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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.14 no.3 Ribeirão Preto jul./set. 2018

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.000396 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.000396

 

Ditos sobre o uso abusivo de álcool e outras drogas: significados e histórias de vida

 

Dicho sobre el uso abusivo de alcohol y otras drogas: significados e historias de vida

 

 

Deivson Wendell da Costa LimaI,II; Lucas Alves FerreiraIII,IV; Alcivan Nunes VieiraII; Lívia Dayane Sousa AzevedoV,VI; Adriana Pereira SilvaIII,IV; Bruna Moreira Camarotti da CunhaVII; Ligia Cristina Azevedo SousaVIII

IUniversidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IIUniversidade do Estado do Rio Grande do Norte, Faculdade de Enfermagem, Mossoró, RN, Brasil
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte, Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família, Natal, RN, Brasil
IVPrefeitura Municipal de Assu, Secretaria Municipal de Saúde, Assu, RN, Brasil
VUniversidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil
VIUniversidade de São Paulo, Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil
VIIUniversidade Federal de Pernambuco, Departamento de Enfermagem, Recife, PE, Brasil
VIIIPrefeitura Municipal de Mossoró, Secretaria de Desenvolvimento Social e Juventude, Mossoró, RN, Brasil

 

 


RESUMO

Objetivou-se compreender os significados atribuídos à droga pelas pessoas que fazem uso abusivo e conhecer como estas relacionam o uso da droga com sua história de vida. Trata-se de uma pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa, realizada com 22 pessoas em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas. Os dados foram produzidos através de entrevista semiestruturada e analisados conforme análise de conteúdo de Bardin. Emergiram quatro categorias: Primeiro contato com a droga; Contexto do uso abusivo da droga; Consequências do uso abusivo das drogas; e Motivos para mudança no padrão de uso das drogas. O uso abusivo de álcool e outras drogas é um fenômeno complexo e a droga possui diversos significados vinculados ao modo de viver da pessoa.

Descritores: Drogas; Abuso de Drogas; Vida.


RESUMEN

Se objetivó comprender los significados atribuidos a la droga por las personas que hacen uso abusivo y conocer cómo esas personas relacionan el uso de la droga con su historia de vida. Se trata de una investigación descriptiva con abordaje cualitativo realizada con 22 personas en tratamiento en el Centro de Atención Psicosocial Alcohol y otras Drogas. Los datos fueron producidos a través de una entrevista semiestructurada y analizados según el análisis de contenido de Bardin. Se han emergido cuatro categorías: primer contacto con la droga; contexto del uso abusivo de la droga; las consecuencias del uso abusivo de las drogas y motivos para el cambio en el patrón de uso de las drogas. El uso abusivo de alcohol y outras drogas es un fenómeno complejo y la droga tiene diversos significados vinculados al modo de vivir de la persona.

Descriptores: Drogas; Abuso de Drogas; Vida.


 

 

Introdução

O uso abusivo de álcool e outras drogas é considerado um problema mundial que exige o desenvolvimento de políticas públicas voltadas à subjetividade das pessoas que fazem uso de drogas e os significados que a droga passa a possuir na vida desta(1)

Esse é um fator relevante, uma vez que o olhar para o que se chama de droga está longe de ser unidirecional ou simplesmente voltado ao tratamento dos usuários de drogas; o uso não pode ser abordado como uma patologia, a partir da lógica punitiva e restritiva, é preciso, para além disso, levar em conta a relação que os sujeitos estabelecem com as drogas que fazem uso(2).

Desconsiderar a fala do sujeito nos conduz a uma desconsideração de saberes fundamentais que o sujeito possui de si mesmo, do seu corpo, dos contextos de uso, que nos forneceriam pistas importantes para a condução dos tratamentos terapêuticos(3). Tal posição fez surgir o seguinte questionamento: que significados são atribuídos à droga pelas pessoas que fazem uso abusivo de drogas, no contexto de sua história de vida?

As pessoas que fazem uso de álcool e/ou de outras drogas podem atribuir diferentes significados à droga, como também realizar interpretações diversas a partir da sua história de vida, de modo que o uso de uma droga específica pode apresentar significados distintos de um usuário para outro(4). Significados atribuídos à droga relacionam-se de maneira diferente com a história de vida de cada indivíduo, já que se destaca aqui a dimensão singular e subjetiva. A compreensão desses significados pode contribuir para o desenvolvimento de práticas mais efetivas na atenção aos usuários de drogas ao considerá-los seres de vivências singulares.

Nesse sentido, destaca-se como objetivo deste estudo compreender os significados atribuídos à droga pelas pessoas que fazem uso abusivo e conhecer como elas relacionam o uso da droga com sua história de vida.

 

Metodologia

Pesquisa descritiva de abordagem qualitativa realizada no Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas – CAPS AD em um município do interior do Rio Grande do Norte. Serviço escolhido pelo fato de destinar-se à assistência a quem faz uso de álcool e outras drogas e se submete a tratamento.

Considerando a amostragem por acessibilidade, obteve-se 22 pessoas como participantes da pesquisa. Os critérios de inclusão foram: possuir idade acima de 18 anos e ser assistido pelo CAPSad há mais de 3 meses por uso abusivo de drogas. Os critérios de exclusão foram: estar em internação hospitalar; apresentar dificuldade na verbalização devido a limitações estruturais ou funcionais da fala e faltar a dois encontros consecutivos para a coleta de dados.

Para a produção dos dados, utilizou-se a entrevista semiestruturada, como instrumento de coleta de dados, que teve a seguinte questão norteadora: Fale-me sobre sua história de vida relacionada ao uso de drogas.

As entrevistas foram previamente agendadas e realizadas individualmente de acordo com a disponibilidade e concessão das pessoas através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no período de setembro a novembro de 2015, em local reservado do serviço.

As falas foram audiogravadas com média de duração de 1 hora e 28 minutos e logo após transcritas na íntegra. Para garantir a preservação da identidade dos participantes, estes foram codificados com a letra P seguida do número relativo à ordem em que foram realizadas: P1 a P22.

Para a análise dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin, que consiste em um conjunto de técnicas, utilizando-se de procedimentos sistemáticos de descrição dos conteúdos das mensagens(5). Emergiram dos dados um quantitativo de 293 unidades de análise de conteúdo agrupadas em 17 temas, que serão discutidos em 4 categorias: "Primeiro contato com a droga"; "Contexto do uso abusivo da droga"; "Consequências do uso abusivo das drogas"; e "Motivos para mudança no padrão de uso das drogas".

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) com parecer nº 356.780, sob CAAE nº 14566313.6.0000.5294.

 

Resultados e Discussão

Os participantes desta pesquisa apresentaram em suas histórias de vida aspectos semelhantes a outras realidades referentes ao uso abusivo de álcool e outras drogas. Os entrevistados vivenciaram em algum momento a experiência de morar na rua, de ser abandonado e de se envolver em riscos na busca pela droga. Essas pessoas apresentaram histórias de vida envoltas pelo estigma, principalmente pela associação do uso das drogas à criminalidade(1).

Identificou-se que os entrevistados são do sexo masculino, dos quais vinte afirmaram que estavam separados ou divorciados e apenas dois relataram estar em um relacionamento estável. Quanto à idade, observou-se a predominância da faixa etária de 41 a 50 anos, com idade média de 42 anos. Com relação à escolaridade, doze possuíam o ensino fundamental incompleto, oito sem grau de instrução e dois concluíram o ensino médio. Sobre a ocupação, quinze pessoas relataram não exercer nenhuma atividade laboral e sete estavam na condição de aposentados devido às consequências do uso abusivo de álcool e outras drogas. 

No que se refere às drogas já consumidas, sete relataram uso exclusivo de álcool e quinze disseram ter feito uso de álcool associado a outras drogas, tais como o tabaco, psicotrópicos, maconha, inalantes e crack.

Sete entrevistados estavam em acompanhamento no CAPS AD por menos de 1 ano, com destaque para quinze que informaram estar em acompanhamento no serviço há mais de 6 anos, o que sinaliza uma longa experiência em relação ao uso de drogas e às possibilidades de tratamento disponibilizado pelo serviço.

As informações sobre a caracterização desses usuários revelam a sua diversidade e da mesma forma é complexa e diversa sua relação com as substâncias psicoativas utilizadas ao longo da vida, sendo importante a compreensão desse aspecto através das relações singulares com essas pessoas.

Infere-se que tanto os fatores que conduzem os sujeitos a fazerem o uso de álcool e outras drogas quanto os fatores que os levam à procura pelos serviços de saúde na busca de tratamento estão relacionados a elementos subjetivos, que ultrapassam a lógica histórico-cultural.

 

Primeiro contato com a droga

O primeiro uso da droga foi relatado como forma de satisfazer um desejo em relação ao objeto droga. Esse desejo manifestou-se a partir do momento em que verificou o efeito da droga no outro, emergindo daí a vontade de consumir. Esse aspecto está presente nas falas a seguir: Nunca bebi, mas eu vou experimentar. Todo mundo alegre, todo mundo satisfeito, eu vou entrar nessa também (P8). Um amigo usava o bagulho e tinha 2 até 3 namoradas e eu nenhuma, tinha dificuldades. Fui testar e dessa testada, até hoje eu fumo. Foi curiosidade, a curiosidade é o que mata. O cabra diz que não vicia, mas vicia (P2).

Pessoas fazem uso de drogas influenciadas pela curiosidade de saber como é, de ver o que ela faz, "como uma forma de tornar-se mais adaptadas às exigências do mundo contemporâneo: afastar o cansaço, produzir mais e melhor, aguçar a criatividade, suportar as frustrações"(6).

Identificou-se também que o primeiro contato com as drogas foi incentivado pela interação do grupo social do qual a pessoa faz parte, como se percebe em algumas de suas falas: A pessoa vê um fumando, a pessoa coisa também, achando que é bom. Eu achava que era bom, bonito. Tinha por volta de uns 12 anos (P13). Eu comecei tinha meus 15 anos de idade. Chegando nos bares com os colegas, mandava eu experimentar um negocinho que era bom. Eu tomei o primeiro gole, foi indo, foi indo... comecei a não querer deixar mais (P5).

O uso inicial na adolescência e a trajetória em direção ao uso de álcool e outras drogas passa a revestir-se de uma função social, uma vez que o consumo dessas substâncias está relacionado ao processo de aceitação em determinado grupo. A fala a seguir aponta para essa questão: Eu via meu pai bebendo com os amigos e brincando, isso também influencia, meu pai bebe porque eu não posso beber? (P10).

O uso de drogas surge como um fenômeno que pode estar associado "à necessidade de uma identificação e partilha de experiências que são comuns a determinados grupos de indivíduos"(7). Desse modo, pode-se afirmar que a experiência do primeiro uso da droga sofre influência direta do processo de interação sociocultural entre os indivíduos que compõem um grupo.

 

Contexto do uso abusivo da droga

Percebeu-se a solidão como situação promotora de mudança no padrão de consumo do álcool e outras drogas, sugerindo que a finalidade do uso é exatamente a de suprir o vazio proporcionado pelo afastamento do contexto familiar sofrido pelo sujeito: Moro agora sozinho, só eu e Deus. Eu vivo muito humilhado pela minha família também, num dá pra contar com ninguém (P9).

A presença da solidão é compreendida no contexto da história de vida das pessoas quando a mesma é analisada por meio da dor e do sofrimento originários da perda(8). Esse aspecto pode ser identificado na fala de P11, uma vez que o mesmo ressalta a saudade dos filhos e a separação como grandes perdas que o levaram a sentir-se solitário: com essa separação eu fiquei solitário e passei a beber todos os dias, porque eu sentia saudade dos meus filhos, eu sentia saudade do meu lar onde eu era casado e não podia voltar mais, então, devido à solidão eu ingressei no mundo do álcool (P11).

O trabalho é outro contexto importante no qual se insere o uso de substâncias psicoativas, pois o ambiente de desenvolvimento e finalização da atividade laboral aparece como espaço de relação pessoa e droga. Geralmente, o trabalhador faz uso abusivo após a jornada de trabalho ou nos fins de semana, tendo como finalidade o relaxamento ou mesmo a busca pelo prazer(9). As falas dos entrevistados ilustram essa perspectiva: Eu trabalhei 15 anos em uma empresa. Tudo começou no final de semana, encerrava o expediente e a gente ia para um bar (P2). Virei flanelinha, tomava conta de carros e lavando carros. Lá no ponto sempre tinha uma garrafa de bebida no pé de poste, que era para dar estímulo para dizer: bom dia querido, olha vou dar uma olhadinha no seu carro. Eu tinha facilidade de falar com as pessoas e em meia hora tinha cinco reais. Não trabalhava mais e ia lá fumar pedra de crack (P22).

As mudanças ocorridas no percurso, desde a ocupação exercida para sustentar a si mesmo e o uso até a introdução de outra droga, demonstram a precarização da vida do usuário. O discurso de P22 evidencia que o trabalho como flanelinha volta-se para o arrecadamento de renda suficiente para conseguir comprar a droga e os insumos para utilizá-la. A preocupação com o suprimento de suas necessidades humanas básicas, como a alimentação, parece estar em segundo plano. Esse usuário tornou-se a pessoa que vive pela e para as drogas, ou seja, houve um enfraquecimento narcísico causador da entrega do eu à morte(6).

O contexto familiar surgiu como outro fator significativo relacionado ao uso abusivo das drogas. É sabido que a dinâmica das relações que acontecem no interior da família apresenta uma forte influência no processo de desenvolvimento do indivíduo. Com frequência, a pessoa com uso abusivo de drogas tende a não constituir uma família ou revela dificuldade para sustentar o funcionamento da estrutura familiar. Talvez por dificuldades em regular suas relações e afetos, pois "tende a substituir o relacionar-se com pessoas por um relacionar-se com a substância de abuso"(4).

As falas a seguir expressam o posicionamento e atitude da família em relação ao uso abusivo de drogas: Minha família não achava bom. Só não me botaram pra fora de casa porque acreditaram que isso ia passar (P1). Meus pais passaram meses sem falar comigo, perderam a confiança, me proibiram de sair de casa. Graças a Deus hoje estão bem comigo (P4).

O impacto causado pelo uso abusivo de drogas na família é variável e depende das relações que a mesma estabelece com seus membros usuários, com características destes, com o momento do ciclo vital em que vivem, com a história intergeracional e o contexto sociocultural no qual a família está inserida(10).

Assim, destaca-se a importância do contexto familiar, no sentido de compreender o processo de significação da droga para o sujeito, visto que o uso problemático ou a consequente dependência "só pode ser definido a partir da relação triangular entre o sujeito, a droga e o contexto em que essa droga é consumida"(4). Então, cabe ao profissional de saúde, entre eles o enfermeiro, orientar os familiares para que estejam atentos a esse aspecto no processo de tratamento e reabilitação.

 

Consequências do uso abusivo das drogas

Embora o uso e abuso de álcool e outras drogas seja mais comumente associado à ideia de degradação e sofrimento, existe uma notória relação entre o consumo de substâncias psicoativas e a obtenção de sensações prazerosas. Discutir essa relação torna-se pertinente, uma vez que o uso de drogas acompanha a história da humanidade e foi passando por diferentes formas de consumo, de manuseio e função, adquirindo, atualmente, inúmeras finalidades, e a busca pelo prazer é uma delas(11).

A droga apareceu como uma ferramenta utilizada pelo usuário, ora como objeto com o qual obtinha prazer de forma direta, ora como gatilho para o desenvolvimento de atividades prazerosas, inclusive o prazer sexual: Hoje, pra mim, a droga significa, digamos, prazer! É uma sensação de bem-estar, você fuma e se sente aquele bem-estar que passa rápido (P12). A droga era tudo. Eu tinha que primeiro passar 10 minutos fumando um cigarro de maconha para poder transar com ela (P5).

Observou-se também o uso para aliviar o sofrimento causado por perdas, saudade, solidão, vivenciados no cotidiano. Nessa perspectiva, a droga psicoativa apareceu como forma de reprimir os sentimentos negativos, como dor e tristeza proporcionados por situações desagradáveis: Eu enxergava o álcool como se fosse uma anestesia, que aliviava aquele sofrimento que eu tinha pela perda do casamento (P18).

As sensações alcançadas através do uso abusivo de álcool e outras drogas associam-se às características pessoais de quem as consome e às expectativas de como a droga usada vai influenciar seu comportamento. Assim, a droga psicoativa encontra-se na vida do indivíduo como uma possibilidade de afastamento das dificuldades, como uma via de acesso para vivenciar um cotidiano mais agradável e suportável(4).

Além do exposto, destacam-se as repercussões físicas e psíquicas causadas pelo uso de álcool e outras drogas psicoativas e os riscos que causam ao organismo das pessoas usuárias: tive um começo de overdose, quase que eu morro, é uma dor insuportável. Fui para o hospital, depois disso sempre tenho problemas nos pulmões (P9). Todo dia eu bebia e todo dia cheirava cola. Eu ficava mal, porque já começava a ter amnésia. Amnésia alcoólica misturada com amnésia do uso de cola de sapateiro. O cara vai cheirar aquele troço e ver alucinações, ver bicho, tem sensação de perseguição. Hoje tenho perda de memória e sinto um barulho na cabeça (P22).

Tais consequências físicas e psíquicas levam frequentemente os usuários de substâncias psicoativas a enfrentar um interminável processo de tratamento dessas sequelas, o que leva a considerar esse consumo como um importante problema de saúde pública, que "acarreta altos custos para a sociedade, envolvendo questões médicas, psicológicas, profissionais e familiares"(12).

Identificou-se também nos discursos dos entrevistados a presença de deficit de aprendizado atrelado ao uso abusivo de álcool e outras drogas, referente à vivência escolar. A fala do entrevistado demonstra uma dificuldade em relação ao ato de estudar proporcionada pela droga: estudei pouco, as drogas não deixaram estudar não (P12).

As perdas sociais sofridas pelos sujeitos ao longo da vida em decorrência do uso de drogas são consideradas significativas e sugerem relação com a história de vida das pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. O entrevistado deixa explícito em sua fala a sua vivência de perdas materiais: eu cheguei ainda a comprar um carro, tive bem condições de vida e quando foi depois eu saí perdendo tudo (P20). Perdas financeiras e de bens materiais estão atreladas ao padrão de consumo do usuário e à relação que este estabelece com a substância de uso(13).

Também apareceram as perdas relacionadas aos sonhos e às perspectivas de futuro vislumbradas pelas pessoas que fazem uso abusivo de drogas. Sonhos e perspectivas interrompidos em virtude de circunstâncias geradas pelo uso de drogas psicoativas: Eu acabei matando meus próprios sonhos fazendo uma opção de viver drogado. Antes eu era um drogado que vivia cambaleando, eu queria ser o melhor jogador do mundo e acabei sendo um frustrado, sendo dispensado de um time de futebol lá no interior e eu fiquei mais, eu já era triste e fiquei pior (P9).

Perdas no âmbito afetivo foram relatadas como a perda do vínculo conjugal decorrente do uso abusivo do álcool e os prejuízos causados na dinâmica do relacionamento conjugal: Eu perdi a mulher por causa de bebida. É, eu trabalhava de noite e de dia, aí foi indo, foi indo, bebida demais, a mulher se aborreceu e a gente se separou (P20).

A droga psicoativa, a dosagem, a frequência e o modo de uso podem ser os mesmos para qualquer usuário, todavia o significado do uso e seu modo de ação são singulares para cada pessoa. Apesar de todas as consequências, sejam elas positivas ou negativas, infere-se haver no usuário algo além da abstinência provocada pela falta da substância, que motiva o seu uso e o impulsiona a estabelecer uma relação de proximidade com o objeto droga(14).

 

Motivos para mudança no padrão de uso das drogas

O uso de medicações foi considerado um motivo para diminuir o uso de drogas psicoativas: Pego meus comprimido aqui, através daqueles comprimidos eu estou diminuindo. Os comprimidos ligeiramente tiram o negócio (droga) que estou pensando da minha cabeça (P1).

Essa declaração leva a refletir sobre o que o sujeito considera ser droga, pois, com base no exposto, percebe-se que ocorreu uma substituição da substância eleita não prescrita pelo comprimido prescrito. Aparece a evidência de que o sujeito sente a necessidade de utilizar o comprimido como estratégia de manejo dos sintomas de abstinência da droga.

O medicamento constitui-se como uma forma efetiva de lidar com o uso prejudicial de drogas, mas há o risco do seu uso vir a ser indiscriminado pelo usuário, além de reduzir a perspectiva do tratamento ao âmbito biológico e farmacológico, com a possibilidade concreta de o usuário substituir a droga pelo comprimido, mantendo-o na condição de dependente de uma substância.

A religião apareceu como outro motivo de enfrentamento, inclusive é caracterizada como fator de proteção em relação ao uso de drogas. A religiosidade está presente na formação e na vida cotidiana das pessoas, sendo determinante e, ao mesmo tempo, condicionante da reconfiguração das relações sociais e familiares, que são mediadas por questões éticas, políticas e culturais, de modo que afeta, igualmente, os padrões de uso de álcool e outras drogas(15).

As práticas religiosas influenciam o modo de viver das pessoas e estão presentes em todos os segmentos da sociedade, influenciando também as relações sociais e a forma de se lidar com os problemas, dentre eles o uso de drogas psicoativas: Eu oro sempre, eu peço a Deus que me recupere, que me ajude sair das drogas, eu estou precisando. Meu Pai, o senhor é o meu Pai, me ajuda! Eu peço isso a Ele todo dia (P10).

O vínculo religioso leva as pessoas a vivenciar e praticar um conjunto de valores, símbolos, comportamentos e práticas sociais que contribuem para estratégias de abordagem do uso abusivo de drogas(16).

Outro motivo foi o apoio familiar que pareceu influenciar de forma significativa o modo como a pessoa se relaciona com a droga. A família aparece nos discursos dos entrevistados como suporte, de modo que a mesma interfere na decisão da pessoa para redução do uso abusivo de drogas: O melhor suporte é a família e quem não tem família se apegue a alguém, porque a família é tudo. Se eu não tivesse tomado à atitude de procurar a família, estaria na pior, não teria conseguido diminuir o uso (P1).

O acolhimento familiar apresenta-se como um dos motivos de manutenção ou resgate de vínculos com pessoas significativas. Há a compreensão de que esse grupo influencia no desenvolvimento mais ou menos saudável de seus membros e de ser o elo de união às outras esferas da sociedade(17).

Identificou-se também que os entrevistados definem o CAPS AD como um espaço de melhora de sua condição na redução do uso e apontam a confiança por parte dos funcionários como elemento importante: Tem diferença, porque aqui no CAPS, tem os funcionários, me ajuda bastante, confiando em mim, porque o meu defeito é só a bebida (P14).

O estabelecimento de vínculo construído nos serviços de saúde possibilita que os profissionais passem "a ser corresponsáveis pelos caminhos a serem construídos pela vida daquele usuário, pelas muitas vidas que a ele se ligam e pelas que nele se expressam"(18:10). Portanto, através da fala de P14, parece que tais pressupostos se concretizaram no caso desse usuário.

Identificou-se ainda a compreensão de entrevistados em relação à proposta de tratamento ofertada pelo CAPS AD: Já passei muito tempo sem beber por que estou no CAPS, agora estou em fase de recuperação (P17). Agora eu fumo mais pouco, sabe, tinha dia aí que eu fumava 20, 30, aí agora depois que eu entrei aqui estou fumando pouco, uma, duas para dormir. Se não fosse esse CAPS eu já estava morto, no cemitério ou estava na cadeia (P8).

Essas falas mostram o CAPS AD como um dispositivo viável e efetivo para mudança no padrão de uso de drogas de alguns usuários. Esse serviço demonstrou um cuidado em saúde centrado nas suas necessidades, bem como um espaço de acolhimento, vínculo e expressão da subjetividade para minimizar os riscos presentes nos cenários de uso de drogas(19).

 

Considerações finais

Evidenciou-se a existência de diferentes significados atribuídos ao uso abusivo de drogas, sendo que tais significados aparecem atrelados às situações cotidianas nas quais a droga está presente, passando a assumir um papel de destaque na vida dessa pessoa.

Nesse sentido, o uso abusivo de drogas aparece em alguns momentos como um mecanismo de fuga utilizado pela pessoa para fugir da realidade ou para minimizar sofrimentos e aliviar as perdas sofridas, de modo que a droga passa a fazer parte da história de vida das pessoas, ocupando um espaço diferente em cada uma delas.

Em outros momentos, o uso abusivo de drogas surge como a busca por novas experiências de prazer, despertadas a partir do estabelecimento de novas formas de usar a droga, que emergem com a mudança do padrão de consumo e com a vivência de experiências no âmbito da interação social, das relações afetivas e familiares.

Este artigo traz sua contribuição ao propor a discussão do uso e abuso de álcool e outras drogas, partindo da voz da pessoa que faz uso abusivo de drogas, que vivencia no seu cotidiano o sofrimento psíquico e a rotulagem de dependente químico marginal ou anormal.

É necessário um avanço na compreensão do uso e abuso de álcool e outras drogas para além da condição de dependência em relação à droga, considerando os significados desse uso e pensando nessas pessoas como seres de vivências singulares, além de relacionar esse uso com sua história de vida. 

Enfatiza-se, portanto, a necessidade de um olhar mais atento à subjetividade das pessoas que fazem uso abusivo de drogas que possibilite o atendimento das reais demandas delas e proporcione a essas pessoas maior liberdade para atuarem como copartícipes do seu processo de tratamento.

Nessa perspectiva, é pertinente ressaltar a necessidade de se desenvolver um maior aporte teórico em relação aos aspectos subjetivos que envolvem o uso e abuso de álcool e outras drogas com o objetivo de evitar reducionismos e formas de tratamento que reforcem o preconceito e estigma sofridos pelas pessoas que fazem uso abusivo de drogas.

 

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Recebido: 08.06.2017
Aceito: 10.08.2018

Autor de correspondência:
Deivson Wendell da Costa Lima
E-mail: deivsonwendell@hotmail.com
 https://orcid.org/0000-0002-7020-2172

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