vida sem ter um banho adequado, alimentação mínima básica, vestimentas próprias, poder de decisão das coisas mais banais do cotidiano, direitos, voz, paz, afetividade e amor, ou seja, necessidades básicas, são traumas difíceis de serem superados.

Os SRTs proporcionam um novo olhar voltado para essas pessoas; apenas de o serviço existir já há uma mudança de paradigmas. Oferecem, para a maioria, um novo núcleo familiar, a convivência com os colegas por anos faz com que essas pessoas construam afeto umas pelas outras, que cuidem um do outro, exerçam a contratualidade dentro de suas casas.

Obviamente, a vida não é só rosas, mas espinhos também, como qualquer família em qualquer parte do mundo. Os SRTs, segundo seus próprios beneficiários, trazem a esperança de uma vida melhor com mais tranquilidade e segurança.

 

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Recebido: 18.01.2016
Aceito: 23.01.2017

Correspondência:
Aline Cristina Dadalte
Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
Av. Bandeirantes, 3900
Bairro: Monte Alegre
CEP:14040-902, Ribeirão Preto, SP, Brasil
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1Artigo extraído de Tese de Doutorado "Serviços Residenciais Terapêuticos: da privação à liberdade" apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil.

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