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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.16 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2020.168837 

ARTIGO ORIGINAL

 

A experiência da tentativa de suicídio na perspectiva de adultos*

 

La experiencia del intento de suicidio desde la perspectiva de los adultos

 

 

Andréa Cristina Alves; Aline Conceição Silva; Kelly Graziani Giacchero Vedana

Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil

Autor correpondente

 

 


RESUMO

OBJETIVO: analisar a experiência da tentativa de suicídio na perspectiva de adultos que tentaram suicídio.
MÉTODO: estudo qualitativo com oito adultos brasileiros assistidos em serviço de saúde mental. Os dados foram coletados em 2018 por entrevistas semidirigidas sobre a experiência da tentativa de suicídio e encontros grupais. O Interacionismo Simbólico foi o referencial teórico utilizado. Os dados foram submetidos à análise temática.
RESULTADOS: identificamos três temas: Ambiente intrapsíquico: representação e comunicação com o self (generalização de fracassos e expectativas negativas na construção de significados atribuídos ao self, à vida e às relações); Relações interpessoais (necessidade de vínculo, pertença, reconhecimento, acolhimento e sentirem necessários para outras pessoas); e Representações da tentativa de suicídio: a fuga e o encontro com a dor (a tentativa de suicídio é motivada pelo desejo de aliviar a dor, mas resulta no encontro com a dor, e instiga a busca por novos métodos, a evitação do suicídio por medo ou a reconstrução de significados).
CONCLUSÃO: o estudo fornece importantes achados a serem explorados na prática clínica, no delineamento de protocolos, políticas institucionais, bem como na formação de profissionais.

Descritores: Suicídio; Tentativa de Suicídio; Adulto; Saúde Mental.


RESUMEN

OBJETIVO: analizar la experiencia del intento de suicidio la perspectiva de los adultos que intentaron suicidarse.
MÉTODO: estudio cualitativo con ocho adultos brasileños asistidos en un servicio de salud mental. Los datos se recopilaron en 2018, entrevistas semidirigidas sobre experiencia del intento de suicidio y las reuniones grupales. Se utilizó el marco teórico del interaccionismo simbólico. Los datos fueron sometidos a análisis temático.
RESULTADOS: identificamos tres temas: Entorno intrapsíquico: representación y comunicación con el "yo" (generalización de fracasos y expectativas negativas en la construcción de significados atribuidos al yo, la vida y las relaciones); Relaciones interpersonales (necesidad de establecer vínculo, pertenencia, reconocimiento, aceptación y de sentirse necesario para otras personas); Representaciones del intento de suicidio: la fuga y el encuentro con el dolor (el intento de suicidio está motivado por el deseo de aliviar el dolor, pero resulta en el encuentro con el dolor e instiga a la búsqueda de nuevos métodos, la evitación de suicidio por miedo o la reconstrucción de significados).
CONCLUSIONES: el estudio brinda hallazgos importantes que deben ser explorados por la práctica clínica, en el diseño de protocolos, políticas institucionales, así como en la capacitación de profesionales.

Descriptores: Suicidio; Intento de Suicidio; Adulto; Salud Mental.


 

 

Introdução

O suicídio é um importante problema de mortalidade no mundo, envolvendo não apenas questões médicas, mas também sociais. Estima-se que ocorra um óbito por suicídio a cada 40 segundos. O suicídio é a segunda principal causa de morte entre os jovens de 15 a 29 anos(1-2). Sabe-se que as tentativas de suicídio atingem taxas aproximadamente 20 vezes maiores do que os óbitos por suicídio(1-2) apesar de serem pouco identificadas e notificadas. Um estudo brasileiro, que investigou estimativas de prevalência do comportamento suicida, na área urbana de Campinas, São Paulo, encontrou que, a cada três casos de tentativas não letais, apenas um chega a um serviço de saúde para ser atendido(3).

O comportamento suicida é complexo e multifatorial. Envolve uma interação de riscos biológicos, clínicos, psicológicos, sociais, culturais, entre outros(4). As tentativas de suicídio não letais são o principal preditor de um futura tentativa letal e pessoas que já tentaram suicídio tem risco de suicídio 100 vezes mais elevado do que a população em geral(5). As elevadas taxas de tentativas de suicídio e o risco de óbito a elas associado mostram a importância de investir no conhecimento desse fenômeno para a melhoria dos cuidados a pessoas vulneráveis(6).

As tentativas de suicídio não letais são pouco investigadas(7) apesar de serem um importante fator de risco e indicarem informações importantes para o acompanhamento profissional e suporte da rede de apoio(8). O reconhecimento das particularidades pessoais, sociais e da rede de assistência relacionadas ao comportamento suicida é relevante, pois propicia a melhor compreensão, identificação e formulação de estratégias de proteção e prevenção do fenômeno(9).

A tentativa de suicídio pode representar um dilema existencial importante, está ligada a intenso sofrimento mental(9)e à necessidade de obter respostas sobre o valor da vida(10). Esse ato pode ser reconhecido como um pedido de ajuda legítimo ou impróprio na perspectiva de terceiros(2-11). A tentativa de suicídio representa um evento associado à experiência de solidão e dor psíquica interpretadas como uma situação de abandono pelos entes queridos(12).

De acordo com a literatura, a tentativa de suicídio é representada de diferentes formas e é comumente incompreendida por terceiros, incluindo estudantes e profissionais de saúde(11). Estudos demonstram ainda o predomínio de atitudes negativas direcionadas à pessoa com comportamento suicida(13-15). Na perspectiva de outros indivíduos, a tentativa de suicídio é incompreensível, transgressora e estigmatizante(11,14,16-19).

A compreensão aprofundada sobre a experiência da tentativa de suicídio pode promover importantes avanços no conhecimento científico sobre esse assunto, nas reflexões, ressignificações sobre a temática, bem como na formação profissional e na prática clínica. Dessa forma, este estudo teve como objetivo analisar a experiência da tentativa de suicídio na perspectiva de adultos, após tentativa de suicídio.

 

Método

Trata-se de um estudo qualitativo realizado em um município do interior de Minas Gerais - Brasil. A população estimada do município era de 113.807 habitantes no ano de 2016. No mesmo período, estima-se que houve 218 casos de tentativas de suicídio. O município possui uma Rede de Atenção Psicossocial em estruturação. Os serviços especializados em saúde mental da cidade são um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II), um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS Ad) e um Ambulatório de Saúde Mental. O ambulatório destina-se ao atendimento realizado por médicos e psicólogos e os CAPS possuem, além desses atendimentos, diferentes modalidades de atividades terapêuticas individuais e grupais.

Este estudo teve como referencial teórico o Interacionismo Simbólico. Trata-se de uma perspectiva teórica que pressupõe que o comportamento humano é simbólico e definido pelos significados que os indivíduos constroem. Tais significados são construídos e reconstruídos nas interações sociais de forma dinâmica, predominantemente no presente(20). Considerando o referencial teórico empregado, a pessoa, após a tentativa de suicídio, pode ressignificar, de forma dinâmica, essa experiência a partir das interações que tem consigo mesma e com outras pessoas.

Os critérios de inclusão do estudo foram: pessoas acima de 18 anos com tentativa(s) de suicídio ocorrida(s) a menos dois anos da data da coleta do estudo e que estavam sendo assistidas pelos serviços especializados, no período da coleta de dados e ter disponibilidade para participar de cinco encontros presenciais. Os critérios de exclusão foram: ter menos de 18 anos e mais de 60 anos de idade; recusa em participar da pesquisa; incapacidade para comunicação verbal em português; diagnóstico de transtornos psicóticos (devido a alterações de pensamento); e possuir diagnóstico de transtorno de personalidade.

Foi realizado levantamento dos casos de tentativas de suicídio, a partir dos prontuários e indicação dos profissionais, e as pessoas elegíveis para participar do estudo foram convidadas a participar da pesquisa. Houve 4 recusas relacionadas à indisponibilidade para participação nos encontros. A amostra foi composta por oito pessoas acima de 18 anos com tentativa de suicídio a menos de dois anos e assistidas pelos serviços.

Foram incluídos no estudo os primeiros quatro participantes com disponibilidade para participar de um encontro individual e quatro encontros grupais e, após a finalização do processo de coleta com o primeiro grupo, foram incluídos mais quatro participantes disponíveis, nos grupos foram aplicados os mesmos procedimentos, porém separadamente, conduzidos pela primeira autora, que buscou uma estrutura de contratos e de condução que fossem semelhantes. A análise dos dados foi iniciada durante o processo de coleta dos dados, o que permitiu identificar que, ao final da coleta com o segundo grupo, o objetivo da pesquisa foi atingido e as categorias estavam suficientemente construídas e articuladas. Desse modo, a coleta foi interrompida.

Os dados foram coletados no ano de 2018 por meio de uma entrevista semidirigida e quatro encontros grupais. A entrevista foi guiada por roteiro com dados sociodemográficos e clínicos (diagnóstico, modalidade de tratamento nos serviços de saúde mental, número de tentativas de suicídio, internação em hospitais psiquiátricos) e entrevista semidirigida. Destaca-se que o roteiro (conteúdo) para a coleta de dados foi validado por um comitê de cinco especialistas na área. Os juízes elegíveis a participar do estudo como peritos, foram profissionais com Pós-Graduação nível mestrado ou doutorado relacionados ao suicídio, comprovados pelo currículo Lattes, e que puderam ser contatados por e-mail identificado em algumas de suas publicações disponíveis na internet. Esses profissionais foram identificados por meio de busca realizada no Lattes.

A principal questão norteadora da entrevista foi: conte-me como foi sua experiência relacionada à tentativa de suicídio. O assunto foi abordado cuidadosamente e as entrevistas foram conduzidas de forma a permitir a expressão de sentimentos, necessidades, emoções e experiências. Os quatro encontros grupais incluíram momentos de escuta, partilha de experiências e acolhimento. Ao final de cada encontro, foi oferecida aos participantes a oportunidade de obterem apoio emocional, caso necessário, tanto pelos serviços, quanto pela pesquisadora com formação em saúde mental. Além disso, os serviços de saúde realizaram o acompanhamento desses casos durante o período da coleta de dados. O material coletado foi audiogravado mediante o consentimento dos participantes, sendo os encontros realizados em ambiente privativo. A coleta de dados seguiu conforme disponibilidade dos participantes.

Para análise dos dados foi utilizada a Análise Temática(21). A análise temática permite a identificação, análise e descrição de temas de forma aprofundada. A pesquisa seguiu as seis fases propostas pela análise temática: 1- Familiarização com os dados - transcrição e releitura dos dados; 2- Geração de códigos iniciais - codificação de características interessantes de todos os dados de forma sistemática, confrontando os dados relevantes; 3- Procura por temas - agrupamento de códigos em temas potenciais, reunião de dados relevantes para cada tema potencial; 4- Verificação dos temas em relação aos extratos codificados e ao conjunto de dados com proposição de mapa temático de análise; 5 - Definição dos temas - análise em curso para aperfeiçoamento de cada tema; 6 - Redação do relatório de investigação científica(21).

Os dados foram analisados por duas pesquisadoras com experiência na análise temática e no objeto de estudo e foram realizadas reuniões para discussão e consenso das temáticas encontradas no estudo.

O estudo seguiu as recomendações sobre pesquisas com seres humanos. Todos os participantes receberam informações sobre os aspectos éticos e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Os participantes estavam sendo assistidos pelos serviços especializados em saúde mental do município que resguardou o acompanhamento professional. Destaca-se ainda, que foi oferecida a oportunidade de apoio aos participantes ao término de cada encontro. O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, com o número de aprovação e regulamentação CAAE 77961417.8.0000.5393.

 

Resultados

Este estudo teve uma amostra composta por 08 pessoas, com idade entre 18 e 50 anos. A maioria dos participantes era mulher (86%), possuía crença ou espiritualidade (86%) e não praticava atividade física (86%). A maior parte da amostra referiu estar insatisfeita com a própria vida (72%), com o apoio recebido das pessoas com as quais convive (72%).

Todos os participantes foram diagnosticados com transtornos do humor, estavam em acompanhamento psicológico e utilizavam psicofármacos. A maioria também fazia tratamento psiquiátrico (86%) e metade dos participantes já havia passado por internação psiquiátrica. A quantidade de tentativas de suicídio dos participantes do estudo variou de uma a 12 tentativas (Figura 1).

As experiências relacionadas às tentativas foram reunidas nas seguintes categorias: "Ambiente intrapsíquico: representação e comunicação com o self"; "Relações interpessoais: necessidade de vínculo, pertença, reconhecimento e acolhimento"; e "Representações da tentativa de suicídio: a fuga e o encontro com a dor".

1 - Ambiente intrapsíquico: representação e comunicação com o self

A experiência de viver foi associada à sensação de fracasso, insatisfação, fragilidades e sofrimento permanente em diferentes esferas: afetivas, psíquicas, financeiras, sociais. As generalizações de frustrações e expectativas negativas estabelecidas ao longo da vida impactavam a representação que os indivíduos contruíam a respeito de si e da sociedade, e consequentemente, influenciavam nas interações com o próprio self e relacionamentos interpessoais.

Assim, os participantes manifestaram sentir raiva pela própria existência, insatisfação e decepção consigo e com os demais e sensação de incomodar e atrapalhar a vida de outras pessoas. As experiências adversas de vida também impactaram a construção de si, dando uma conotação negativa e sentimento de desvalia, enfrentamento reduzido e desesperança: Não tem coisas boas aqui dentro, eu guardo tudo de ruim desde os quatro anos que eu lembro, eu guardo tudo na minha cabeça. (P6), ou ainda: De repente, qualquer coisinha me abala, aí, eu me sinto fraca de novo, eu vejo os meus sonhos assim, como se tivesse acabado sabe. (P1)

Expectativa de fracasso era um receio constante que gerava insegurança, dificuldade para construção ou realização de novos projetos e, no período que antecedeu a tentativa de suicídio, a tristeza, a angústia, o desinteresse pela vida e desejo de morrer foram persitentes nos entrevistados: A incerteza de falhar é muito grande (...) Eu espero que dê certo de eu ter uma carreira, de ser feliz, mas eu tenho medo de falhar. (P5)

Cabe destacar as experiências limitantes na construção social do papel do feminino com consequência no sofrimento mental, como dependência de status marital para validar liberdade social e financeira e desvalorização: Eu não tinha felicidade. Minha mãe não deixou eu namorar, não deixava eu sair. Minha vida era uma rotina assim: de casa pro serviço, do serviço pra casa sabe. (P8). Outro depoimento que reforça essa ideia: E casei sem gostar, casei com 22 anos, não gostava do marido que eu casei, casei pra sair de casa. (P6) ou Eu sinto que eu não sou valorizada dentro de casa, todo tanto que eu faço é pouco (...) eu sou muito cobrada por isso. (P8)

2 - Relações interpessoais: necessidade de vínculo, pertença, reconhecimento e acolhimento

Na perspectiva das pessoas com tentativas de suicídio, as relações interpessoais foram importantes no desenvolvimento, continuidade ou redução do sofrimento experimentado. As relações interpessoais eram promotoras de bem-estar quando satisfaziam a necessidade de vínculos satisfatórios, sentimento de pertença e de se sentirem importantes e necessários para outras pessoas: Era todo mundo criticando, falando que eu não tinha nada, que eu era tão bonita, tinha um emprego bom, família bem estruturada e como eu poderia ficar assim. Só eu sei que, no meu interior, eu estava devastada. (P3). Outro depoimento que reforça essa ideia: Ninguém vê que a gente tá precisando de falar, conversar, vai juntando aquilo ali na gente, bate aquela tristeza aquela angústia. (P6)

Os entrevistados experimentaram descrédito em relação aos seus sofrimentos, que eram negligenciados pelas pessoas com as quais conviviam. Os participantes que tentaram suicídio referiram sentimento de solidão, falta de afeto e atenção, não se percebiam aceitos e pertencentes a um grupo acolhedor e estavam insatisfeitos com o suporte recebido de pessoas próximas em situações difíceis. Todavia, acentuavam essas lacunas ao optar pelo isolamento por desejo de proteger-se, sentimentos de inadequação social, por não se considerarem importantes ou por desinteresse: O dia que eu tentei me matar, eu pensei assim: o meu filho não gosta de mim, minha mãe e meu pai não gostam de mim, meus irmãos não estão nem aí. (P1), ou ainda: Ah, se eu for embora ninguém vai sentir minha falta. Se acontecer alguma coisa comigo não tenho ninguém. Não tenho vínculo com ninguém a não ser a família que não era tão importante pra mim. (P7)

Em contrapartida, os entrevistados manifestaram experiências positivas nas relações interpessoais quando havia apoio, compreensão e acolhimento. Foram citadas como importantes fontes de apoio a rede de assistência (profissionais de saúde), amigos e familiares. A sensação de ser necessário(a) para cuidar de outras pessoas, especialmente filhos, foi um importante motivo para permanecer vivo(a): Eu vou te falar assim, foi Deus que colocou o psicólogo, no meu caminho. porque ele fez eu enxergar coisas que nem eu mesma não via. (P8E). Outro depoimento que reforça essa ideia: Eu coloco a minha vida e falo que tenho que ser forte, tenho que ficar boa pra cuidar das minhas filhas. (P3)

3 - Representações da tentativa de suicídio: a fuga e o encontro com a dor

A tentativa de suicídio representava, simultaneamente, a fuga e o encontro com a dor, pois o desejo de aliviar o sofrimento era o principal propulsor das tentativas de suicídio e a sobrevivência a essas tentativas, mostrou-se profundamente dolorosa. A tentativa de suicídio era motivada, principalmente, pelo desejo de provocar a própria morte, eliminar a dor ou modificar situações que viviam: As três vezes eu só enxergava a morte, porque a dor era tão grande que eu não sabia controlar, e pensava se eu morrer essa dor vai passar. (P5). Outro depoimento que reforça esta ideia: Eu queria um suicídio sem dor. (P2G) ou ainda: No meu caso, quando eu fiz a tentativa de suicídio, você acha que eu queria morrer? Eu não queria, queria ficar livre de tudo que estava sentindo. (P7)

A graduação de letalidade, dor e outras características relacionadas aos meios de perpetração também foram relatadas pelos participantes do estudo. A acessibilidade aos meios de perpetração foi pontuada como facilidade para tentativa em momento de impulsividade e dor emocional. Destaca-se que os medicamentos foram os métodos utilizados nas primeiras tentativas de suicídio e representavam uma oportunidade de remediar a dor e o sofrimento de forma definitiva: Eu pensei vou tomar um remédio, não melhora. Aí vou tomar mais remédio, tomei os remédios todos. Quem sabe eu vou melhorar minha cabeça, vou esquecer tudo isso, ou morrer. (P6E). Outro depoimento que reforça esta ideia: Tomei um comprimido, mais aí, fiquei com tanta raiva, tristeza, aquela dor, já que eu tava com os comprimidos tudo na mão, eu tomei tudo. Aí foi aonde que eu parei no pronto socorro. (P8 E)

Após a tentativa de suicídio, houve entrevistados que reavaliaram o método empregado e relataram a busca por métodos mais letais, planos mais elaborados em tentativas posteriores: A minha primeira tentativa de suicídio eu tinha uns quinze anos, ai eu tomei veneno junto com remédio, depois eu tentei com gás, depois tentei me enforcar também com lençol (...). (P2)

Outros participantes do estudo identificaram a tentativa de suicídio como um momento de crise disparador para reconciliação com familiares e ressignificação de vida. Gradualmente, alguns entrevistados conseguiram reencontrar suporte, e recursos para voltar a acreditar na vida: Até então eu não tinha muita ajuda dele e depois da minha tentativa de suicídio meu marido mudou pra melhor (...) estou feliz comigo mesma, meu relacionamento, to tendo mais perspectivas também, isso ajuda, né. (P7). Outro depoimento que reforça esta ideia: Após a tentativa, comecei a me enxergar, hoje a minha vida tem sentido. Através do meu neto, meu relacionamento melhorou, até nisso meu esposo mudou, porque eu mudei, hoje ele tem mais carinho comigo. E a melhor coisa que Deus me deu foi ter passado por isso tudo. (P8 E) ou Eu fiquei a manhã inteira no hospital e antes de ter chegado em casa, minha família foi me ver, eu lembro muito pouco mais a minha tia chorava e minha outra tia chorava também, e nesse momento eu fiz uma reconciliação com a minha tia, porque eu não estava conversando com ela. (P5E)

 

Discussão

O presente estudo identificou que a representação do self, da vida e das relações interpessoais eram permeadas pela generalização de expectativas negativas e fracassos. Há estudos que mostram associações das múltiplas experiências adversas de vida e sintomas depressivos, insatisfação com a vida(22), menor bem-estar, menos recursos de enfrentamento, além de maior nível de estresse(23). Nosso estudo sugere que os eventos adversos de vida podem ser impactantes na medida em que propiciam expectativas negativas generalizadas sobre diferentes esferas da vida, incluindo a percepção do indivíduo sobre si mesmo.

A construção social do padrão feminino se constitui um dos fatores que podem prejudicar a saúde mental de mulheres e necessita de mais estudos científicos e discussão sobre as repercussões do modelo patriarcal no sofrimento e no comportamento suicida. Estudo realizado com 225 mulheres portuguesas identificou que mulheres expostas a abuso emocional, físico, negligência emocional e histórico familiar (transtorno mental ou uso de substâncias) apresentaram maior sintomatologia depressiva e tentativas de suicídio(24).

De acordo com a literatura, o suicídio é complexo e multifatorial(4). Nosso estudo revela que a qualidade dos vínculos é marcante nas experiências relacionadas à vida e às tentativas de suicídio. Os sofrimentos experimentados estiveram intimamente atrelados às interações sociais, sendo que houve participantes que culpavam terceiros pela sua própria tentativa de suicídio. Os sofrimentos eram perpetuados e intensificados quando experimentavam descrédito, negligência, solidão, falta de afeto, atenção, decepções amorosas, rejeições paternas.

Estudo qualitativo realizado com colombianos identificou que a solidão está ligada à falta de validação e aceitação das pessoas próximas. As manifestações de suporte no decorrer da vida são interiorizadas favorecendo a aceitação, autonomia e equilíbrio. Sendo que pessoas que não possuem a aceitação são propensas à vulnerabilidade e sofrimento(12). Estudo realizado com 18 brasileiros com comportamento suicida evidenciou o papel estruturante do suporte social e relação de ajuda positiva na prevenção do comportamento suicida. Afeto, empatia e ausência de julgamento ou estigma colaboram com a aceitação e favorecem o enfrentamento ao sofrimento. A pesquisa também apontou que conhecimento sobre a temática favorece a convivência com pessoas com comportamento suicida(25). Os profissionais de saúde também foram identificados como catalisadores e com destaque para o suporte no gerenciamento de crises e conflitos no relato de homens com comportamento suicida(26). Dessa forma, percebe-se a necessidade do trabalho de suporte aos familiares e rede de apoio da vítima de suicídio para fortalecimento do acompanhamento e prevenção do suicídio.

Em nosso estudo, as pessoas que tentaram suicídio identificaram a relevância e o papel protetor do vínculo, pertença, reconhecimento e acolhimento. Destacaram ainda a importância de perceberem-se úteis e necessários para alguém. Assim, é importante implementar e investigar intervenções que promovam habilidades sociais, convívio familiar saudável, suporte social, acolhimento qualificado nos serviços de saúde e prevenção de relacionamentos abusivos e violentos.

Diferentes motivos e objetivos estiveram relacionados às tentativas de suicídio, mas todos tinham como ponto de convergência o desejo de aliviar a dor. Assim, é possível coexistirem o desejo de viver e morrer, sendo precedidos pelo desejo de eliminar a dor. Estudos elencam a presença da ambivalência, ou seja, dois sentidos opostos na intencionalidade suicida(27). Pesquisa com 5.655 canadenses com apresentação em serviço psiquiátrico identificou que a ambivalência é um fator de risco importante para comportamento suicida futuro(27). A ambivalência foi correlacionada à alta impulsividade e ausência de planejamento(28), sendo possibilidade o trabalho de prevenção do comportamento suicida.

O uso de medicamentos na tentativa de suicídio mostrou-se ligado à acessibilidade e à relação simbólica do medicamento como um "remédio" para a dor experimentada. A autointoxicação intencional é um dos métodos mais utilizados em tentativas de suicídio e merece ser considerado com cuidado, pois parece ser uma iniciação ou porta de entrada para comportamentos com maior risco. A esse respeito, a literatura aponta que a letalidade e multiplicidade dos métodos podem aumentar no decorrer das tentativas(29). Assim, a restrição ao acesso a meios letais se constitui uma das premissas principais para intervenções na prevenção do suicídio(30).

Após tentar suicídio para aliviar a própria dor, os participantes do estudo reencontravam a dor, por vezes ainda mais intensa. Diante disso, alguns passavam a buscar por novos métodos, outras pessoas continuavam desejando o suicídio, embora o evitassem por medo, enquanto outros indivíduos consideraram a crise um disparador de mudanças e reconstrução de significados de si mesmos, da própria vida e das relações interpessoais. Esses achados mostram a multiplicidade de experiências relacionadas à tentativa de suicídio e o quanto intervenções podem ser oportunas para facilitar a proteção dos indivíduos, mas também a ressignificação da experiência vivida. É importante investir no acompanhamento longitudinal de pessoas que tentam suicídio, pois muitas pessoas recebem alta de serviços de emergência após tentativas sem encaminhamento para continuidade do tratamento(6). Além disso, esse público tem dificuldade de aderir ao tratamento(31). Questões que reforçam a importância do acesso aos serviços e busca ativa de pessoas menos aderentes.

 

Considerações Finais

Este estudo teve como objetivo analisar a experiência da tentativa de suicídio na perspectiva de adultos que tentaram suicídio. Foram identificados três temas principais: "Ambiente intrapsíquico: representação e comunicação com o self" (que trata do impacto da generalização de fracassos e expectativas negativas na produção de significados atribuídos ao self, à vida e às relações); "Relações interpessoais: necessidade de vínculo, pertença, reconhecimento e acolhimento" (a perspectiva de que os relacionamentos interpessoais podem tem ligação estreita, porém diversa, com o sofrimento); e "Representações da tentativa de suicídio: a fuga e o encontro com a dor" (revela que as diferentes motivações para tentativas de suicídio tinham em comum o desejo de aliviar a dor, mas resultavam no encontro com a dor, que instigava a busca por novos métodos para o suicídio, a evitação do suicídio por medo ou a ressignificação do self, da vida e das relações interpessoais). A tentativa de suicídio é um fenômeno multicausal, que impacta e afeta os indivíduos envolvidos nesse ato. Por isso, se confirma a relevância de pesquisas que visem a compreender melhor esse cenário, fomentando a prevenção como também uma assistência qualificada, no cuidado a esses pacientes. O estudo fornece importantes achados a serem explorados na prática clínica, no delineamento de protocolos, políticas institucionais, bem como na formação de profissionais, pois ele proporciona, uma visão quanto à experiência e todas as situações vivenciadas por uma pessoa que passa por uma tentativa de suicídio, sendo possível, a compreensão de tal ato.

 

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Autor correpondente:
Andréa Cristina Alves
E-mail: andrea.cristina@usp.br

Recebido: 16.04.2020
Aceito: 27.06.2020

 

 

Contribuição dos autores
Concepção e planejamento do estudo: Andréa Cristina Alves e Kelly Graziani Giacchero Vedana. Obtenção dos dados: Andréa Cristina Alves e Kelly Graziani Giacchero Vedana. Análise e interpretação dos dados: Andréa Cristina Alves, Aline Conceição Silva e Kelly Graziani Giacchero Vedana. Redação do manuscrito: Andréa Cristina Alves, Aline Conceição Silva e Kelly Graziani Giacchero Vedana. Revisão crítica do manuscrito: Andréa Cristina Alves, Aline Conceição Silva e Kelly Graziani Giacchero Vedana.
Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
Conflito de interesse: os autores declararam que não há conflito de interesse.
* Este artigo refere-se à chamada temática "Violência autoprovocada: autolesão não suicida e comportamento suicida".

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