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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.16 no.1 Ribeirão Preto jan./mar. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2020.150161 

ARTIGO ORIGINAL

 

O Centro de Atenção Psicossocial segundo familiares de usuários: um estudo a partir dos itinerários terapêuticos

 

El Centro de Atención Psicosocial según familiares de usuários un estudio a partir de los itinerarios terapéuticos

 

 

Ana Laura Pires RodovalhoI,II; Renata Fabiana PegoraroI

IUniversidade Federal de Uberlândia, Instituto de Psicologia, Uberlândia, MG, Brasil
IIBolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil

Autor correpondente

 

 


RESUMO

OBJETIVO: este artigo investigou, a partir do itinerário terapêutico do usuário, a percepção dos familiares sobre o tratamento nos Centros de Atenção Psicossocial.
MÉTODO: foram entrevistados dez familiares de pessoas em tratamento em Centro de Atenção Psicossocial com ao menos uma internação psiquiátrica.
RESULTADOS: a internação psiquiátrica foi o primeiro serviço utilizado na rede de atenção psicossocial. O Centro de Atenção Psicossocial foi compreendido como um serviço com equipe acolhedora que, utilizando de diferentes ferramentas de cuidado, auxiliou a estabilização do quadro do usuário. Enfatizou-se o tratamento medicamentoso, visto como capaz de eliminar comportamentos indesejáveis à família.
CONCLUSÃO: houve satisfação da família ao cuidado prestado pelo serviço. Alguns pontos ainda precisariam ser aprimorados para o oferecimento de cuidado mais efetivo.

Descritores: Família; Serviços de Saúde Mental; Pesquisa Qualitativa; Internação Psiquiátrica.


RESUMEN

OBJETIVO: este artículo investigó, a partir del itinerario terapéutico del usuario, la percepción de los familiares sobre el tratamiento en los Centros de Atención Psicosocial.
MÉTODO: se han entrevistado a diez familiares de personas en tratamiento em el Centros de Atención Psicosocial y con al menos una internación psiquiátrica previa con ayuda de un itinerario semiestructurado.
RESULTADOS: la internación psiquiátrica precedió al uso de servicio de atención psicosocial. El Centros de Atención Psicosocial fue comprendido como un servicio que ayudó a estabilizar el cuadro del usuario por el empleo de diferentes herramientas de cuidado por parte de su equipo y postura acogida dirigida a usuarios y familiares. Hay énfasis en el tratamiento medicamentoso, visto como capaz de eliminar comportamientos indeseables a la familia.
CONCLUSIÓN: hubo satisfacción de la familia al cuidado dado por el servicio, en su mayoría. Diferentes puntos todavía necesitarían ser perfeccionados para el ofrecimiento de cuidado más efectivo.

Descriptores: Familia; Servicios de Salud Mental; Investigación Cualitativa; Internación Psiquiátrica.


 

 

INTRODUÇÃO

No Brasil, o serviço manicomial/psiquiátrico foi opção quase única de tratamento até a década de 1970. A Lei 10216 publicada em 2001(1) garante o direito de tratamento às pessoas em situação de sofrimento psíquico prioritariamente em equipamentos de saúde de base comunitária (serviços extra-hospitalares) e organizados em forma de rede, como reafirmado pela Portaria/GM Nº 3.088(2) que regulamenta a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Esta rede articula diferentes pontos de cuidado a esse público, considerando os serviços de atenção básica, especializada e de urgência/emergência, que permitam o cuidado na perspectiva da desinstitucionalização e da inserção pelo trabalho.

Internações de longo prazo não podem ocorrer no Brasil desde a promulgação da Lei 10216(1), mas o recurso da internação de curta permanência existe e é acionado quando necessário no momento da crise. Além deste recurso, o CAPS - Centro de Atenção Psicossocial - é um equipamento importante no cuidado à pessoa em sofrimento psíquico grave. De acordo com a Portaria 3088/2011(2), o CAPS é um serviço formado por equipe multiprofissional, realiza prioritariamente atividades em espaços coletivos e em articulação com outros pontos de cuidado, envolvendo sua equipe, famílias e usuários na construção de projetos terapêuticos singulares para realização de cuidado longitudinal da pessoa em sofrimento psíquico.

No momento em que as internações psiquiátricas eram o recurso predominante de tratamento no Brasil, a relação entre famílias e serviços era estabelecida colocando-se a família como mero informante do estado de saúde do usuário. O crescimento da oferta de serviços extra-hospitalares no Brasil, a partir da década de 1990, provocou alterações na relação serviço-família. Esta passou a ser protagonista no tratamento do usuário e parceira na tentativa de (re)inserção social do mesmo. A presença do familiar passa, aos poucos, a ser vista como imprescindível para o apoio e auxílio dos profissionais no cuidado da pessoa em sofrimento psíquico no território(3). Ao procurar a família, a equipe se coloca mais próxima ao que é demandado pelo usuário, e a família, ao aceitar trabalhar junto do serviço, pode facilitar as ações de inserção do usuário na sociedade e gerar um maior laço entre os familiares no apoio à pessoa em sofrimento psíquico dentro do núcleo familiar(4).

Além disso, a família passa a ser percebida também como alvo de cuidado dos serviços. Neste sentido, é papel das equipes de saúde mental pensar a atenção também às famílias, responsáveis pelas formas de desenvolvimento e crescimento daquele usuário, bem como pelo cuidado diário ao mesmo(5). Essa atenção pode se dar por meio de reuniões com familiares, visitas domiciliares ou telefonemas(5-6), os quais podem auxiliar a família em suas dificuldades de cuidado, mas também agregam à capacidade de cuidar da equipe, de modo a permitir elaboração de projetos terapêuticos singulares mais completos, que incluam a família(7).

Destacamos que um cuidado mais humanizado e que contemple melhor as necessidades da pessoa em sofrimento psíquico deve considerar a participação das famílias na constituição dos projetos terapêuticos singulares dos usuários. Além disso, a família é a responsável, muitas vezes, pelas escolhas dos serviços a serem acessados para o cuidado do usuário(8).

As escolhas sobre as formas de cuidado de uma pessoa doente ou para manutenção de sua saúde são denominadas de Itinerário Terapêutico (I.T.). O I.T. é um conceito oriundo da Antropologia da Saúde e diz respeito ao caminho que uma pessoa faz na intenção de autopromoção ou melhoria de saúde. Os itinerários terapêuticos indicam de que modo ocorrem as escolhas, a avaliação e a adesão a tratamentos ou a cuidados à saúde(9). No caso de usuários de serviços de saúde mental a família tem papel relevante na escolha desses recursos, por ser, em muitos casos, a responsável pela identificação da necessidade de busca de apoio para enfrentar a situação de crise e sofrimento psíquico(4). A partir das considerações acima, delimitaram-se os problemas de pesquisa que nortearam este estudo, a saber: O que as famílias pensam sobre o serviço CAPS? Como os usuários iniciaram o atendimento neste serviço? Como as famílias percebem as ações de cuidado destinadas às famílias e aos usuários ofertadas pelo CAPS? A partir desses problemas de pesquisa, foi objetivo deste estudo investigar a avaliação de familiares de pessoas em situação de sofrimento psíquico grave sobre o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) a partir dos itinerários terapêuticos dos usuários. Para tal, por meio de entrevistas com familiares, buscamos conhecer em que momento o serviço de atenção psicossocial foi acessado ao longo do itinerário terapêutico de usuários com, ao menos, uma internação psiquiátrica e a percepção do cuidador sobre o tratamento realizado no CAPS.

 

Método

Este é um estudo qualitativo desenvolvido a partir da "Teoria Fundamentada em Dados" (TFD), a qual visa entender como o ser humano, como ser social, pensa, sente e interage, investigando os sentidos/significados atribuídos às pessoas, fatos, fenômenos e situações vividas(10).

Os participantes entrevistados foram 10 familiares de usuários de um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de Uberlândia-MG. Este serviço era um CAPS de tipo II, que funcionava de 8 às 18 horas, de segunda a sexta-feira, composto por equipe multiprofissional (médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, psicólogos, assistentes sociais), além de profissionais de apoio (limpeza e cozinha) e pessoal administrativo. Este CAPS atendia público adulto com transtornos mentais graves oferecendo atividades grupais, consultas, acolhimento, grupo de família, assembleia, visitas domiciliares e atividades externas. Era composto por sala de recepção na qual ficavam os arquivos com os prontuários em papel dos usuários, sala de coordenação, sala de enfermagem, salas para atendimento multiprofissional e reunião de equipe, além de uma sala maior para realização de grupos e oficinas que comportavam cerca de 30 pessoas, cozinha e uma área coberta na qual também era possível realizar atividades grupais.

O tamanho da amostra foi definido pelo conceito de amostragem teórica, ou seja, o número de entrevistas foi encerrado quando os novos temas explorados pelos participantes deixaram de aparecer(11). Os participantes entrevistados eram maiores de 18 anos, seus familiares passaram por ao menos uma internação psiquiátrica e houve permissão para gravação das entrevistas em áudio. Além disso, os participantes não possuíam histórico de internação psiquiátrica ou realizavam acompanhamento em serviços de saúde mental.

Para a realização da coleta de dados foram utilizados dois instrumentos. O primeiro foi um roteiro de entrevista semiestruturado para familiares que investigou inicialmente dados de caracterização (idade, ocupação, escolaridade, por exemplo) e em seguida questões norteadoras sobre a compreensão das famílias a respeito do tratamento recebido nos CAPS pelos usuários e a inclusão da família nesses/por esses serviços. Quanto ao segundo instrumento empregado, adaptou-se um questionário(12) para extração de dados dos prontuários dos usuários (idade, diagnóstico, número de internações e tempo de tratamento no CAPS), mediante autorização dos autores. Vale ressaltar que este artigo é fruto de um estudo de maior amplitude que investigou não apenas a compreensão das famílias sobre o tratamento no CAPS, mas também o acesso a outros pontos de cuidado da RAPS e a recursos populares e religiosos no cuidado à saúde mental.

Para o início da pesquisa, após aprovação pelo Comitê de Ética (Parecer 1.007.528/2015), foi realizada uma reunião no CAPS para discutir o projeto com a equipe, organizar a entrada dos pesquisadores em campo e identificar os momentos com maior possibilidade de encontrar com familiares. Foram contatados familiares de usuários que aguardavam na sala de espera do serviço. Neste primeiro momento, o familiar recebeu explicações verbais sobre a pesquisa e, quando concordava em participar, a entrevista era agendada e realizada na residência do familiar, mediante o uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pedido de um participante, uma única entrevista ocorreu em espaço apropriado para este fim, na própria universidade. Após realização das entrevistas, foram consultados os dados do usuário em seu prontuário. Os prontuários foram localizados nos arquivos e levados para uma sala do serviço reservada para este fim para a consulta das informações, sendo devolvidos ao local de guarda em seguida.

Como cuidado ético, decorrente da necessidade de preservar a identidade do depoente, nas transcrições foram adotadas as siglas E1 para o primeiro entrevistado, E2 para o segundo e assim por diante. Também foram omitidos os nomes dos serviços e de pessoas mencionadas nas entrevistas, tais como familiares e profissionais de saúde.

O primeiro passo para análise foi a leitura integral das transcrições literais e, para cada uma houve a organização de ideias a partir da técnica de árvore de associação(13). Nesta técnica busca-se, por um recorte do material, entender o argumento que foi exposto, mediante a identificação de sinalizadores que ilustram o fenômeno investigado. Ainda que essa técnica pela literatura(13), seja usada na ótica da produção de sentidos, ela foi adotada neste estudo para facilitar a codificação das entrevistas realizadas com base na Teoria Fundamentada em Dados(10) , nas etapas de: codificação aberta, axial e seletiva, permitindo a identificação das propriedades das categorias de análise e estabelecimento de relações entre categorias. Na etapa de codificação aberta os pesquisadores fizeram a leitura de todo o conjunto das transcrições em busca de frases, palavras ou parágrafos que pudessem constituir códigos preliminares da análise. Em seguida, na etapa de codificação axial, os pesquisadores buscaram identificar características ligadas aos destaques efetuados na etapa inicial, atentando para as relações entre fenômenos, explicações para os mesmos e suas consequências. Por fim, na codificação seletiva, foram sistematizados os principais temas abordados nas entrevistas, contribuindo para a formação das categorias de análise que, nesta pesquisa são: (1) O CAPS no itinerário terapêutico do usuário; (2) Papel do CAPS na estabilização da crise; (3) Ferramentas de cuidado do CAPS; (4) O apoio do CAPS e a rede de suporte social frágil; (5) Problemas: o que deve melhorar no CAPS.

 

Resultados e Discussão

(A) Caracterização dos entrevistados e usuários

Os entrevistados foram, em sua maioria mulheres (F=7), idade mínima de 32 e máxima de 67, quatro possuíam companheiro(a), maioria com ensino fundamental incompleto, ocupação/profissão ligadas ao lar (doméstica ou dona de casa) ou ao setor de serviços (vendedor, taxista, pedreiro) e vínculo de parentesco de primeiro grau (irmã/ão, mãe, filha ou cônjuges), com um familiar que possui ensino superior, características semelhantes aquelas apontadas pela literatura(14). Já os usuários cujos familiares foram entrevistados eram em sua maioria, mulheres (com idade mínima de 19 anos e máxima de 55), maioria sem companheiro(a), ausência de informação sobre escolaridade na maioria dos prontuários e a maioria não exercia atividade remunerada no momento. Com relação ao diagnóstico a maior parte dos usuários haviam sido classificados com transtornos do espectro esquizofrênico e possuíam o mínimo de uma internação e máximo de seis.

(B) O CAPS no itinerário terapêutico do usuário

Os itinerários terapêuticos informados pelas famílias apontaram que, em oito das dez entrevistas, o CAPS não foi o primeiro serviço utilizado para o tratamento do usuário. No geral, outro serviço fez o encaminhamento para o CAPS, a saber: serviço de urgência/emergência psiquiátrica (E5), atenção básica (E7), equipamento do campo da educação indicou o serviço (E8) e em cinco entrevistas (E1, E2, E3, E6, E10) ao final o período de internação psiquiátrica a equipe encaminhou o usuário ao CAPS. Deste modo, em sete casos a internação hospitalar ou em serviço especializado em urgência psiquiátrica antecedeu o cuidado no CAPS (E1, E2, E3, E4, E5, E6, E10), o que está em desacordo com o que dispõe a Portaria MS 4279/2010(15), a qual definiu a atenção primária como porta de entrada na saúde pública no Brasil. Além disso, a Portaria MS 3088/2011, que versa sobre a criação da Rede de Atenção Psicossocial(2), propôs a articulação de todos os pontos de cuidado da RAPS (da atenção primária à hospitalar, incluindo unidades transitórias e residenciais), e em seu Art. 8º § 2º, destaca que os CAPS são os responsáveis pelo acolhimento e cuidado da pessoa em sofrimento psíquico na fase aguda, isto é, em crise, no intuito de "dar continuidade ao processo de substituição dos leitos em hospitais psiquiátricos"(2). pela ampliação das possibilidades de cuidado no território, com o menor número possível de internações. Percebeu-se, pelos itinerários terapêuticos, que a atenção hospitalar e os serviços de emergência foram a porta de entrada para o tratamento na RAPS, sem que se esgotassem as alternativas para o cuidado em contexto comunitário.

Em dois casos o itinerário terapêutico do usuário revelou que o CAPS foi acionado por demanda espontânea como o primeiro serviço na RAPS. Em um desses casos, a entrevistada tinha formação profissional na área da saúde: Eu já sabia que o CAPS ia dar o apoio que a gente precisava (E9). Em uma outra entrevista (E4), a procura também ocorreu por iniciativa da família: Tem um ano e meio a gente descobriu o CAPS. A gente não sabia também [o que era o CAPS], [familiares] passaram na rua e viram a placa (E4), adentrando ao serviço e em seguida levando o familiar para acolhimento. Esses dois casos caracterizam o modelo porta aberta dos CAPS(16), ou seja, sem a necessidade de encaminhamento. Após o acolhimento pela equipe, configurada a situação de crise, esses dois usuários foram integrados à rotina de atendimento do CAPS.

(C) Papel do CAPS na estabilização na crise

É importante colocar que as entrevistas não se restringiram à avaliação do CAPS em que a coleta ocorreu, pois alguns usuários já haviam frequentado outros serviços. O equipamento CAPS foi percebido pelos entrevistados como um serviço com capacidade para auxiliar o usuário, pois frequentá-lo regularmente implicava em ter acompanhamento médico e prescrição de medicamentos, pontos essenciais para debelar a crise ou impedi-la/evitá-la na opinião dos familiares: Ele teve essa crise porque parou de ir no CAPS e parou de tomar remédio agora no final do ano. [...] Se ele tiver frequentando o CAPS regularmente, ele não entra em crise (E9). Outro depoimento reforça essa idéia: Aí foi aonde voltou tudo. As crises... ficou sem os medicamentos, ficou sem, sem acompanhamento, né? (E10).

A medicação teve papel fundamental na estabilização do quadro quando da diminuição de comportamentos que incomodavam a família e ampliação de comportamentos que facilitavam o convívio familiar, além de exigirem menos cuidados no dia-a-dia com o usuário(14,17). A família percebeu, mediante a adesão do usuário ao CAPS e o uso da medicação conforme prescrição, mudanças no comportamento, tais como conversar mais, compreender o que lhe era dito, estar mais sociável e ajudar na organização do lar: ela já conversa com a gente, ela já participa... antes ela não gostava de sentar pra assistir televisão, hoje ela já senta...[...] eu acho que ela teve uma evolução muito boa. (E7) ou ainda Arrumar uma cama, ele sabe que quando ele levanta já tem que arrumar a cama dele, se ele estiver de crise, ele não arruma, né? (E2). Essas mudanças de comportamento sinalizaram, para a maioria dos familiares, a necessidade central do uso da mediação, obtida por meio da continuidade do atendimento no CAPS. Ficar sem a medicação, ingeri-la de forma irregular ou mudanças na medicação foram percebidas como eventos potenciais para o surgimento de uma nova crise. A literatura aponta(18) que a Reforma Psiquiatra tenta desconstruir a lógica medicamentosa como via por excelência de tratamento e, portanto, é importante criar espaços para que as famílias possam refletir sobre o uso da medicação. Segundo os autores, se a família resume os serviços a apoio médico-medicamentoso e de cuidados de higiene ao usuário, esbarra-se na lógica biomédica e manicomial que se pretende ultrapassar.

(D) As ferramentas de cuidado do CAPS

A aproximação serviço-família ocorreu, segundo os entrevistados, pelo cuidado por meio de diversas ferramentas, como: grupos de família, visitas domiciliares, telefonemas, orientações às famílias, tal qual previsto na legislação(16), e teve como reflexo a satisfação e a confiança dos participantes, que perceberam o CAPS como um ponto de apoio. As visitas domiciliares e os telefonemas foram destacadas como ferramentas que indicaram não apenas o interesse da equipe pelos usuários, mas também pelas famílias, que avaliaram como um espaço em que era possível falar sobre as dificuldades no cuidado do usuário e tirar dúvidas sobre o quadro do mesmo ou sua evolução: Essa reunião é voltada para família, igual a gente está conversando aqui. As psicólogas sentam com a gente, e perguntam a conduta do paciente, como que ele está, como é que está com a família (E10).

No caso específico dos serviços de saúde mental, alguns estudos têm se dedicado a compreender se os familiares sentem-se ou não inclusos nos mesmos(19-20), o que mostra a importância da discussão desta inclusão na atualidade e a compreensão de que a família não é apenas a acompanhante que informa sobre o estado do usuário aos serviços. Os familiares entrevistados, ao declararem a importância de espaços de escuta para si na rotina dos CAPS, em separado dos usuários, reafirmaram-se como sujeitos que também precisavam do cuidado da equipe: Sabe quando você sente que a pessoa é valorizada? Que tem consideração e é acolhido? E eu me sinto assim também. (E9) ou Eu ligava para as meninas [psicólogas] do CAPS. Aí a gente conversava com a [psicóloga], ela orientava a gente o que fazer, outra hora elas iam lá [...] me deram muita atenção [...] Prepararam a gente bastante (E7). Neste sentido, vale ressaltar(21) que o cuidado ao usuário e sua família pode ampliar a condição deste grupo de se gerir e se fortalecer, ao se entender a família como parte da promoção de saúde, que deve ser acolhida e cuidada em sua integralidade e potencialidade. Como o CAPS é um local de passagem para o cuidado à pessoa em crise, e não um equipamento para cuidado longitudinal, o fortalecimento das famílias se torna ainda mais relevante, pelo momento de maior fragilidade que enfrentam.

(E) O apoio do CAPS e a rede de suporte social frágil

A relação CAPS-família ganhou outra dimensão quando contrastada com a restrita rede de suporte social com a qual os participantes podiam contar: A gente sozinho não arruma nada [...] Ajuda mesmo é do CAPS, do CAPS e da [clínica psiquiátrica] [...] é dos serviços de saúde, fora desses, aí não tem ninguém, ninguém ajuda (E3).

Em diferentes depoimentos foi possível perceber que o cuidador se sentia sobrecarregado pela responsabilidade de cuidar do usuário, e a única fonte de apoio e auxílio a este familiar se tornava o serviço: Porque eu sei que no período que ela estava o dia todo [no CAPS], eu sei que ali eu fico tranquila, porque ali [CAPS] as meninas tão ali (E10). Em alguns casos, o familiar deixava seus próprios problemas em segundo plano em prol do cuidado ao usuário: Então quer dizer que eu vou ter mais seis meses até ele acostumar a ir de ônibus [para o CAPS]. Aí até ele acostumar, eu já vou atrasar mais um pouco [o tratamento] do meu problema de surdez (E1).A mesma situação foi discutida pela literatura(22) que destaca que a falta de uma rede de suporte/apoio no cuidado ao familiar em crise implica na necessidade de que o cuidador coloque a própria vida em segundo plano. Segundo os autores, quando o cuidador se responsabiliza pela vida e pelos comportamentos de seu familiar em crise, assume um papel muito pesado, caracterizando a sobrecarga. A assistência de vizinhos, outros familiares, de uma religião e de amigos permitem que eles vivam de maneira mais saudável e tranquila.

(F) Problemas: o que deve melhorar no CAPS

Embora a maioria das falas tenha indicado que os familiares se sentiam acolhidos por parte do serviço, alguns entrevistados trouxeram falhas do suporte do serviço em cuidado e orientação para com a família: Eles [CAPS] ligam aqui para perguntar dele, mas nunca ligam aqui, por exemplo, pelo menos para mim, para mim (sic) ir lá conversar comigo, para saber como ele está (E4). A família poderia, assim, se sentir excluída das decisões para o tratamento, pela falta de espaço para que pudesse expor sua percepção sobre o usuário. Além disso, a falta de uma conversa com a família sobre os processos de alta do usuário ou seguimento em outro ponto de cuidado da rede foi lembrada por dois entrevistados: Por exemplo, o dia que eu fui lá, eles estavam quase dando alta para ele por que ele vai lá, fica tranquilo [...] Aí chega aqui e começa a xingar, quer dizer, eles tinham que ter ligado aqui e buscado informação! [...] a previsão de alta dele já estava quase prevista e até então ele não tinham ligado aqui pra saber como ele estava [...] então achei assim, desconexa (E4).

A exclusão do familiar do processo de alta do CAPS articulado pelas equipes nos remete à idéia de guarda compartilhada(23), isto é, a necessidade de construir estratégias de cuidado pelo conjunto usuário-família-serviços, por meio do compartilhamento, da co-responsabilidade. Ademais, há necessidade de disponibilizar novas formas de envolver a família em um cuidado compartilhado como um dos desafios dos CAPS. Esse é um aspecto importante, pois entende-se a co-responsabilidade no cuidado do usuário, que deve envolver a família, a rede de atenção psicossocial e o próprio usuário, sem que um desses atores seja visto como único responsável(24).

Outra questão apontada como negativa pelos participantes foi a primeira impressão de um familiar ao visitar o CAPS e encontrar ali pessoas/usuários deitada(o)s no chão. Isto o levou a questionar a qualidade da instituição e do cuidado realizado pela equipe: Questionei o por que tinha pessoas deitadas no chão. Aqui [CAPS] não é um lugar para eles deitarem. Uma que se eles colocar cama, muitos querem ir lá para dormir, né? Não é o objetivo deles... (E4). O cuidado transpõe a barreira do tratamento asilar(25) na medida em que o usuário e sua família não são percebidos como objetos a serem analisados, mas como sujeitos atuantes, permitindo a construção do significado singular de saúde para àquela comunidade e família local. Portanto, percebe-se como as possibilidades de olhares e de cuidado se expandem quando expressas pela junção da rede informal e dos serviços de saúde.

 

Conclusão

O propósito deste estudo foi atingido, pois foi possível investigar a avaliação de familiares sobre o cuidado oferecido pelo CAPS por meio da investigação dos itinerários terapêuticos dos usuários. Como principais resultados desta pesquisa destacam-se a satisfação com o cuidado oferecido pelo CAPS, aproximação da equipe com as famílias e ênfase no tratamento medicamentoso, visto como capaz de eliminar comportamentos indesejáveis à família. Um limite do presente estudo foi sua realização a partir de um único CAPS, a partir do qual foi efetuado o convite aos participantes. Outro limite da pesquisa refere-se ao foco dado aos familiares que estavam no CAPS, o que nos permite a sugestão para estudos futuros com famílias menos presentes nos serviços, de forma se compreender de que modo percebem o serviço. Uma contribuição deste estudo consistiu em destacar a frágil rede de apoio dos familiares dos usuários do CAPS. Compreendemos que para a continuidade dos cuidados em serviço extra hospitalar, a criação de mecanismos para ampliação desta rede de suporta para o cuidador é necessária e urgente. Outra contribuição diz respeito à invisibilidade do CAPS enquanto ponto de cuidado da Rede de Atenção Psicossocial, tendo sido procurado, muitas vezes, apenas após uma internação. A avaliação positiva que os familiares fizeram sobre o modo com que o cuidado é efetuado no CAPS contrasta com o fato de ser um serviço pouco conhecido pelos mesmos. Destaca-se aqui a necessidade de maior diálogo entre os serviços da rede de saúde e também em contextos intersetorial de forma a que a existência deste equipamento de cuidados que privilegia a manutenção da pessoa em seu meio sociofamiliar possa ser mais amplamente divulgada e conhecida.

 

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Autor correpondente:
Renata Fabiana Pegoraro
E-mail: rfpegoraro@yahoo.com.br

Recebido: 07.09.2018
Aceito: 12.04.2019

 

 

Contribuição dos autores: Concepção e desenho da pesquisa: Renata Fabiana Pegoraro. Obtenção de dados: Ana Laura Pires Rodovalho, Renata Fabiana Pegoraro. Análise e interpretação dos dados: Ana Laura Pires Rodovalho, Renata Fabiana Pegoraro. Obtenção de financiamento: Ana Laura Pires Rodovalho, Renata Fabiana Pegoraro. Redação e Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Ana Laura Pires Rodovalho, Renata Fabiana Pegoraro.
Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
Conflito de interesse: os autores declararam que não há conflito de interesse.

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