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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.16 no.2 Ribeirão Preto abr./jun. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2020.0090 

EDITORIAL

 

Aplicando os fatores terapêuticos de psicoterapia em grupo de Yalom ao Alcoólicos Anônimos

 

Aplicación de los factores terapéuticos de la psicoterapia grupal de Yalom a Alcohólicos Anónimos

 

 

Stephen Strobbe

University of Michigan, School of Nursing at Ann Arbor, Michigan, EUA

Autor correpondente

 

 

 

Fundado em 1935, o Alcoólicos Anônimos (AA) tem sido um pilar no tratamento e recuperação do alcoolismo em todo o mundo, com mais de dois milhões de membros em aproximadamente 180 países(1). Enquanto um capítulo inteiro do livro Alcoólicos Anônimos é dedicado a “Como funciona”(2), clínicos e pesquisadores se esforçam para identificar mecanismos de ação que possam ajudar a explicar a eficácia deste programa de ajuda mútua.

Em muitos aspectos, o AA é medido pelo grupo, não pelo indivíduo, como refletido nas Doze Tradições(3). Em 1970, Irvin Yalom publicou pela primeira vez The Theory and Practice of Group Psychotherapy (Psicoterapia de grupo: teoria e prática), no qual listou 11 “fatores curativos” da terapia de grupo, mais tarde denominados “fatores terapêuticos”(4). O objetivo deste breve artigo é traçar paralelos e fornecer exemplos específicos e selecionados de como esses fatores terapêuticos podem se expressar no “programa espiritual de ação”(2) que é o Alcoólicos Anônimos.

 

Instalação de Esperança

O Preâmbulo de A.A.© afirma: “Alcoólicos Anônimos é uma irmandade de homens e mulheres que compartilham, entre si, suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver seu problema comum e ajudar outros a se recuperarem do alcoolismo”(5). Nas reuniões do AA, os sujeitos encontram outros - com vários níveis e condições de sobriedade - que também sofreram e, desde que recuperados da mesma doença da mente, corpo e espírito, oferecem uma mensagem prática de esperança.

 

Universalidade

O Alcoólicos Anônimos foi pensado baseando-se em um alcoólatra conversando com outro. Muitos com transtornos relacionados ao consumo de álcool acreditam falsamente que são únicos em suas circunstâncias, deficiências e transgressões. Esses pensamentos são muitas vezes acompanhados por sentimentos de inadequação, culpa e vergonha, com comportamentos subsequentes de clandestinidade, desonestidade e isolamento. Ao ouvir relatos abertos e honestos de outros e ler histórias pessoais no livro Alcoólicos Anônimos (que evoluiu para refletir melhor a mudança dos membros ao longo do tempo), esses indivíduos passam a se identificar com aqueles que pensaram, sentiram e se comportaram da mesma forma. Como resultado, eles podem perceber que não estão sozinhos, e podem reconhecer: “... eu sou um alcoólatra”.

 

Compartilhamento de informações

O compartilhamento de informações assume muitas formas no Alcoólicos Anônimos, incluindo a participação em reuniões abertas (que qualquer pessoa pode participar), reuniões fechadas (limitadas a membros autoidentificados ou aqueles que desejam parar de beber), e conversas abertas, em que um orador compartilha sua história pessoal, descrevendo: “... como éramos, o que aconteceu, e como somos agora”(2). Outras fontes de informação incluem slogans como “Vá com calma”, literatura aprovada por conferência e sites. Algumas reuniões assumem a forma de sessões de estudo, durante as quais os membros se revezam lendo o Alcoólicos Anônimos, ou os Doze Passos e as Doze Tradições(3), e respondem. Um padrinho, geralmente alguém que já trabalhou os 12 Passos do Alcoólicos Anônimos, serve como guia ou mentor para membros mais novos.

 

Altruísmo

Definições tradicionais de altruísmo muitas vezes se referem apenas a comportamentos que beneficiam outros(6). Em termos de psicoterapia, isso tem sido descrito como uma relação mais dinâmica e bidirecional, na qual o doador também se beneficia ajudando os outros - sendo assim que ocorre no Alcoólicos Anônimos(4). Em um símbolo frequentemente usado para retratar o AA, tem-se em um dos lados de um triângulo o termo “serviço”. “Não se consegue manter a sobriedade sem passá-la adiante”(3). Um capítulo do livro Alcoólicos Anônimos é dedicado a “Trabalhar com os Outros”, e começa com a declaração, “A experiência prática nos mostra que não há nada melhor, para assegurar a nossa imunidade contra a bebida, do que o trabalho intensivo com outros alcoólatras”(2).

 

Recapitulação Corretiva do Grupo Familiar Primário

Uma vez que a genética, o ambiente e as características pessoais desempenham papéis significativos na etiologia do alcoolismo, não é de estranhar que muitos membros do AA descrevam laços familiares insalubres, danificados e rompidos. Esses padrões estão previsivelmente destinados a ressurgir nas relações subsequentes. A confiança é uma questão central, seja em confiar nos outros, ou em ser confiável. No Alcoólicos Anônimos, um ambiente seguro, solidário e respeitoso, pode promover o desenvolvimento de comportamentos mais seguros e assertivos, em vez de postura excessivamente agressiva, passiva ou passivo-agressiva. Ao completar um “minucioso e destemido inventário moral” (Passo 4), compartilhar esse inventário com outro ser humano (Passo 5), fazer uma lista de todas as pessoas que prejudicaram (Passo 8) e fazer as pazes (Passo 9), os membros estão ativamente envolvidos em novos comportamentos que podem levar a relações cada vez mais honestas e saudáveis com eles mesmos, a um “poder superior” etc.

 

Desenvolvimento de Técnicas de Socialização

Os indivíduos podem estar ou não conscientes de como seus próprios comportamentos são percebidos e afetam os outros. Com feedback direto ou indireto de um padrinho e colegas, completando inventários pessoais, engajando-se em reflexão pessoal e trabalhando nos passos, os membros podem obter informações sobre os comportamentos autodestrutivos que os colocaram em desacordo com os outros e, assim, proporcionar oportunidades para praticar padrões socialmente mais aceitáveis de relações interpessoais.

 

Comportamento imitativo

No AA, tanto os membros mais novos quanto os mais estabelecidos são cercados por indivíduos que aprenderam, com diferentes graus de sucesso, como viver “a vida... nos termos da vida”(2), sem recorrer à bebida. Os membros podem testemunhar, em primeira mão, os benefícios que vêm para aqueles que participam de reuniões, trabalham os passos, e se envolvem em serviços. Como é frequentemente o caso da psicoterapia, o novato pode observar, imitar e adotar atitudes e comportamentos vistos pela primeira vez nos outros, que parecem ajudar na recuperação, no crescimento e no bem-estar.

 

Aprendizagem interpessoal

Embora a aprendizagem interpessoal tenha sido descrita como “um fator terapêutico amplo e complexo”(4), certas condições dentro do Alcoólicos Anônimos podem ajudar na promoção desse processo. Primeiramente, pode-se assumir a psicopatologia subjacente do alcoolismo, seja ativa ou em remissão. Dada essa vulnerabilidade compartilhada entre os membros do AA, a aceitação - e a capacidade de estender a empatia e a compaixão uns com os outros - é cultivada.

Muitas vezes, aos recém-chegados dizem: “Não beba e vá a reuniões”, para participar de “90 reuniões em 90 dias”, “Encontre um padrinho” e “Trabalhe nos passos”. Os indivíduos recebem reforço positivo à medida em que progridem no programa. Celebram-se “marcos mensais” e aniversários de sobriedade. A autoestima é restaurada e aprimorada, e a sobriedade torna-se valorizada. Mesmo que um membro tenha uma recaída - o que pode ocorrer e ocorre - ele ou ela é bem-vindo(a) de volta e encorajado(a) a redobrar seus esforços, “um dia de cada vez”. A membros relutantes, novos ou antigos, pode-se dizer: “Nós vamos te amar até que você possa aprender a amar a si mesmo”.

 

Coesão Grupal

A integridade do grupo é de suma importância, sem a qual alcoólatras que desejam parar de beber não teriam para onde ir. Os membros são encorajados a identificar um “grupo base” e a participar fielmente dessas reuniões. Eles passam a conhecer e se preocupar uns com os outros - e com o próprio grupo - de maneiras profundas e significativas. De forma democrática, as decisões que afetam o grupo são determinadas pela “consciência de grupo”. Em uma escala mais ampla, as “Doze Tradições” foram escritas para proteger o AA como um todo, tendo “unidade” como um princípio abrangente(3).

 

Catarse

Para alguns, a expressão desenfreada das emoções vem muito facilmente. Para outros, os sentimentos podem ser intimidantes e, por isso, evitados ou reprimidos. Na psicoterapia de grupo, a catarse é vista como uma condição necessária, mas insuficiente, e que passou a ser superestimada, mesmo pelo próprio Freud(4). Após a publicação do Alcoólicos Anônimos, em 1939, muitos dos escritos de Bill Wilson, um dos cofundadores do AA, focaram em “sobriedade emocional”, um equilíbrio estável entre pensamentos, sentimentos e ações baseados na realidade, destacando-se como precursor da terapia cognitivo-comportamental (TCC).

 

Fatores existenciais

Fatores existenciais estão entre os elementos mais desconfortáveis e potencialmente transcendentes da condição humana, incluindo uma “consciência da morte, liberdade, isolamento e propósito de vida”(4), juntamente com a percepção “de que devo assumir a responsabilidade final pela maneira como vivo minha vida, não importa quanta orientação e apoio recebo dos outros”. No contexto do Alcoólicos Anônimos, o significado vem de fazer parte de algo maior que si mesmo. Como refletido pela Tradição Cinco, “Cada grupo é animado de um único propósito primordial - o de transmitir sua mensagem ao alcoólico que ainda sofre”(3).

 

Conclusão

Embora o Alcoólicos Anônimos funcione principalmente no nível dos grupos, a maioria das pesquisas até o momento tem se concentrado nos indivíduos. Ainda que existam diferenças estruturais entre os grupos tradicionais de psicoterapia e os do AA, os fatores terapêuticos de Yalom fornecem uma lente através da qual mecanismos adicionais de ação podem ser identificados, descritos e explicados no contexto do Alcoólicos Anônimos.

 

Referências

1. Alcoholics Anonymous World Services. A.A. around the world, 2019. Disponível em: https://www.aa.org/pages/en_US/aa-around-the-world-        [ Links ]

2. Alcoholics Anonymous World Services. Alcoholics Anonymous: The story of how thousands of men and women have recovered from alcoholism. 4thed. New York, NY; 2001.         [ Links ]

3. Alcoholics Anonymous World Services. The twelve steps and twelve traditions. New York, NY; 1953.         [ Links ]

4. Yalom ID, Leszcz M. The theory and practice of group psychotherapy. 5th ed. New York, NY: Basic Books; 2005.         [ Links ]

5. Alcoholics Anonymous World Services. A.A. preamble, 2013. Disponível em: https://www.aa.org/assets/en_US/smf-92_en.pdf        [ Links ]

6. Merriam-Webster. Merriam-Webster's collegiate dictionary. 11th ed. Springfield, MA; 2004.         [ Links ]

 

 

Autor correpondiente:
Stephen Strobbe
E-mail: strobbe@umich.edu

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