SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 número4Perspectiva do usuário de drogas sobre seu tratamento e a rede de atenção psicossocialConsumo de crack: característica de usuários em tratamento em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.15 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2019.151229 

ARTIGO ORIGINAL

 

O acesso aos serviços de saúde na perspectiva de pessoas em situação de rua

 

Acceso a servicios de salud en la perspectiva de la gente de la calle

 

 

Nayelen Brambila CervieriI; Catchia Hermes UlianaII; Nathan ArataniIII; Priscila Marcheti FiorinIV; Bianca Cristina Ciccone GiaconV

IUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Coxim, Coxim, MS, Brasil
IIUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, MS, Brasil
IIIUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Coxim, Coxim, MS, Brasil / Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, São Paulo, SP, Brasil
IVUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Faculdade de Educação, Campo Grande, MS, Brasil / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Instituto Integrado de Saúde, Campo Grande, MS, Brasil
VUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Instituto Integrado de Saúde, Campo Grande, MS, Brasil

Autor Correpondente

 

 


RESUMO

OBJETIVO: identificar a percepção das pessoas em situação de rua sobre as barreiras encontradas para garantia do acesso aos serviços de saúde.
MÉTODO: pesquisa de natureza qualitativa, descritiva, realizada em um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e em uma casa de passagem do município da região norte do estado de Mato Grosso do Sul. Os participantes foram 11 indivíduos em situação de rua. A coleta foi feita por meio de entrevistas utilizando o instrumento semiestruturado, analisadas por meio da análise temática.
RESULTADOS: pode-se descrever dois momentos: "o viver na rua" e "o acesso à saúde". No processo de viver na rua, muitos relataram ter se acostumado com a situação de rua. O acesso aos serviços de saúde se deu em pronto-atendimentos devido a situações emergenciais. Experiências positivas e negativas foram relatadas.
CONCLUSÃO: acredita-se que, ao se compreender as peculiaridades dessa população e suas demandas, uma assistência de melhor qualidade pode ser oferecida.

Descritores: Pessoas em Situação de Rua; Serviços de Saúde; Políticas Públicas; Acesso aos Serviços de Saúde.


RESUMEN

OBJETIVO: identificar la percepcíon de las pensonas que viven en la calle sobre las adversidades encontradas para garantizar un acceso a los servicios de salud.
METODO: investigación de naturaleza cualitativa, descritiva, realizada en el Centro de Referencia Especializado en Asistencia Social (CREAS) y una estancia de um município en la regíon norte del Estado de Mato Grosso del Sur. Los participantes fueron 11 personas que vivian en la calle. La colecta de datos fue hecha por medio de entrevistas utilizando un instrumento semiestructurado, y por medio de un análisis temático.
RESULTADOS: se puede describir dos situciónes: "el vivir en la calle" y "el acceso a la salud". Em la situacion de vivir em la calle muchos testimoniaron que tuvieron que adaptarse a sus condiciones. El acceso a los servicios de salud fue se dio en atencion inmediata a situaciones de emergencia. Las experiencias positivas y negativas fuero reportadas.
CONCLUSIÓN: se cree que, al comprenderse las peculiaridades de esa poblacíon y sus demandas, una asistencia de mejor calidad puede ser ofrecida.

Descriptores: Personas sin Hogar; Servicios de Salud; Política Pública; Accesibilidad a los Servicios de Salud.


 

 

INTRODUÇÃO

No Brasil existem aproximadamente 31.922 mil pessoas em situação de rua, segundo pesquisa nacional realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome/MDS(1), distribuídas em 71 municípios diferentes, segundo a última contagem populacional nacional em relação à população de rua, ocorrida nos anos de 2007 e 2008.

A população em situação de rua pode ser conceituada como um grupo heterogêneo de pessoas que possuem em comum a condição de pobreza absoluta e falta de pertencimento à sociedade formal(2). Geralmente essas pessoas utilizam espaços públicos como rua, viadutos, praças e albergues para passar a noite. Podemos destacar alguns dos principais motivos do abandono do lar, que são o uso de álcool e drogas, o desemprego e os conflitos familiares(3).

A determinação do número exato dessa população constitui-se um desafio em função das características peculiares em estabelecer o que consiste estar em situação de rua. A pesquisa revelou que cerca de 18,4% das pessoas que foram entrevistadas referiram ter tido alguma dificuldade para ser atendido na rede de saúde(1). Nosso sistema econômico, juntamente com a desigualdade social, a perda dos valores sociais e a falta de respeito com o diferente podem ter grande influência nessa condição(4).

Diante dessa realidade, políticas públicas começaram a ser elaboradas na tentativa de criar melhores condições de vida para essa população. No ano de 2009, institui-se a Política Nacional para a População em Situação de Rua, garantindo a esta acesso aos diversos serviços públicos. No entanto, muitas dessas políticas são apenas compensatórias e assistencialistas, não dando oportunidades para a reinserção no meio social(5).

Quanto à saúde, em 2012, o Ministério da Saúde elaborou o primeiro manual sobre o cuidado à saúde com a população em situação de rua, ampliando o acesso aos serviços de saúde através dos consultórios de rua, que são uma maneira de busca ativa dessa população e um importante meio de fortalecer o vínculo dela com a rede de atenção básica. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) considera todo sujeito digno de receber atendimento de acordo com os princípios do SUS, integralidade, universalidade e equidade, e por esse motivo os consultórios de rua trabalham em conjunto com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços de urgência e emergência, dentre outros para ampliar e garantir o acesso(1).

Entretanto, ainda não são todos os municípios que dispõem de equipes de consultórios de rua, e a procura da rede de saúde pela população em situação de rua ainda é rara e ocorre somente em casos de extrema necessidade, como em situações de urgência e emergência em saúde. Como uma tentativa de melhorar essa realidade, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) veio como uma política pública do Sistema Único de Saúde (SUS) com o objetivo de ir atrás da demanda dessa população investindo na promoção e prevenção da saúde(6).

Como se sabe, pessoas em situação de rua possuem um modo de vida diferente da maioria da população que leva, muitas vezes, ao despreparo dos profissionais. E, ao mesmo tempo que o Sistema Único de Saúde preza por um atendimento com equidade e universalidade, ele exige comprovação de moradia para definir base territorial. O não acesso às necessidades básicas, como banho e alimentação todos os dias, faz com que essa população se encontre com seu asseio prejudicado, sofrendo preconceitos e discriminação(2), podendo ser barreiras para o acesso ao sistema de saúde.

Percebe-se na literatura nacional a ausência de estudos sobre o acesso dessa população aos serviços de saúde, tornando, assim, esta pesquisa essencial para o conhecimento das dificuldades e facilidades e para a melhor adequação dos profissionais da área, identificando fatores que ajudariam na inclusão dessa população na rede de saúde. Em vista disso, este estudo teve por objetivo identificar barreiras de pessoas em situação de rua para o acesso aos serviços de saúde.

 

Método

Pesquisa de natureza qualitativa, descritiva. A pesquisa qualitativa tem como sua fonte de dados o ambiente natural, assim ela foi realizada no habitat dos participantes do estudo. A preocupação do pesquisador em especial foi com o processo da pesquisa, e não somente com os resultados que foram obtidos(7) .

Este estudo foi realizado em conjunto com um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e com uma casa de passagem do município da região norte do estado de Mato Grosso do Sul.

Os participantes da pesquisa foram indivíduos em situação de rua que estavam na casa de passagem no momento da entrevista e aqueles que recebem apoio do CREAS, sendo os critérios de inclusão: ter mais de 18 anos; possuir as características citadas acima; a permanência no local até o fim da entrevista; estar em condições de responder às perguntas; e ter utilizado ao menos uma vez o serviço de saúde; e os critérios de exclusão: estar sob efeito de álcool e outras substâncias psicoativas ou sem condições cognitivas de responder ao questionário, o qual foi avaliado utilizando um instrumento elaborados pelos autores, que avaliava as principais funções mentais, como consciência, orientação, memória, pensamento, ideação suicida, linguagem e psicomotricidade. Aqueles indivíduos que apresentaram alterações nas funções mentais não foram incluídos no estudo.

A coleta dos dados foi feita por meio de entrevistas utilizando o instrumento semiestruturado, sendo a questão norteadora "Como é para você o acesso ao sistema de saúde do município?" e um questionário sociodemográfico, com questões relacionadas ao uso dos serviços de saúde por essa população, no período de maio a agosto de 2017. As visitas à casa de passagem foram programadas em horários que os usuários estavam presentes para almoçar e jantar/descansar, sendo também realizada a busca ativa na rua da população em situação de rua em parceria com a equipe do CREAS. Realizou-se apenas uma entrevista com cada participante, que foi gravada utilizando um gravador de áudio, específico para pesquisa, com a permissão do mesmo.

A análise dos dados foi realizada por meio da análise temática, na perspectiva de identificar quais as vivências de indivíduos em situação de rua e seu acesso ao serviço de saúde. Primeiramente, fez-se a transcrição de todas as entrevistas para a obtenção dos dados. Após, foi realizada a codificação dos mesmos e, por seguinte, sua categorização, a partir de temas que fossem capazes de responder aos objetivos do estudo(8). Para garantir o anonimato, os participantes foram identificados com a letra E (entrevistado), seguida de números arábicos indicando a ordem em que as entrevistas foram realizadas (E1 a E11).

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, com o parecer de número 1936243, no ano de 2017. Todos os participantes foram esclarecidos sobre os objetivos do estudo e seus direitos e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Resultados

Dos 11 entrevistados, 10 eram do sexo masculino e 01 do sexo feminino, na faixa etária entre 28 e 60 anos de idade. A maioria dos participantes era católica (6) e se considerava branca (6). Em relação à renda individual, oito referiram receber auxílio bolsa família, um não tinha renda e não recebia nenhum tipo de auxílio, e dois não responderam.

A maior parte participantes era casada (4) ou solteira (4), sendo que dois eram marido e mulher e estavam juntos na rua no momento da coleta de dados. Referente à escolaridade, a maioria possuía ensino fundamental incompleto (6) e exercia como profissão operador de máquinas (4). Quanto ao uso de álcool, tabaco e outras drogas, oito responderam que fazem uso de álcool e tabaco, três referiram não fumar e não beber, e somente um relatou usar drogas.

Ao serem questionados sobre doença mental na família, três referiram que têm membros da família com transtornos mentais, seis relataram que não e dois disseram que já tiveram tentativas de suicídio por algum membro da família. Em relação à sua saúde mental, cinco responderam que já tentaram ou pensaram em se suicidar, cinco disseram que nunca tentaram ou pensaram e um não respondeu ao questionamento. A maioria (6) referiu considerar a sua saúde muito boa ou mediana.

Quanto ao tempo da última vez que fizeram uso de algum serviço de saúde, o tempo mais longo encontrado foi de quatro anos, referido por apenas um participante, e o mais curto foi de um mês, também mencionado por apenas um participante. O tempo de estar vivendo em situação de rua foi variado, desde há três meses a 20 anos.

A partir da análise das entrevistas, emergiram duas categorias: "O viver na rua" e "O acesso à saúde", as quais estão descritas a seguir:

 

O viver na rua

Segundo os relatos dos participantes deste estudo, foram descritas situações de ficar na rua e de ser da rua. A primeira situação, ficar na rua, referiu-se aos relatos de os participantes ainda terem/manterem o contato com a família e permanecerem na rua por pequenos períodos, pernoitando principalmente em albergues, e em casa de passagens e, quando não há instituições desse tipo nos municípios, na rua. A segunda, ser da rua, referiu-se à população participante que descreveu a rua como o seu lugar de referência. Nesse sentido, em ambas as situações, os participantes relataram estar acostumados com essas situações e que, algumas vezes, acabam não se incomodando mais com isso.

Eu já acostumei, é costume, viajo o Brasil todo, já acostumei com essa vida (E:8); Ah sei lá, eu já acostumei um pouco também. (E:3)

Porém, outros participantes descreveram essa experiência como ruim e sofrida, mencionando passar frequentemente por várias dificuldades, como frio, noites sem dormir, falta de comida e situações de risco.

(...) três horas tem almoço, você come, isso é almoço e janta, pronto acabou. Tem que dormir cuidando, que às vezes tem alguma encrenca na rua, os outros quer matar, vai preso como ladrão, como safado, vagabundo, só você morando para ver, tem que viver na pele (E: 9); (...) sofrida é bem sofrida (a vida). Às vezes não tem na cidade (albergues) então tem que ir para rede, às vezes o dinheiro termina também. (E: 10)

Também referiram situações de discriminação, de falta de respeito e pré-julgamentos, principalmente quando solicitam comida em casas de famílias.

É assim, você passa frio, você passa a noite sem dormir, sem tomar banho, pernilongo, falta de comida tem que passar. Se está vivendo nisso, não pode perturbar as pessoas. Se você bate palma numa casa: "Dona pelo amor de Deus dá um copo d'água", ninguém dá. Às vezes tem gente de bom coração que dá, mas tem gente que fala assim: "Oh, vagabundo andando aí". A situação de rua é essa. (E: 5); Essa experiência de rua é uma vida muito ruim, uma vida muito discriminada, discriminada. (E: 11)

Nesse contexto, alguns participantes relataram o desejo de mudar sua rotina atrelada com a falta de esperança em acreditar que conseguiriam essa mudança.

Eu queria, com certeza (mudar de vida). Essa vida não é boa para ninguém, ficar andando sem ter destino. (E: 4); Eu gosto (viver fora da rua), quem é que não quer? Eu gostaria (mudar de vida). Mas só que hoje, hoje eu não estou mais para isso. Eu já estou com 43 anos, já sou veterano. (E:7)

Dificuldades no vínculo familiar, principalmente devido a algum tipo de cobrança, são descritas como um dos fatores que os levaram e os mantiveram na situação de rua. Entretanto, o estar na rua também foi referido como um fator que favorece a perda do vínculo familiar.

Eu tenho minha família lá (em outra cidade), mas eu fico mais pra do que para aquele lado de lá. Ah, de vez em quando tem que manter contato. Ah, mas ficar telefonando demais, direto, é uma perturbação. (E: 3); (...) quatro anos que não telefono (família), faz cinco que estou aqui e quatro que não telefono. (E:1); Minha irmã e meu cunhado não se dão bem comigo é por isso que não procuro eles. (E: 9)

Nesse contexto de dificuldade de se viver na rua, observa-se também, nos relatos, o consumo frequente de álcool, cigarro e outras drogas. Alguns justificaram que o consumo nesse ambiente era mais fácil, já que ninguém os incomodava sobre o uso.

Sabe por que eu ia para rua? Porque lá ninguém me incomodava, lá eu bebia, eu comia, na hora que eu queria. (E: 9); Ah, tomo uma pinga de vez em quando, uma pinga, uma cerveja (E: 3); (...) tomando cachaça, indo nos bares. Indo nos bares não, indo nos botecos, tomando cachaça, dormindo na rua. (E: 7)

O acesso à saúde

A partir dos relatos foi possível perceber que os atendimentos de saúde a essa população não são negados. Eles referiram que ter os documentos pessoais e/ou o cartão do SUS é fator importante para o acesso a esses serviços, já que todos tinham essa documentação.

Em relação ao motivo pela procura por serviços de saúde, os participantes relataram que um dos motivos é devido aos problemas de saúde emergenciais, como lesões por agressão física ou armas brancas e de fogo.

Foi quando levei a facada (foi quando procurou pelo serviço de saúde), em outra cidade, aqui não, em outra cidades. (E: 9); (...) (ficou) internado, que eu tomei a facada aqui (indica local da lesão) (E: 5); Ele me chamou de pilantra e me deu um soco aqui (indica o local do corpo). Mas eu não cai, ele só quis me derrubar, mas ele não conseguiu. Ai foi todo mundo pro hospital. (E: 7)

Outro motivo também descrito por eles foi em razão de problemas crônicos de saúde e/ou relacionados a limitações físicas e dor.

Não estou lembrado, mas foi aqui (na cidade em que foi realizada a pesquisa) se não me engano. Deu um problema na minha coluna que fiquei ruim. (E: 3); É por causa de um problema que tenho na perna. (E: 4); Tenho câncer de pulmão, tomo medicação. Por exemplo, amanhã vou fazer inalação e tomar injeção para os ossos. (E: 8)

A única participante do estudo do sexo feminino referiu que o seu último acesso ao serviço de saúde ocorreu na realização do parto de um dos seus filhos. Porém, por receber auxílio do programa bolsa família, frequentemente vai a uma unidade de saúde para realizar o exame de preventivo e vacinar os filhos.

Foi pra ganhar neném. (E: 6); Posto de saúde, porque faz preventivo e vacino as crianças. (E: 6)

Todavia, um dos problemas de saúde também relatado é a doença mental, como as tentativas e ideações suicidas, mas em sua maioria os participantes referiram não procurar os serviços de saúde, por exemplo, um CAPS, serviço esse que alguns deles nem sabem da existência.

Quem tentou fui eu (suicídio). Deixaram eu pular, mas não deixaram eu morrer. Fui resgatado pelo corpo de bombeiros. (E: 1); Foi cortando o pulso, o pescoço. Depois disso passei pelo psiquiatra e nunca mais deu (ideação suicida). Era porque eu estava em depressão. Minha mãe tinha recém falecido. (E: 4);Já tentei (suicídio), eu acho que é normal. (E: 9); Já pensei nisso (suicídio). (E: 11)

A partir do acesso a esses serviços, os participantes descreveram como foram recebidos e atendidos pelos profissionais. Alguns relatos demonstraram a demora/espera pelo atendimento.

Você fica horas e horas para ser atendido por conta de uma vacina. Que o normal é você entrar em um posto de saúde e ir direto, lá mesmo na vacina. Você demora horas pra ser atendido (E: 2); Depende do lugar. Tem lugar que demora. Você pega uma ficha para esperar. Você entra, mas é sempre assim. Brasil tudo que você pega tudo tem fila, tudo. (E: 6); Para mim sempre foi bom. Quando eu tinha que esperar esperava, eu não esquentava a cabeça não. (E:8)

Muitos referiram experiências positivas em relação ao atendimento.

Foi legal! Eu dei um urso de presente com um coração para doutora. (E: 1); Atendeu bem. (E: 3); Foi bom, vixe! (E: 10)

Porém, outros participantes descrevem experiências negativas em relação à assistência e ao atendimento à saúde, permeadas por indiferença, preconceitos, julgamentos e descaso, principalmente, na perspectiva dos participantes, com aqueles que faziam uso de álcool e drogas.

(...) muitos tratam com indiferença ou distratam, não olham para a cara (deles). A grande maioria é assim. São pouquíssimos os lugares (serviços de saúde) que tratam a gente de igual. (E: 6); É, Mal atendido, mal atendido. (E: 11); Muitos te julgam por causa do álcool e da droga. Quando é álcool e droga eles nem ligam. Atendem outro, mas você fica ali morrendo. (E: 9)

 

Discussão

A maioria dos participantes deste estudo foram homens, resultado também descrito em seu estudo que teve como objetivo mapear as políticas públicas existentes para essa população e as paisagens urbanas em que efetuam relações sociais(9). Porém, diferente do encontrado por esses pesquisadores, esta pesquisa difere em relação à cor, visto que a maioria dos participantes se considerara branca.

Quanto à profissão, trabalhar como operadores de máquinas foi descrito como a principal ocupação. Esse fato pode estar relacionado devido ser um trabalho de mais fácil acesso a essa população, já que não exige mão de obra especializada e pela região onde foi realizada a pesquisa, pois é uma região forte em propriedades de produção agropecuária.

Apesar de ser constituído um direito de qualquer pessoa transitar ou permanecer nas vias públicas, a sobrevivência nesse ambiente foi descrita neste estudo como permeado por situações de violência, de falta de condições básicas de vida e de falta de alimentação. O abandono de uma vida confortável em geral, aliado ao processo de rompimentos de todos os vínculos sociais e familiares, pode fazer com que o indivíduo se torne um sujeito "da rua"(4).

Entretanto, apesar de todos as situações difíceis relatadas pelos participantes do estudo, a maioria dos participantes considera a sua saúde como boa ou regular, o que difere dos dados de um estudo, em que a maioria dos entrevistados considerar sua saúde regular ou ruim(5).

Mesmo com todas as dificuldades de morar na rua, seja por opção ou por falta de opção, muitos relataram ter se acostumado com a situação. O hábito, descrito através do fato de ter se "acostumado" com as ruas, foi relatado em um outro estudo, que, ao avaliar estratégias de vida entre os moradores de rua na cidade de Santos, pode-se também identificar nas narrativas o "se habituar" de seus participantes com o viver na rua e suas consequências(10), o que, para eles, pode levar à dificuldade de se habituar novamente com a casa, uma vez que esta foi relacionada a regras e sentimentos de "prisão" e a rua passa a ser significada como um local de liberdade, dados que corroboram com este trabalho.

Um dos principais motivos da ida para as ruas é a perda do vínculo familiar, bem como o consumo de substâncias psicoativas, por exemplo, como álcool e drogas(11), o que também podemos observar nos relatos deste estudo. Para ambos, depois de algum tempo na rua, há uma diminuição gradativa do vínculo com a família e o aumento do consumo de álcool e drogas, sendo, assim, fatores que tornam mais difícil o retorno para a casa e a construção/retomada de novos laços familiares.

Na intenção de saber por que acontece a perda do vínculo familiar, outros autores identificaram que o motivo pode acontecer desde a adolescência, quando ocorre um distanciamento dos pais, a identificação de outros grupos sociais e o envolvimento com as drogas(4). Outro motivo, também, é a separação conjugal ou entre pais e filhos, em que um dos dois tem a necessidade de sair de casa e, dependendo das condições familiares anteriores, acabam experimentando a condição de rua, onde na maioria das vezes cabe ao homem essa condição.

Em relação ao acesso aos serviços de saúde, muitas vezes o acesso dessa população ocorreu devido às consequências do viver na rua, como situações de violência, uso de álcool e outras drogas, e pelo não acompanhamento/tratamento de situações crônicas de saúde. Para um pesquisador, os principais problemas de saúde apresentados por essa população estão também relacionados ao uso excessivo de álcool, como indivíduos que sofrem atropelamentos ou se envolvem em brigas(12).

Os serviços mais procurados também são serviços emergenciais(5), assim como neste estudo, já que os moradores de rua não costumam frequentar rotineiramente os serviços de saúde, fazendo esse contato somente em momentos de emergência. O principal serviço público buscado por essa população são os serviços de assistência social(13).

Apesar de existirem barreiras para o atendimento, todos os entrevistados referiram que foram atendidos quando procuraram os serviços de saúde e relataram ter tido experiências tanto negativas quanto positivas. Apresentou-se em uma pesquisa que, apesar de a maioria dos seus participantes ser indivíduos com baixas condições socioeconômicas, estes tiveram acesso a atendimento de saúde e descreveram-no como positivo, podendo ser atribuído simplesmente ao fato de terem sido atendidos(5) .

Quanto ao preconceito, os participantes referiram vivenciar tanto o preconceito social quanto o dos serviços de saúde e seus profissionais.

Os serviços de saúde não estão prontos para receber e atender às peculiaridades dessa população(2). Mesmo quando a procura é espontânea, pode-se perceber que ainda se faz presentes o preconceito e a discriminação. Contudo, estes não ocorrem somente durante os atendimentos de saúde, mas também socialmente, explicitados pela dificuldade em conseguir trabalhos formais, o que faz com que muitas vezes dependam de trabalhos informais e/ou eventuais, os quais geram uma renda menor que um salário mínimo. Em meio a isso, ao solicitarem ajuda para pessoas na rua ou em casas de famílias, principalmente para se alimentarem, também vivem o preconceito(5) .

Nesse contexto, o acesso a serviços de saúde mental é ainda mais difícil, já que os transtornos mentais são um dos principais problemas que atingem essa população devido, principalmente, ao consumo de álcool e outras drogas, sendo possível identificar uma falha na rede de atenção psicossocial, já que nenhum dos participantes citou ter realizado algum tipo de tratamento em CAPS. Trabalhar com o "louco da rua" é ainda mais complicado, pois nem as instituições especializadas para isso, como os CAPS, não conseguem ter bons resultados devido, principalmente, a toda a política de assistência desses serviços estar baseada e atrelada ao contexto familiar e social, e muitas das vezes focalizada na abordagem do cuidado biologicista, fato esse que exclui a população que vive na rua e em situação de sofrimento mental(13).

Para se obter um bom atendimento de saúde e, principalmente, de enfermagem às pessoas em situação de rua, devemos conhecer a "cultura da rua" através de questões como quem são eles, como vivem, como sobrevivem e que sentido atribuem as suas vidas. O cuidado é efetivo quando se tem o conceito de humanidade atribuído a ele e quando se acredita que é possível transformar a realidade dessa população. E vários instrumentos podem ser utilizados, pois para eles estar em situação de rua é o status mais baixo da sociedade que alguém pode alcançar e isso traz questionamentos sobre o significado de sua existência, o que é um fator preocupante para a saúde(12).

 

Conclusão

Este estudo teve como objetivo descrever quais as barreiras identificadas por pessoas em situação de rua para o acesso aos serviços de saúde. Os resultados demonstraram que o acesso aos serviços de saúde pela população de rua acontece, basicamente, em momentos de emergência, em que muitas vezes se apresentam alcoolizados ou em uso de drogas, sofrendo, assim, o preconceito. Apesar dessas situações, muitos têm experiências tanto positivas quanto negativas e em nenhum relato foi mencionada a falta de atendimento, seja por falta de documentação, endereço fixo ou acompanhante.

As equipes de saúde enfrentam diversos desafios para a oferta de cuidado nos diversos serviços de saúde e para as diversidades de perfis de usuários, porém pode-se dizer que há maior precariedade nos cuidados oferecidos por estes à população em situação de rua, visto que em muitas das vezes relatam ter falta de preparo e conhecimento adequado para fazer o manejo com a população de rua. Acredita-se que, ao se compreender as peculiaridades dessa população e suas demandas, uma assistência de melhor qualidade pode ser oferecida.

Esta pesquisa possui limitações por ter sido realizada em uma cidade de pequeno porte e com um grupo pequeno de participantes. Além disso, os participantes vivenciaram o acesso aos serviços de saúde em diversas cidades por onde andavam, o que dificulta a compreensão desse processo.

Outros estudos sobre essa população devem ser realizados para compreender o viver na rua e, dessa maneira, políticas públicas de melhor qualidade podem ser implementadas a essa população visando à diminuição de agravos de saúde.

 

Referências

1. Ministério da Saúde (BR). Manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Brasília; 2012.         [ Links ]

2. Rosa AS, Santana CLA. Consultório na rua como boa prática de Saúde Coletiva. Rev Bras Enferm. 2018;71(1):465-6.         [ Links ]

3. Alcantara SC, Abreu DP, Farias AA. Pessoas em situação de rua: das trajetórias de exclusão social aos processos emancipatórios de formação de consciência, identidade e sentimento de pertença. Rev Colombiana Psicol. 2015;24(1):129-43.         [ Links ]

4. Marchi JA, Carreira L, Salci MA. Uma casa sem teto: influência da família na vida das pessoas em situação de rua. Ciênc Cuidado Saúde. 2013;12(4):640-7.         [ Links ]

5. Barata RB, Carneiro N Junior, Ribeiro MCSA, Silveira, Cássio. Desigualdade social em saúde na população em situação de rua na cidade de São Paulo. Saúde Soc. 2015;24(Supl 1):219-32. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902015S01019.         [ Links ]

6. Carneiro N Junior, Jesus CH, Crevelim MA. A estratégia saúde da família para a equidade de acesso dirigida à população em situação de rua em grandes centros urbanos. Saúde Soc. [Internet]. 2010;19(3):709-16. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902010000300021.         [ Links ]

7. Polit DF, Beck CT. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para a prática de enfermagem. Porto Alegre: Artmed; 2011.         [ Links ]

8. Brevidelli MM, Sertório SCM. Trabalho de conclusão de curso: guia prático para docentes e alunos da área de saúde. São Paulo: Iátria; 2011.         [ Links ]

9. Kunz GS, Heckert AL, Carvalho SV. Modos de vida da população em situação de rua: inventando táticas nas ruas de Vitória/ES. Rev Psicol. 2014; 26(3):919-42.         [ Links ]

10. Andrade LP, Costa SL, Marquetti FC. A rua tem um imã, acho que é a liberdade: potência, sofrimento e estratégias de vida entre moradores de rua na cidade de Santos, no litoral do Estado de São Paulo. Saúde Soc. 2014;23(4):1248-61.         [ Links ]

11. Pacheco J. População em situação de rua tem sede de quê? Relato da implantação do consultório na rua da cidade de Joinville [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2015.         [ Links ]

12. Schervinski AC, Merry CN, Evangelista IC, Pacheco VC. Atenção a saúde da população em situação de rua. Rev Eletrôn Extensão. 2017;14(26):55. doi: https://doi.org/10.5007/1807-0221.2017v14n26p55.         [ Links ]

13. Borysow IC, Furtado JP. Acesso e intersetorialidade: o acompanhamento de pessoas em situação de rua com transtorno mental grave. Physis Rev Saúde Coletiva. 2013;23(1):33-50.         [ Links ]

 

 

Autor Correpondente:
Nayelen Brambila Cervieri
E-mail: nay_brambila@hotmail.com

Recebido: 26.08.2017
Aceito: 06.12.2018

Creative Commons License