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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.14 no.2 Ribeirão Preto abr./jun. 2018

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.000383 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.000383

 

A necessidade pelo acolhimento noturno em centro de atenção psicossocial: percepções da pessoa que usa drogas*

 

La necesidad de la acogida nocturna en un Centro De Atención Psicosocial: percepciones de la persona que consume drogas

 

 

Thyara Maia BrandãoI; Mércia Zeviani BredaII; Débora de Souza SantosII; Maria Cícera dos Santos AlbuquerqueII

IUniversidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas, Maceió, AL, Brasil
IIUniversidade Federal de Alagoas, Escola de Enfermagem e Farmácia, Maceió, AL, Brasil

 

 


RESUMO

OBJETIVO: apreender a percepção da necessidade de acolhimento noturno de pessoas assistidas em Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas 24 horas (CAPS AD 24h).
MÉTODO: abordagem qualitativa, com participação de 12 usuários com vivências de acolhimento noturno nesse serviço. Os dados foram coletados por entrevista, diário de campo e observação sistemática. A análise de conteúdo do tipo temática foi utilizada para tratamento, categorização e interpretação das informações.
RESULTADOS: revelaram que houve percepção da necessidade de acolhimento noturno diante da perda do controle sobre o uso de droga, dos prejuízos causados pela dependência e das dificuldades da vivência nas ruas.
CONCLUSÃO: sinaliza a necessidade de foco na atenção singularizada no acolhimento noturno e nos outros pontos da Rede de Atenção Psicossocial.

Descritores: Saúde Mental; Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Serviços de Saúde Mental; Acolhimento.


RESUMEN

OBJETIVO: comprender la percepción de la necesidad de la acogida nocturna de las personas asistidas en el Centro de Atención Psicosocial -Alcohol y otras Drogas 24 horas.
MÉTODO: enfoque cualitativo, con la participación de 12 usuarios con vivencias de acogida nocturna en este servicio. Los datos fueron recolectados por entrevista, diario de campo y observación sistemática. El análisis de contenido de tipo temático fue utilizado para el tratamiento, la categorización y la interpretación de las informaciones.
RESULTADOS: hubo percepción de la necesidad de acogida nocturna ante la pérdida del control bajo el consumo de drogas, los daños causados por la dependencia y las dificultades de vivir en la calle.
CONCLUSIÓN: se señala la necesidad de centrarse en la atención particularizada en la acogida nocturna y en los demás puntos de la Red de Atención Psicosocial.

Descriptores: Salud Mental; Trastornos Relacionados al Uso de Sustancias; Servicios de Salud Mental; Acogimiento.


 

 

Introdução

As pessoas com dependência pelo uso de drogas necessitam de novos projetos e dispositivos de cuidado em saúde que ultrapassem o enfoque na abstinência e na internação, respeitem suas subjetividades, singularidades, considerem a potência dos sujeitos e sejam produtores de vida.

No Brasil, a Política de Atenção ao Álcool, Crack e Outras Drogas vem tecendo uma rede de serviços que atua nos princípios da redução de danos e da atenção psicossocial. Um dos pontos estratégicos de atenção dessa rede é o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas 24 horas (CAPS AD 24h), serviço extra-hospitalar em que o acolhimento noturno apresenta-se como tecnologia de cuidado às pessoas com necessidades de atenção decorrentes do uso de substâncias psicoativas(1-4).

O CAPS AD 24h é componente da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), em substituição às internações hospitalares. Proporciona atenção integral, comunitária e contínua às pessoas com necessidades decorrentes do consumo de drogas. Nos casos em que a pessoa se encontra em períodos críticos que exijam maior atenção, pode permanecer em acolhimento noturno até catorze dias seguidos, considerando-se um espaço de tempo de trinta dias(5).

Nesse serviço, o acolhimento noturno representa a oportunidade de acompanhamento contínuo, com estadia diurna e noturna. A pessoa é inserida em um plano de cuidados, pois é um momento em que busca ajuda e, em geral, apresenta a intenção de dialogar com a equipe de saúde(6).

Acolhimento noturno apresenta um diferencial no formato institucional, pois se traduz em práticas guiadas pela concepção teórica da desinstitucionalização e da clínica ampliada. Ele provoca uma reorganização do processo de trabalho no cotidiano dos profissionais desse serviço, em que são criados novos sentidos de cuidado(7).

Para tanto, enquanto vertente do acolhimento, preza pela liberdade e contato interpessoal, consistindo em ação de aproximação, "um estar com" e "estar perto de", uma atitude de inclusão. Essa ação de acolher pode ser descrita como uma tecnologia do encontro, de conversação afirmadora de relações, de potência nos processos de produção de saúde e que se estende para todos os locais e tempos do serviço de atenção psicossocial(8).

Considerando o papel protagonista do sujeito e a escassa produção científica que ofereça voz à pessoa cuidada que faz uso nocivo de drogas, o objetivo do estudo é apreender a percepção sobre o acolhimento noturno de pessoas assistidas em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas 24 horas.

 

Método

Trata-se de pesquisa qualitativa, descritiva, de caráter exploratório. A pesquisa qualitativa caracteriza-se pela compreensão dos fenômenos a partir de símbolos ou significados atribuídos a eles(9). Essa modalidade metodológica mostrou-se a mais adequada por possibilitar a descrição do acolhimento noturno, ainda pouco explorado, buscando desvendar significados e intencionalidades das expressões verbais e gestuais dos sujeitos em questão.

O cenário de estudo foi o Centro de Atenção Psicossocial Àlcool e Outras Drogas de uma capital brasileira. Fundado em 2006, o serviço enquadra-se na modalidade 24 horas de CAPS AD desde 2013, e conta com equipe multiprofissional de saúde. O serviço realiza, dentre outras atividades, o acolhimento noturno, diante de situações de risco social ou de recaída do uso, bem como em casos que necessitem de permanência no serviço. Nessa modalidade de atendimento, o usuário passa até 14 dias seguidos no serviço, tempo em que também irá dormir no período noturno. O serviço disponibiliza 14 leitos, sendo 7 masculinos, 5 femininos e 2 infantojuvenis.

A coleta de dados foi realizada no CAPS AD 24h no período de janeiro a março de 2015. A produção da informação foi obtida por meio de triangulação de entrevista individual em profundidade, diário de campo e observação sistemática. A triangulação configura-se um empenho para aprofundar a compreensão do fenômeno estudado buscando um maior rigor metodológico ao utilizar-se de três ferramentas distintas de apreensão de dados(10).

As entrevistas foram norteadas por um roteiro com 25 questões, distribuídas em 6 seções: Dados de identificação; Motivos da busca pelo acolhimento noturno em CAPS AD; A chegada ao acolhimento noturno; A vivência do acolhimento noturno em CAPS AD; O acolhimento noturno e a enfermagem, e Outros relatos importantes. Cada entrevistado escolheu o local do serviço em que se sentiu mais à vontade para contribuir com este estudo, sendo assegurada a sua privacidade. Eles foram encorajados a narrar os seus pontos de vista sem nenhuma interferência ou julgamento. As entrevistas duraram em média 80 minutos, foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra.

A observação sistemática foi guiada por um roteiro para registro das manifestações não verbais dos entrevistados, como expressões faciais, modulação de voz, movimento corporal, choro, risos, pausas. Um diário de campo foi utilizado para registro das impressões pessoais da entrevistadora sobre os conteúdos da observação sistemática, o funcionamento e as rotinas dos CAPS AD 24h, as cenas e as ocorrências que possibilitaram apreender o fenômeno investigado. As anotações foram feitas a próprio punho, em seguida digitadas e consolidadas.

A Análise de Conteúdo(11) do tipo temática foi utilizada para tratamento, codificação, categorização e interpretação do material empírico. Seguiram-se as etapas(11): 1) Pré-análise, 2) Exploração do material e 3) Tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Na primeira etapa, após leituras repetidas, o material foi organizado com o objetivo de torná-lo operacional, sistematizando as ideias iniciais. Na segunda etapa, realizaram-se recortes das falas e registros significativos e repetidos, buscando-se identificar e classificar as unidades de registro e contexto, de maneira a categorizar os dados em temas explicativos do objeto de estudo – percepção do usuário sobre a necessidade do acolhimento noturno. Por fim, na terceira etapa, os temas e seus conteúdos foram interpretados criticamente à luz da literatura.

O processo interpretativo foi amparado pelos referenciais teóricos da Política Nacional de Saúde Mental e de Atenção ao Uso de Crack, Álcool e Outras Drogas(4-5,12).

Os temas oriundos da análise revelaram que a percepção dos usuários sobre a necessidade de acolhimento noturno, no CAPS AD 24h, ocorreu mediante: I. A perda de controle do uso da droga; II. Os prejuízos trazidos por esse uso; e III. A vivência em situação de rua.

A identidade dos participantes foi preservada, assegurando o sigilo requerido nas pesquisas com seres humanos. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, parecer consubstanciado nº 937.076.

 

Resultados

Os sujeitos da pesquisa foram 12 pessoas usuárias do serviço e que cumpriam os critérios de inclusão: maiores de 18 anos, histórico de uso dependente de substâncias psicoativas, em acompanhamento no serviço, com vivência de acolhimento noturno, que não apresentassem sinais e sintomas de abstinência, como comportamento agressivo e dificuldades de expressão pela linguagem.

Os participantes tinham idade entre 24 e 57 anos, 7 pertenciam ao sexo masculino, 5 eram mulheres e 1 encontrava-se gestante. Quanto à escolaridade, 9 apresentavam primeiro grau incompleto e 3 concluíram essa fase de ensino. Em relação à ocupação, 11 não exerciam qualquer atividade laboral e 1 mulher trabalhava com artesanato de forma autônoma. Sobre o estado civil, 6 declararam-se solteiros, 4 mantinham-se em união estável, 1 era casado e 1, divorciado. No que se referiu à moradia, metade dos entrevistados residia em domicílios de bairros periféricos com a família, enquanto os demais encontravam-se em situação de rua, sendo que apenas 2 destes contavam com pernoite em albergues. Todos relataram buscar o serviço por livre e espontânea vontade, diante do incentivo da família e de profissionais do Consultório na Rua e/ou do próprio CAPS AD 24h.

Percepção da perda de controle do uso de drogas: necessidade de ajuda

Nos relatos sobre a procura por acolhimento noturno, os entrevistados descreveram uso constante de drogas, o que vinha produzindo danos, pois não conseguiam mais ficar sem a substância. Relataram a necessidade de ajuda, descrevendo que o uso lhes tomava grande parte do tempo da vida diária, prejudicando a saúde.(...) Eu estava bebendo direto, desde o Natal, aí eu bebia todo dia. Todo dia bebendo, eu percebi que precisava de ajuda (E1); Eu já não tinha mais força, no controle sobre a droga, tinha chegado já no fundo do poço, considerado fraco... Então estavam inaugurando esse 24 horas [CAPS AD Tipo III] (E3); Eu estava muito debilitado, porque eu não estava mais aguentando a vida que eu estava levando, não tinha controle sobre a bebida. Precisava de ajuda (E6); Eu estava muito em uso, o crack, maconha, cachaça, estava usando demais (E7).

A percepção da necessidade de ajuda levou parte dos entrevistados a buscar o serviço por conta própria: Decidi vir; eu já estava consciente de que precisava de internamento e de tratamento (...) (E2); O que me levou a decidir foi a vontade de viver, não foi porque ninguém me obrigou a decidir, não, foi porque eu tive vontade de reviver (...) (E5); Vim pela minha própria vontade, me indicaram, eu procurei, me aceitaram (E6); Eu pedi, eles me encaminharam para a psiquiatra e eu fiquei 15 dias. Foi a oportunidade que eu tive, né? (E10).

As falas evidenciam que a percepção da perda de controle do uso de substâncias e a vontade de viver levaram os entrevistados a buscar o acolhimento noturno no CAPS AD 24h, por iniciativa e aceitação própria, quando se percebeu a oportunidade de mudança.

O movimento de busca pelo serviço acontece como resposta à situação de dependência e prejuízo que marca a vida das pessoas que usam drogas, impulsionado pelo esforço por encontrar saídas para superação da dor e do sofrimento.

Percepção da dependência: prejuízos e saídas

Se, por um lado, a percepção dos prejuízos físicos, emocionais e materiais decorrentes do uso de drogas gera depauperamento, dor, vergonha, exclusão e perda do sentido de viver, por outro, impulsiona nas pessoas entrevistadas a busca por uma saída. A dependência do crack estava me trazendo muito prejuízo, de dinheiro, saúde, materiais, físico, tudo (...). Horrível! Fiquei depressivo; eu entrei em depressão (...) No começo do meu vício, eu tentei me suicidar duas vezes [...]. Eu fiz muita besteira, vendi tudo de dentro de casa, vendi minha moto, deixei mulher, deixei mãe, abandonei a vida (...) (E2); A família se afastando, os amigos; a comunidade foge da pessoa, se afasta. Aí o cara vai ficando triste, sozinho; me vi dentro de um buraco. Não tinha mais nada para eu me segurar, nem família nem amigo, nada. (...) Eu me acordei um dia e não tinha nada para comer, tive que catar lixo, comer pão do lixo (E7); Foi tudo ilusão, passou, deixou sequelas, e quando eu vim olhar, já estava afundado, já tinha destruído família (...) Não tinha mais jeito, para mim o jeito era só a morte (...) Você perde tudo que você construiu em tantos anos, então vim para cá, queria sair dessa (E3).

O sentimento de perda acompanha a pessoa com dependência química de forma profunda em várias esferas da vida, especialmente nas relações afetivas. A perda dos vínculos com a família e amigos é citada com pesar e culpa, por ser resultado de erros ("besteiras") realizados para sustentar o uso.

Ausentes de seus núcleos afetivos de relações, as pessoas entrevistadas veem no acolhimento noturno uma possibilidade de mudança. O serviço possibilita o afastamento, mesmo que temporário, da rua e de suas condições degradantes.

Vivência em situação de rua

A percepção da condição de vulnerabilidade social, marcada pela violência a que estão expostos ao viver em situação de rua, gera o medo e também o desejo de uma vida mais segura e saudável. A experiência demonstra que o uso de drogas pode levar a pessoa a viver na rua ou vice-versa e, em ambas as situações, existem serviços sensíveis que são acessados, como o CAPS AD 24 horas, lócus deste estudo.

Na rua, ainda que em condições de vulnerabilidade, há a busca por acolhimento noturno, principalmente quando mediada por profissionais do Consultório na Rua (CnaR). Eu quero tentar uma outra vida (...) Muitas mortes. Na minha frente eu vi três colegas minhas morrer, duas foi de tiro e a outra foi de faca, na rua. Por conta da droga (E11); Foi a minha escolha para a droga que me levou para a rua (...) É uma falsa forma de viver (E3); Meu irmão! Olha onde eu estou? Pão no lixo que eu nunca comi! (...) Eu não queria perder a minha família assim dessa forma, de voltar para a rua, aí eu vim para aqui (E7); Cheguei toda ponteada, eu não vim nem por causa dos pontos, eu vim porque eu decidi ficar. Mas se eu não quisesse, eu não teria ficado (...) (E12).

Soma-se ao fato de viver na rua o desejo de uma nova vida. A mediação de um profissional do CnaR ou CAPS AD para decidir buscar ajuda e ser resgatado de situações cruéis também aparece como necessidade. De toda a forma, a decisão é sempre particular e depende do querer e da força em cada um. Procurei a coordenação de rua (Consultório na Rua), aí resolveram (E8); O fulano (trabalhador do CAPS AD) veio e conversou comigo, se eu queria ajuda, mais uma vez, que dessa vez eu fizesse diferente, eu aceitei, aceitei não, eu tomei a decisão. Me chamaram e eu aceitei (E3); (...) Eu recaí, foram me buscar, me resgataram (...) Às vezes nem dormia, amanhecia o dia, me prostituindo para ganhar o dinheiro da droga (...) (E9); Vim por espontânea vontade, ninguém me pediu para me trazer, ninguém me trouxe forçado, só me disseram "olha, tem um tratamento, quer ir não olhar?". Eu vim (E11).

A rua se mostra um local em que a dependência pelo uso de droga é aprofundada, e os riscos relacionados à manutenção da integridade física são agravados. Nesse contexto de luta pela vida, serviços de apoio psicossocial atuam como instrumentos abertos ao acolhimento, orientação e "resgate" da pessoa em sofrimento pelo uso de drogas.

 

Discussão

A percepção da perda do controle sobre o uso de droga e da necessidade de ajuda, que culminou, entre os entrevistados, na busca pelo acolhimento noturno em CAPS AD 24h, evidenciou um padrão de uso nocivo. O uso nocivo de substância química se caracteriza pelo desenvolvimento de tolerância, esforço ineficiente em reduzir ou controlar o uso e a presença de sinais e sintomas de abstinência(13).

Os entrevistados definem, em suas falas, o serviço de acolhimento noturno como internação, mesmo não sendo essa a proposta nem a terminologia usada pelo CAPS AD 24h. Essa percepção, provavelmente, se deve à permanência exclusiva do usuário em local em que ainda prevalecem processos de trabalho que se assemelham ao de uma unidade hospitalar, ainda que em curto período, aberto a visitas e participação em atividades grupais externas. Segundo as políticas nacionais de atenção psicossocial, o acolhimento noturno em CAPS AD 24h se configura como modalidade provisória e intensiva de atenção psicossocial, de modo que oportuniza o cuidado às pessoas que, em situações de uso nocivo ou em crise por abstinência de drogas, procuram ajuda nesse serviço. Esse cuidado é acompanhado por equipe multidisciplinar, focado na redução de danos e na busca pela atenção integral e humanizada ao usuário acolhido(5).

A percepção de uma forma de uso nocivo levou os entrevistados a procurarem o CAPS AD 24h diante das perdas afetivas e materiais, da solidão, da falta de apoio e em situações difíceis, como não ter o que comer ou querer dar fim à própria vida.

A condição de dependência que vai se estabelecendo, somada à perda do controle sobre o uso, gera comprometimento das habilidades sociais, como a de enfrentar as situações difíceis, resultando em prejuízos físicos e emocionais, ao ponto de, não raras as vezes, desenvolver ideias suicidas(14).

Muitos são os danos acumulados diante do consumo de drogas, entretanto, seus malefícios muitas vezes são apenas percebidos com a instalação da dependência física e/ou psíquica da substância em questão e quando essa dependência provoca a desagregação dos seus contextos sociais, que os leva à procura por ajuda(15).

Diante do uso de substâncias, a maior parte dos usuários entrevistados afirmou sofrer com conflitos familiares e conjugais, além de prejuízos em seus trabalhos. Dessa forma, o uso nocivo traz implicações negativas nos relacionamentos sociais, seja na família, no trabalho ou nos círculos de amizade, e contribui para o desenvolvimento da violência, o que demanda sérios investimentos em políticas públicas com vistas à reestruturação desses danos(16).

A família que tem um de seus membros vivenciando um período de crise por uso nocivo de substâncias psicoativas tem seu funcionamento e estrutura alterados, podendo ser todos os integrantes afetados por grande sofrimento emocional. O apoio familiar decorrente de relações bem estruturadas é um ponto necessário e que por vezes fica comprometido. A interação e o envolvimento familiar, quando positivos, mobilizam a pessoa em sofrimento na batalha contra a sua dependência(17).

De outra forma, a exclusão social causada pelo abandono da família, por exemplo, pode induzir à adoção de estratégias de alto risco para a obtenção de drogas. Os relatos dos entrevistados em situação de rua, que geralmente vivem em um contexto de extrema vulnerabilidade social, caminham nessa direção, neles estão presentes os prejuízos ou o comprometimento da relação familiar, violência com desfechos com mortes, principalmente presente nos locais de compra, venda e uso de drogas como o crack(17).

Nesta pesquisa, todas as pessoas com vivência de situação de rua, a maioria consumindo crack, apresentavam sérios danos físicos e emocionais, resultado dos riscos a que estavam expostas. Ao considerar as mudanças ocorridas nos últimos quinze anos, constata-se que, apesar do uso de crack ter se popularizado e se estendido entre diferentes grupos sociais, os mais excluídos e marginalizados, como os moradores de rua, continuam a ser os mais atingidos, tanto pelo uso abusivo quanto pela miséria e pelo abandono social(18).

Nesse aspecto, há que se considerar que existe um número crescente de pessoas da população geral à margem das estruturas convencionais da sociedade, trazendo como resultado o comprometimento de sua saúde física, psíquica e, consequentemente, da sua sobrevivência. É no contexto das ruas que muitas dessas pessoas procuram "acolhimento", ao mesmo tempo em que se deparam com situações e comportamentos de riscos, entre estes o uso de drogas(19). Aos que vivem na rua, além da exclusão social, há constante risco da morte causada principalmente pela pobreza, violência e condições de insegurança e de marginalidade, potencializadas pela ilegalidade da venda e pelo consumo do crack(20).

Essa condição retrata um contexto de necessidades, de faltas e de abusos. Entretanto, dispositivos como o Consultório na Rua, por exemplo, aparecem como suporte social, afetivo e como uma perspectiva de mudança para quem se encontra em situação de rua. Os resultados do estudo demonstraram que esse serviço é avaliado positivamente pelos usuários, os quais apontam receber apoio e, em alguns casos, oportunidades para mudar de vida. Além disso, destacaram a facilitação do acesso aos serviços de saúde, o compromisso da equipe e a relação de respeito estabelecida com os usuários.

Para enfrentamento dessas múltiplas necessidades, pesquisadores(19-22) defendem que as abordagens terapêuticas devem considerar as características farmacológicas e clínicas envolvidas no consumo nocivo, porém superar o enfoque centrado apenas no produto e suas consequências, de maneira a considerar as condições de vida excludentes em que se encontra grande parte das pessoas que consomem droga de forma danosa, sobretudo em contextos urbanos. Chamam a atenção para a importância de uma estruturação social e familiar que suporte as tentativas de autocontrole e para o enfrentamento das dificuldades de interrupção do uso de drogas(19-22).

A pesquisa nacional sobre o uso do crack(21), realizada em 2014, no Brasil, observou um baixo acesso aos equipamentos disponíveis para a atenção às necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, apesar de grande parte dos usuários ter afirmado desejar se tratar para parar o uso de drogas, o que justificaria a gratidão dos entrevistados pelo acolhimento no serviço, comumente expressa nas falas.

Ainda que diante de uma política de desinstitucionalização, não se observa de maneira significativa a avaliação do sofrimento e o acolhimento das pessoas em situação de rua, que tem crescido significativamente nas últimas décadas. Essas pessoas sofrem estigmas e rótulos sociais em decorrência do consumo de substâncias e de andar pelas ruas cometendo, por vezes, delitos para manter o vício(22).

Entretanto, este estudo mostra a potencialidade do serviço de acolhimento noturno para provocar mudanças no percurso das pessoas em uso nocivo de drogas, à medida que é reconhecido por estas como possibilidade de saída e resgate do que foi perdido. Evidentemente, por seu caráter transitório, o serviço isolado não é suficiente para promover a superação da perda de controle, da dependência química e da situação de vulnerabilidade social de quem busca o CAPS AD.

Contudo, ao ser visto por usuários e outros profissionais da RAPS como saída para o problema, pode funcionar como dispositivo para mudança, articulando-se com outros pontos da rede e de instituições sociais. Esta modalidade de estudo apresenta características específicas que não permitem generalizações, assim, não se pode afirmar que a fala dos sujeitos seja representativa de um coletivo maior ou de outros contextos sociais. Ressalta-se ainda que a compreensão do fenômeno não se esgota nas falas dos sujeitos entrevistados.

 

Conclusão

Diante dos prejuízos decorrentes do uso de substâncias psicoativas, parte dos entrevistados foi levada a situações de extrema vulnerabilidade, como a vivência em situação de rua. Ainda que a busca pelo acolhimento noturno em CAPS AD 24h tenha ocorrido por conta própria e por livre escolha, a família mostrou-se como importante recurso motivacional, assim como a ação dos profissionais da rede.

Em contexto de vulnerabilidade, as pessoas que fizeram uso nocivo de drogas manifestaram como percepção de necessidade de busca pelo serviço a perda de controle do uso, que comumente levou à dependência da substância, ocasionando prejuízos físicos, materiais e emocionais. Ao mesmo tempo em que essa situação aprofundou o sofrimento e a perda do sentido de viver, também promoveu, nas pessoas entrevistadas, a busca por saída e superação.

Estudos realizados em outros cenários sinalizaram que os achados descritos neste artigo refletem também as necessidades de usuários residentes em outras regiões brasileiras, que apresentam cenários semelhantes ao lócus deste estudo, no que se refere ao desafio de enfrentar problemas ocasionados pelo uso nocivo de drogas.

Nesse sentido, considerando o potencial do acolhimento noturno para disparar mudanças em vidas devastadas pelo uso de drogas, a ampliação da oferta desse serviço em outros pontos da RAPS se mostra importante e necessária. Pois, na luta pela vida, tal serviço foi percebido como possibilidade concreta de "resgate" da vontade viver da pessoa em sofrimento pela dependência de substâncias psicoativas e em situação de extrema vulnerabilidade social.

 

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Recebido: 26.03.2017
Aceito: 11.09.2018

Autor de correspondência:
Thyara Maia Brandão
E-mail: thyara.maia@hotmail.com
 https://orcid.org/0000-0003-4630-6956

 

 

* Artigo extraído de dissertação de mestrado "A vivência do acolhimento noturno em Centro de Atenção Psicossocial para álcool e outras drogas 24 horas", apresentada à Escola de Enfermagem e Farmácia, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil.

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