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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.16 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2020.166310 

ARTIGO ORIGINAL

 

Perfil epidemiológico das notificações de violência autoprovocada de 2010 a 2019 em um estado do sul do Brasil*

 

Perfil epidemiológico de las notificaciones de violencia autoinfligida entre 2010 y 2019 en un estado del sur de Brasil

 

 

Nathalia FattahI; Milenne Souza de LimaII

ISecretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul, Divisão de Vigilância Epidemiológica, Porto Alegre, RS, Brasil
IIUniversidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Departamento de Psicologia, Porto Alegre, RS, Brasil

Autor correpondente

 

 


RESUMO

OBJETIVO: descrever o perfil das notificações de violência autoprovocada no estado do Rio Grande do Sul no período de 2010 a 2019.
MÉTODO: estudo epidemiológico observacional descritivo transversal a partir de dados secundários. Foram realizadas análises estatísticas descritivas para estudar a distribuição dos casos segundo as variáveis sociodemográficas e aquelas relacionadas ao evento.
RESULTADOS: foram notificados 43.390 casos de lesão autoprovocada, dos quais 67,9% foram do sexo feminino. Verificou-se maior proporção de notificações de indivíduos na faixa etária de 20 a 29 anos, ao passo que as maiores taxas de notificação corresponderam à faixa etária de 15 a 19 anos de idade, com aumento expressivo de 2017 a 2019. A residência foi o local predominante de ocorrência das lesões autoprovocadas, e 41% das notificações eram de pessoas que já haviam se autoagredido ou tentado suicídio previamente.
CONCLUSÃO: verificou-se predomínio de notificações de indivíduos do sexo feminino, na faixa etária de 20 a 29 anos, e aumento expressivo das taxas de notificação na faixa etária de 15 a 19 anos. Aponta-se a necessidade de aprofundamento sobre a violência autoprovocada, especialmente sobre fatores associados à intencionalidade suicida no comportamento autoagressivo entre adolescentes e adultos jovens, a fim de subsidiar estratégias de prevenção.

Descritores: Comportamento Autodestrutivo; Tentativa de Suicídio; Notificação de Doenças; Sistemas de Informação em Saúde; Vigilância Epidemiológica.


RESUMEN

OBJETIVO: describir el perfil de las notificaciones de violencia autoinfligida en el estado de Rio Grande do Sul en el período 2010-2019.
MÉTODO: estudio epidemiológico observacional de corte transversal basado en datos secundarios. Se realizaron análisis estadísticos descriptivos para estudiar la distribución de casos según las variables sociodemográficas y las relacionadas con el evento.
RESULTADOS: 43.390 casos de autolesiones fueron reportados, de los cuales el 67,9% fueron mujeres. Hubo una mayor proporción de notificaciones en el grupo de edad de 20 a 29 años, mientras que las tasas de notificación más altas correspondieron al grupo de edad de 15 a 19 años, con un aumento expresivo de 2017 a 2019. La residencia era el lugar predominante para la autolesión, y el 41% de las notificaciones fueron de personas que se autolesionaron o intentaron suicidarse previamente.
CONCLUSIÓN: predominaron las notificaciones de mujeres del grupo de edad de 20 a 29 años, y un aumento significativo de las tasas de notificación en el grupo de edad de 15 a 19 años. Señalamos la necesidad de profundizar la violencia autoinfligida, especialmente en los factores asociados con la intención suicida en el comportamiento auto agresivo entre adolescentes y adultos jóvenes, con el fin de apoyar estrategias de prevención.

Descriptores: Conducta Autodestructiva; Intento de Suicidio; Notificación de Enfermedades; Sistemas de Información en Salud; Vigilancia Epidemiológica.


 

 

Introdução

A violência é um fenômeno complexo e multifatorial, presente em toda a história humana e em variadas culturas(1-2). Na medida em que afeta a saúde individual e coletiva, se transforma em um problema de saúde pública, exigindo a organização do sistema para assistência e reabilitação, bem como políticas específicas de prevenção(1). A Organização Mundial da Saúde(3) define três categorias amplas, considerando o autor da violência: a própria pessoa (autoprovocada ou autoinfligida), interpessoal (doméstica e comunitária) e coletiva (cometida por grandes grupos ou pelo estado; via de regra, de natureza estrutural).

A violência autoprovocada compreende ideação suicida, plano, tentativa e suicídio consumado. Inclui também outras formas de autoagressão, como automutilações superficiais(4-5). O comportamento autolesivo, em qualquer grau, tem por finalidade o alívio imediato de um sofrimento exacerbado, frequentemente relacionado à ocorrência de transtornos mentais(6-7). Tendo em vista que tentativa de suicídio (TS) é o principal fator de risco isolado para o suicídio(8-9), a ocorrência de autoagressões pode ser indicativa de sofrimento latente, por vezes preditivo de futuras TS(10-11).

No Brasil, foi implementado, em 2006, o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), composto pela vigilância sentinela em unidades de urgência e emergência (VIVA Inquérito) e pela vigilância contínua de violência interpessoal e autoprovocada (VIVA Contínuo), que capta dados por meio de ficha de notificação individual(5). No mesmo ano, a Portaria nº 1.876 do Ministério da Saúde instituiu as diretrizes nacionais para a prevenção do suicídio, apontando a necessidade de notificação dos casos de TS. Em 2009, a Ficha de Notificação Individual de Violência Interpessoal/Autoprovocada foi inserida no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), colaborando para a expansão do VIVA e garantindo a sustentabilidade da notificação. Neste mesmo ano, o estado do Rio Grande do Sul (RS) participou, através da sua capital Porto Alegre, de um piloto para a implementação da notificação no SINAN/Violência. Já no ano seguinte, teve início sua expansão para todo o território gaúcho.

Em 2011, com a publicação da Portaria nº 104 do Ministério da Saúde(12), a violência passou a integrar a Lista Nacional das Doenças e Agravos de Notificação Compulsória. A notificação é obrigatória para todos os profissionais de saúde ou responsáveis por serviços públicos e privados de saúde, devendo ser registrado no SINAN qualquer caso suspeito ou confirmado de violência. Em 2014, a Portaria nº 1.271 do Ministério de Saúde(13) tornou imediata (em até 24 horas) a notificação dos casos de violência sexual e TS, com o propósito de garantir a intervenção oportuna.

Para fins de notificação, a violência autoprovocada é denominada lesão autoprovocada (LA) e inclui autoagressões (como automutilações, por exemplo, sem intencionalidade suicida) e TS (quando há intenção de morte)(5). Dados sobre LA, ainda que subnotificados(4,14), são essenciais para o planejamento de ações efetivas de prevenção do suicídio(8), a partir da identificação de grupos vulneráveis e da vinculação dos pacientes à rede de saúde, interrompendo o ciclo de violência(15-16). Assim, este estudo teve como objetivo descrever o perfil epidemiológico das notificações de violência autoprovocada no estado do Rio Grande do Sul no período de 2010 a 2019.

 

Método

Trata-se de estudo epidemiológico observacional descritivo transversal a partir de dados secundários do SINAN, gerenciados pela Secretaria de Estado da Saúde do RS (SES/RS). Foram consideradas todas as notificações de violência do período de 2010 a 2019 identificadas como "lesão autoprovocada" de residentes do RS com cinco ou mais anos de idade. Os dados do SINAN foram extraídos por meio da ferramenta Tabnet no site da SES/RS* em 14 de janeiro de 2020 e exportados para o software Microsoft Excel 2007. Foram realizadas análises estatísticas descritivas (frequências e proporções) para estudar a distribuição dos casos segundo as variáveis sexo, faixa etária, raça/cor, escolaridade, situação conjugal, presença de deficiência/transtorno, local de ocorrência e repetição (se a violência já havia ocorrido outras vezes). Também foram calculadas taxas de notificação para as categorias da variável faixa etária, utilizando como base para cálculo a população residente acima de cinco anos de idade estimada pela Rede Interagencial de Informações para a Saúde (RIPSA)(17) para cada ano da série histórica. A população referente ao ano de 2015, última disponível, foi adotada como denominador para os anos seguintes. Para a variável raça/cor, foi utilizada a população informada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)(18) referente ao ano de 2010, por ser a única disponibilizada para esta variável.

 

Resultados

Foram notificados 43.390 casos de LA de residentes do RS entre 2010 e 2019. Observa-se, na Figura 1, o crescimento do número de notificações ao longo do período, chegando a 10.793 em 2019. Destaca-se o ano de 2017, com aumento de 70,5% em relação ao ano anterior. Quanto à distribuição segundo sexo, nota-se o predomínio do sexo feminino. Em 2019, as mulheres tiveram 2,5 vezes mais notificações do que os homens, com 7.667 registros.

Na Tabela 1, são apresentados dados sociodemográficos e de caracterização do evento no período estudado. A população feminina compreendeu 67,9% do total de notificações. Verificou-se maior proporção de notificações na faixa etária de 20 a 29 anos para ambos os sexos. A raça/cor branca foi atribuída em 80,5% das notificações. Já as taxas de notificação variaram ao longo dos anos, conforme apresentado na Tabela 2, com as maiores taxas entre a raça branca seguida da preta.

Dentre as notificações com dados válidos de escolaridade, indivíduos com até oito anos incompletos de educação formal representaram 42,5% dos casos. Vale ressaltar a alta proporção de campo em branco ou ignorado nessa variável. Quanto à situação conjugal, predominaram as notificações de pessoas solteiras, separadas ou viúvas para ambos os sexos. A presença de alguma deficiência (física, intelectual, visual ou auditiva, por exemplo) ou transtorno (mental ou de comportamento) foi registrada em 35,3% dos casos (Tabela 1).

A residência foi o local predominante de ocorrência das LA. Do total de notificações no período estudado, constatou-se que 44,3% das mulheres já haviam se autoagredido ou tentado suicídio previamente, ao passo que o mesmo ocorreu com 34,1% dos homens. Destaca-se a alta proporção de campo em branco ou ignorado nessa variável (Tabela 1).

Em relação à taxa de notificação por faixa etária, destaca-se o aumento expressivo entre adolescentes de 15 a 19 anos de idade nos últimos três anos (Figura 2). A faixa etária de 10 a 14 anos também chama atenção, superando, em 2019, a taxa de notificação de adultos de 20 a 29 anos.

 

Discussão

O notável aumento do número de notificações ao longo do período analisado não reflete, necessariamente, maior ocorrência de LA, mas decorre do processo implementação do VIVA no estado do RS(15), na medida em que a rede de serviços é sensibilizada e capacitada para identificação e notificação de situações de violência(19). Em dezembro de 2016, por meio do Decreto nº 53.361, foi instituído o Comitê Estadual de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio, coordenado pela SES/RS e tendo como uma de suas competências o fortalecimento da vigilância epidemiológica de TS(20), o que pode explicar, em parte, o crescimento de mais de 70% do número de notificações de LA em 2017.

Dentre os resultados deste estudo, a maior ocorrência de LA entre mulheres vai ao encontro do padrão observável no restante do Brasil(16) e no mundo(8). No período de 2011 a 2016, aproximadamente 66% das notificações de LA no Brasil foram de mulheres(16). Há uma marcada diferença entre os sexos em relação à TS e suicídios consumados descrita na literatura: enquanto o primeiro é mais frequente em mulheres, o segundo acomete mais os homens, sendo que tal padrão é descrito como o "paradoxo de gênero" do comportamento suicida(7,21-22).

Além disso, os resultados mostram que, entre os homens, mais de 34% das LA tinham caráter repetitivo, enquanto nas mulheres essa proporção chegou a 44,3%. No Brasil, dados de 2011 a 2016 também revelaram diferença entre os sexos: 25,3% versus 33,1%, respectivamente(16). É provável que a maior repetição das TS entre o sexo feminino deva-se ao frequente uso de meios não violentos e menos letais, como o abuso de medicamentos controlados e cortes superficiais, por exemplo(7). Além disso, o caráter ritualístico da automutilação (sem intencionalidade suicida) favorece a manutenção do comportamento entre meninas adolescentes(10,23-24).

A violência sexual é tida como um importante fator de risco para as LA, bem como outros tipos de violência sofridos principalmente por mulheres em ambiente doméstico(4). No RS, a partir de 2016, nota-se o incremento das notificações de LA entre mulheres, chegando a 2,5 vezes mais do que entre os homens em 2019. Tal aumento foi marcado na faixa etária de 15 a 19 anos no período. É identificada na literatura a alta incidência de LA entre vítimas de abuso sexual na infância, mesmo em comparação com outros tipos de violência(6). Nesse sentido, os resultados encontrados convergem com a principal população de risco para violência sexual, a saber, crianças e adolescentes, sobretudo meninas. Em sua maioria, os agressores são parentes e pessoas de convívio próximo da família(25-26). Intimamente relacionado à violência sexual, o trauma psicológico gera ainda outras repercussões, tais como sentimentos de culpa, vergonha e autorrepulsa, podendo levar à autoagressão(27).

Em relação à faixa etária, a maioria das notificações de LA no RS concentrou-se entre pessoas de 20 a 29 anos de idade. Por outro lado, vale ressaltar que as taxas de notificação entre adolescentes de 15 a 19 anos, desde a implantação do programa, sempre foram mais altas em comparação às outras faixas etárias e tiveram aumento expressivo a partir de 2016. Em uma metanálise(28), foi identificada a heterogeneidade dos resultados de diferentes estudos encontrados na literatura científica em relação à população que teria a maior incidência de LA: adolescentes ou jovens adultos. De todo modo, é indiscutível que há um contínuo entre as faixas de idade acima descritas, e ambas têm o suicídio como segunda principal causa de morte(19), dado que realça a necessidade de maior compreensão sobre as variáveis intrínsecas a este momento do ciclo de vida. Por ser um fenômeno multifatorial, faz-se necessário investigar quais variáveis socioculturais universais e regionais estão relacionadas a esta tendência.

Entretanto, deve-se considerar que a fase desenvolvimental compreendida entre o meio da adolescência e o início da idade adulta, tanto em termos biológicos quanto sociais, acarreta maior sofrimento psíquico em indivíduos com mecanismos de enfrentamento e regulação emocional precários(6,29-30). Pelo aumento expressivo, nos últimos anos, das taxas de notificação entre as faixas etárias de 15 a 19 e 20 a 29 anos de idade, deve-se também considerar a hipótese do uso de redes sociais na propagação, normalização e contágio de comportamentos autolesivos através da internet(31).

Dentre as motivações para LA entre jovens mais frequentemente descritas, nem sempre está presente a intenção suicida(6); há evidência de autoagressão relacionada a sentimentos de autopunição e alívio de sofrimento psíquico em meninas, contrastando com maior frequência de TS em meninos(4-23). Em comparativo da ocorrência de LA entre adolescentes e jovens adultos australianos, um estudo encontrou diminuição na idade adulta jovem, maior manutenção do comportamento autolesivo no sexo feminino em relação ao sexo masculino, e, enfatiza-se: a presença de sintomas de transtornos mentais, sobretudo depressão e ansiedade, predizem manutenção do comportamento autolesivo na idade adulta jovem(32). A maioria dos casos resolve-se espontaneamente durante a adolescência; porém, medidas de detecção e tratamento precoces podem ser cruciais para casos mais graves, em termos de intervenção efetiva em saúde mental(8,32).

Em estudo ecológico britânico acerca das variáveis (a nível individual e territorial) relacionadas à repetição do comportamento autolesivo, foi encontrado um dado relevante sobre raça e ambiente: a frequência computada de repetição de LA na raça branca foi menor em bairros em que pessoas brancas são maioria entre os residentes(33). Os autores interpretam o dado encontrado a partir de uma perspectiva de contraste: o risco de repetição de LA aumenta à medida que o tamanho da população racial na qual o indivíduo se insere encontra-se em minoria em relação a seu contexto, por uma possível relação estressora. Entretanto, as variáveis individuais (como histórico de LA e situação conjugal, por exemplo) foram mais relevantes na amostra total, sendo o risco de repetição do comportamento autolesivo mais frequente na população branca(33-34). Tais hipóteses podem auxiliar na compreensão dos resultados encontrados no RS; contudo, faltam estudos com maior proximidade cultural e geográfica que aprofundem sobre questões raciais e LA.

Embora a maioria das notificações de LA seja de pessoas autodeclaradas brancas, se percebe, pelas taxas segundo raça/cor, que há pouca diferença proporcional em relação a brancos e pretos. Assim, evidencia-se que variáveis individuais podem ser mais relevantes na identificação de um perfil de risco aumentado para LA(33-34), e que, em relação ao RS, raça/cor não se mostra essencialmente conclusiva. Ressalva-se que as altas taxas entre as raças indígena e amarela são superestimadas devido às pequenas populações autodeclaradas (menos de 100 mil).

Uma das variáveis mais frágeis das notificações, identificada já em outros estudos epidemiológicos brasileiros(16,35), é a escolaridade, campo frequentemente deixado em branco ou ignorado. Esta também é uma limitação relevante nos resultados deste estudo: 32,8% compõem a lacuna no conhecimento sobre os anos de educação escolar formal da população, impossibilitando a generalização do dado. Destaca-se, assim, a importância da qualificação dos dados através do preenchimento adequado de todos os campos da ficha de notificação(16).

Dentre as notificações com dados válidos de escolaridade, indivíduos com até oito anos incompletos de educação formal representaram 42,5% dos casos. Cabe mencionar que o baixo nível de escolaridade encontrado também se deve à alta concentração de jovens na população analisada. Ainda assim, ressalta-se que baixa escolaridade é um indicativo de vulnerabilidade para comportamentos autolesivos, podendo ser relacionada a situações de assédio e intimidação pelos pares durante a infância e adolescência (bullying), induzindo ao fracasso e abandono escolar(36), bem como menos oportunidades de trabalho ou desemprego, que resultam em níveis socioeconômicos mais baixos e escassez de perspectivas futuras, por exemplo(6,10,33).

Os resultados referentes à situação conjugal nas notificações de LA indicam o predomínio de pessoas solteiras, separadas e viúvas. O dado coincide com um dos fatores de risco mais prevalentes em histórico de TS: isolamento social(37-38). A ausência de um relacionamento estável, bem como a de amigos íntimos; a insatisfação com a vida e sentimentos de solidão, de forma geral, apresentam correlação com emoções negativas, como ansiedade, depressão e agressividade, baixa autoestima e sentimentos de culpa(6,37). Cabe salientar que a maior proporção de notificações de solteiros decorre da faixa etária da população estudada (predominantemente adolescentes e adultos jovens).

Por fim, a indicação de deficiência/transtorno contabiliza mais de 35% do total de notificações. A presença de transtorno mental é, quiçá, a variável que mais permeia todas as outras acima citadas e discutidas. Entretanto, este é um campo da ficha de notificação de análise complexa, visto que os tipos de deficiência são dos mais variados e os transtornos não são melhor especificados do que duas categorias gerais: mental ou de comportamento. Muitos estudos são exaustivos em apresentar os principais sintomas de transtornos mentais relacionados à LA, sendo ansiedade, depressão, transtorno de personalidade limítrofe, transtornos alimentares e abuso de substâncias os mais frequentemente descritos(6,10,38). Por outro lado, dados específicos sobre deficiências, sejam elas físicas ou intelectuais, são incipientes na literatura pesquisada.

Aponta-se como limitação do presente estudo a grande proporção de campos em branco ou ignorados, mesmo problema evidenciado em boletins epidemiológicos publicados pelo Ministério da Saúde (2017(16) e 2019(19)). Ressalta-se, também, a utilização da população referente ao ano de 2015 no cálculo das taxas de 2016, 2017, 2018 e 2019, o que deve aumentar em algum nível as taxas apresentadas dos últimos anos. Por fim, é reconhecida a subnotificação das situações de violência e, especialmente, de lesões autoprovocadas, tanto pelo estigma associado quanto pelas fragilidades do sistema de vigilância em saúde(16,19). O desenvolvimento e a implementação de programas de prevenção requerem o reconhecimento das limitações dos dados disponíveis e o compromisso com a sua qualificação, a fim de refletir adequadamente a efetividade das intervenções(8,39-40). Ainda assim, o conjunto disponível de informações permite a identificação de fatores de risco e grupos mais vulneráveis, bem como a análise do comportamento do fenômeno(1).

 

Conclusão

Foi identificado o crescimento do número de notificações ao longo dos 10 anos do VIVA no estado, com destaque para os três últimos anos da série histórica (2017 a 2019). Verificou-se maior proporção de notificações de indivíduos do sexo feminino e na faixa etária de 20 a 29 anos, ao passo que as maiores taxas de notificação corresponderam à faixa etária de 15 a 19 anos de idade, com aumento expressivo nos últimos três anos do período analisado. Predominaram notificações de indivíduos da raça/cor branca, com baixa escolaridade, solteiros e sem presença de deficiência/transtorno. A residência foi o local predominante de ocorrência das LA, e 41% das notificações foram de pessoas que já haviam se autoagredido ou tentado suicídio previamente. O presente estudo aponta para a necessidade de pesquisas que aprofundem o conhecimento sobre a violência autoprovocada, especialmente sobre os fatores associados à ausência ou presença de intencionalidade suicida no comportamento autoagressivo entre adolescentes e adultos jovens, a fim de subsidiar estratégias de prevenção específicas.

 

Agradecimentos

A Eduardo Viegas da Silva, pela contribuição na construção do método e apresentação dos resultados; A Andréia Novo Volkmer e Márcia Elisa Krahl Fell, pela gestão dos dados ao longo desses 10 anos.

 

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Autor correpondente:
Nathalia Fattah
E-mail: nathalia-fattah@saude.rs.gov.br

Recebido: 30.03.2020
Aceito: 20.07.2020

 

 

Contribuição dos autores
Concepção e planejamento do estudo: Nathalia Fattah e Milenne Souza de Lima. Obtenção dos dados: Nathalia Fattah. Análise e interpretação dos dados: Nathalia Fattah e Milenne Souza de Lima. Análise estatística: Nathalia Fattah. Redação do manuscrito: Nathalia Fattah e Milenne Souza de Lima. Revisão crítica do manuscrito: Nathalia Fattah e Milenne Souza de Lima.
Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
Conflito de interesse: os autores declararam que não há conflito de interesse.
* Este artigo refere-se à chamada temática "Violência autoprovocada: autolesão não suicida e comportamento suicida".
* http://200.198.173.165/scripts/deftohtm.exe?snet/violencianet

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