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IGT na Rede

versão On-line ISSN 1807-2526

IGT rede vol.10 no.18 Rio de Janeiro jan./jun. 2013

 

ARTIGO

Ensaio Sobre a Cegueira: Uma releitura gestáltica da obra de Saramago

Blindness: A Gestalt rereading of the work of Saramago

 

Karina Masci Silveira*

Coordenadora do Serviço de Psicologia do Hospital das Clínicas/ UFMG (Universidade Feseral de Minas Gerais) - Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO:

Esse trabalho baseou-se em uma (re)leitura da obra literária Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago (2008) sob a luz da gestalt-terapia. A obra literária narra a trama de um surto epidêmico de cegueira e as dificuldades e crescimento alcançados pelos cegos após a perda da visão. Entendo a cegueira enquanto metáfora de adoecimento psíquico e a recuperação da visão como metáfora de cura, a obra literária foi utilizadacomo ilustração do adoecimento do homem moderno e o processo de cura foi utilizado como simbolização do processo psicoterapêutico de base gestáltica. Sendo assim, estabeleceu-se um entrelace entre a obra literária e as bases teóricas da gestalt-terapia.

Palavras-chave: awareness; contato; cura; figura-fundo; gestalt-terapia; neurose.


ABSTRACT:

This work was based on a (re) reading of literary Blindness by Jose Saramago (2008) based on gestalt therapy. The literary work tells the story of an epidemic of blindness and the difficulties and growth achieved by the blind after the loss of vision. I understand blindness as a metaphor for mental illness and recovery of sight as a metaphor for healing. The literary work was used as an example of the illness of modern man and the healing process was used as a symbolization of Gestalt psychotherapy process. Therefore, we established an interlock between the literary and the theoretical foundations of Gestalt therapy.

Keywords: awareness; contact; healing; figure-ground; Gestalt therapy; neurosis.


 

INTRODUÇÃO

Esse trabalho consiste em uma (re)leitura da obra literária do escritor português, José Saramago (2008). O Ensaio Sobre a Cegueira narra a história de uma cidade onde, inexplicavelmente, ocorre um surto epidêmico de cegueira. Observa-se aí, que não se tratava de uma cegueira convencional, ou seja, escura, mas de uma cegueira branca, como se os personagens estivessem mergulhados em um mar de leite. Pelo medo que a contaminação se espalhasse cada vez mais, o governo adota a medida de isolar os cegos em um internato e, nesse local, foram despejados centenas de cegos onde ficam evidentes explosões de sentimentos como culpa, hostilidade, menos valia, medo, impotência, sofrimento, fraqueza, entre outros. Porém, há entre eles uma mulher que não perdeu a visão. Essa mulher foi fundamental na vida desses cegos, uma vez que, com plena visão do que ocorria, ela os ajudou na organização, deu-lhes força e apoio e caminhou ao lado deles no difícil e longo processo de libertação e recuperação da visão por que passaram.

Tal como Saramago (2008) denuncia em sua trama, através dos cegos, o homem moderno também vivencia o sofrimento de não ser aprovado pela família, colegas, mercado de trabalho ou até mesmo pela sociedade em geral. Se sente pior que os outros, introjetando valores depreciativos a ele atribuídos e termina por cegar às suas potencialidades que poderiam ser desenvolvidas. Esse homem perdeu o contato com o seu interior, desacredita em seus próprios sentimentos e acaba cedendo às pressões da sociedade, considerando que os valores impostos por ela são melhores que os seus. Isso gera, na pessoa, o adoecimento e o desequilíbrio entre social e psíquico. O psicólogo clínico tem como objetivo ajudá-lo a recuperar (ou clarear) a visão e abri-lo novamente ao mundo das possibilidades. Afinal, a neurose se dá quando a pessoa fecha-se para a mudança, para o mundo (Perls, 1988; Ribeiro, 1998; Spangenberg, 2004).

Para Sapangenberg (2004) Segundo a visão fenomenológica e gestáltica, as defesas são importantes a todo ser humano; o mal é quando a pessoa vive defendida. A flexibilidade é sinal de saúde, de vida, ao passo que a rigidez e a repetição são símbolos de morte; ela congela o tempo, paralisa um gesto. A cegueira branca da obra do literário foi aqui analisada enquanto metáfora desse adoecimento psíquico do homem moderno.

Segundo Perls (1988), o homem moderno sabe pouco sobre a verdadeira vida criativa, possui um baixo grau de vitalidade e reduziu sua vida a exercícios verbais e intelectuais, substituindo, então, o viver pelas explicações psiquiátricas da vida. Essas características podem ser verificadas nos personagens de Saramago (2008): eles querem explicações científicas para a cegueira e aceitam as normas passivamente.

Porém, não apenas o adoecimento dos cegos foi analisado nesse trabalho, mas também o processo por que passou o grupo de cegos que acompanhou a mulher que não perdeu a visão, como metáfora de um processo de cura e recuperação da saúde de acordo com a abordagem gestáltica. O grupo desenvolveu relações saudáveis, tais como cuidado, contato, diálogo, aceitação, relações essas indispensáveis para a manutenção da saúde humana (Ribeiro, 1997; Ribeiro, 1998).

A gestalt-terapia é uma abordagem psicológica a qual se fundamenta no tripé filosófico constituído pelo humanismo, pelo existencialismo e pela fenomenologia. Além desse tripé filosófico, essa abordagem converge também as bases teóricas da psicologia da gestalt, da teoria de campo de Kurt Lewin e a teoria organísmica de Goldstein, além de contribuições de Reich, da psicanálise e do Zen-budismo. Isso contribuiu para sua formação da visão de homem como um ser em relação, livre, responsável e dinâmico (Ribeiro, 1985).

Conceito chave nesse trabalho, bem como para a gestalt-terapia, é o de contato. De acordo com Ribeiro (1998), tudo na natureza é contato e ele é a base do crescimento, do encontro com o outro e com o mundo, da mudança, do desenvolvimento da auto-estima e da autoconfiança. A base da psicoterapia gestáltica é a relação saudável que se estabelece entre cliente e psicoterapeuta, a qual propicia ambiente fértil para o desenvolvimento de ambos.

Então, é sob a luz dessa abordagem psicológica que se desenvolveu o presente trabalho de (re)leitura de Saramago (2008) enquanto metáfora dos processos de adoecimento e cura dos cegos.

 

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: RETRATO SOCIAL OU FICÇÃO LITERÁRIA?

Compartilhando das idéias de Velloso (1988), a literatura deve ser encarada como uma produção histórica e ideológica. Histórica, pois seus autores estão inseridos em determinados contextos históricos; ideológica porque traz consigo os valores e ideologias de quem escreve a obra. Sendo assim, ainda que ficção, as escritas tendem a transmitir uma interpretação, transfigurar a sociedade, problematizar a realidade histórica e transformá-la em uma aventura. O autor recria a realidade e transforma a História em história. Escolheu-se a obra Ensaio sobre a Cegueira (Saramago, 2008) como exemplo dessa interseção entre ficção literária e realismo social, do ponto de vista do autor. Através do romance, o Saramago (2008, p. 310) realiza diversas críticas sociais e, entre elas, expõe a complexidade dos “cegos que, vendo, não vêem”. Ribeiro (1998) também ressalta a importância do artista na sociedade, uma vez que a intuição aguçada desse, muitas vezes, o coloca à frente dos próprios cientistas e filósofos. Esse capítulo dedicou-se a fazer um resumo da obra literária através da narração dos acontecimentos e situações mais relevantes para esse trabalho.

 

O ROMANCE:

O Início da Cegueira:

A trama literária de Saramago (2008) se desenrola em uma cidade fictícia com diversas personagens, às quais ele não dá nomes, apenas características. A história inicia-se com um homem dirigindo em uma cidade grande. Enquanto ele aguardava o sinal abrir, ficou cego, subitamente. Desesperado, sai do carro gritando que não conseguia enxergar. Os outros motoristas, impacientes e sem querer saber o que se passava com aquele homem, buzinam e passam xingando o recém-cego por atrapalhar o trânsito. Algumas pessoas param para saber o que estava acontecendo e um homem se oferece para conduzi-lo até a sua casa. Ao chegar lá, o voluntário perguntou se o cego queria que entrasse para aguardar sua esposa, mas o cego, com medo do homem desconhecido o dispensou. Quando a esposa do cego chegou, o marido contou o ocorrido. Ela ligou para uma clínica oftalmológica e marcou uma consulta de urgência. Ao chegarem à porta do prédio, tiveram uma surpresa: o bondoso homem que ajudou o cego havia roubado o seu carro. Pegaram um táxi e seguiram para a clínica, indignados com a atitude covarde daquele homem.

No consultório se depararam com uma sala cheia à espera do oftalmologista. Havia uma mulher com óculos escuros para proteger sua conjuntivite, um rapazinho estrábico acompanhado de sua mãe, um velho com uma venda preta nos olhos e mais duas pessoas sem características de problemas na vista. A secretária avisou ao médico que o homem da cegueira súbita havia chegado e esse o passou na frente, por parecer ser um caso mais grave. Quando o homem descreveu como foi que aconteceu o fato e descreveu sua cegueira como uma cegueira branca, como se estivesse mergulhado num mar de leite, o médico achou muito estranho, afinal, as cegueiras são pretas, escuras. Examinou os olhos do jovem homem de 38 anos, mas não encontrou nenhum sinal de lesões que pudessem causar a tal cegueira. Pediu alguns exames para que o homem fizesse para investigar se podia ser algo relacionado ao cérebro. Ainda sem saber o que estava acontecendo com seus olhos, o homem e esposa foram para casa.

O Segundo Cego e a Constatação de uma Suposta Epidemia:

O primeiro cego indignado com o homem que o havia roubado, havia comentado com sua esposa que aquele ladrão podia, como castigo pelo que fez, perder a visão também. Sem saber, aquele homem, enquanto fugia com seu carro, ex-presidiário, acabou cegando no meio da rua e foi socorrido por dois policiais.

A rapariga dos óculos, após sair do consultório oftalmológico, foi se encontrar com um rapaz num hotel. Cuidadosa com sua conjuntivite, não tirou os óculos sequer para se deitar com o homem. No auge do orgasmo a rapariga fechou os olhos e viu tudo branco. Ao abrir os olhos, ainda sem entender o prazer que sentiu, percebeu que ainda via tudo branco. Só depois que percebeu que havia cegado e começou a gritar, pelada, pelo corredor do hotel. O seu acompanhante foi rapidamente embora e a deixou sozinha. Aos empurrões, a expulsaram do hotel e um policial grosseiro a levou para a casa.

Enquanto isso ocorria, o oftalmologista estava intrigado com o caso que recebeu em seu consultório. No fim de seu expediente, foi para a casa e comentou com a esposa sobre o estranho caso. Falou que não iria dormir cedo pois queria verificar se algum de seus livros falava sobre cegueira branca. Ligou para um colega, que também nunca ouviu falar de um caso parecido, mas se dispôs a pesquisar sobre o assunto. O médico passou parte da noite pesquisando e acabou dormindo sobre os livros. Quando abriu os olhos, um susto: ele também havia cegado. Foi para a cama silenciosamente para não acordar a esposa. No dia seguinte, quando sua mulher acordou, contou-lhe o que ocorreu. A mulher o ajudou a procurar o número de telefone das autoridades sanitárias, pois o médico acreditava ser o principal a fazer, uma vez que podia tratar-se de uma doença contagiosa.

A Segregação dos Cegos Como Providência:

Após a ligação do médico, o Ministério ainda recebeu a informação de mais dois casos de cegueira súbita, ou seja, o da mulher dos óculos e o do ladrão. Sendo assim, tomaram a seguinte decisão: recolher e levar os cegos a um manicômio abandonado e também as pessoas suspeitas de contágio. Rapidamente, o governo providenciou uma ambulância para recolher os cegos de que tinha notícia.

Ao chegarem à casa do médico, a mulher tentou entrar junto ao marido, mas foi barrada pelo argumento de que só podiam levar os cegos. Imediatamente a mulher disse que acabou de ficar cega e tinha que ser levada também. Porém, aquilo não era verdade. A mulher enxergava tão bem quanto antes, mas não queria deixar o marido sozinho. Enquanto esteve internada, a mulher manteve o segredo de que via, exceto para o marido e para a rapariga dos óculos escuros e, posteriormente, contou para as pessoas do grupo que se uniu a eles.

Chegados os primeiro cegos ao manicômio abandonado, eles tentaram se organizar em um quarto, marcaram suas camas através da ordem de disposição e começaram a se apresentar. Logo no início houve uma briga entre o primeiro cego e o ladrão que se reconheceram ao contarem como se cegaram. O primeiro cego acusava o ladrão de ter se aproveitado de um cego para roubar seu carro. O ladrão acusava o primeiro cego de ter-lhe transmitido o mal-branco.

Mais tarde, os cegos puderam ouvir uma voz vinda do alto-falante com as explicações dadas pelo Governo:

“O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidêmico de cegueira, provisoriamente designado mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio (...). A decisão de reunir num mesmo local as pessoas infectadas, e, em local mais próximo, mas separado, as que com elas tiveram algum tipo de contacto, não foi tomada sem séria ponderação” (Saramago, 2008, p.49-50).

Posteriormente às explicações, foram dadas diversas ordens aos cegos e, caso descumprissem, poderiam ser mortos. Eram normas como até onde podiam ir e como pedir produtos de limpeza e higiene. Prometeram ainda depositar no pátio caixas de comida três vezes ao dia.

Até aquele momento, os cegos acreditavam que a segregação naquele lugar fosse, como dizia o governo, uma medida de segurança adequada. Pensavam ainda que fosse uma rápida passagem de internação, até que se descobrisse a cura para o mal branco. Porém, rapidamente mais cegos foram enchendo o lugar. A comida nunca era o bastante para tanta gente e, além disso, não cumpriam mais a promessa de deixar as caixas de comida três vezes ao dia. Isso fazia com que os cegos, cada vez mais, perdessem a esperança de voltar à vida normal e desacreditassem em qualquer ajuda ou empenho por parte do Governo.

Um acidente ocorrido com um dos cegos, o ladrão, acabou confirmando a falta de compromisso por parte do Governo. Enquanto os cegos iam enfileirados ao banheiro, guiados pela esposa do médico, o ladrão assediou a rapariga dos óculos e essa, para defender-se, chutou-o com o salto fino. O salto entrou na perna do ladrão, ferindo-o seriamente. O médico, com auxílio de sua esposa, tentou lavar o ferimento, mas a água que saia das torneiras parecia podre, o que, ao invés de desinfeccionar, poderia acabar infeccionando mais. Fizeram uma atadura para proteger e estancar o sangue, mas sabiam que não seria o suficiente. Na mesma noite, o ladrão começou a arder em febre e a esposa do médico viu que o aspecto da ferida não era bom. Falou com o marido e no dia seguinte pediram remédio às autoridades dizendo que havia um homem ferido. Mas receberam uma negação como resposta. Posteriormente, o ladrão sem agüentar a dor que sentia, tentou ir próximo ao portão para pedir que o levassem ao hospital. Assustado com a atitude do cego e acreditando que fosse uma tentativa de fuga, o policial que tomava conta na guarita deu-lhe um tiro na cara. Esse fato causou pânico entre os cegos. Eles passavam, além de desacreditar do Governo, a temer as autoridades. Os cegos receberam uma enxada e tiveram que enterrar o ladrão. Outros episódios de tiros por parte dos policiais contra os cegos aconteceram, sempre com a justificativa de que a culpa era dos próprios cegos que estavam desrespeitando as normas.

As confusões no isolamento não aconteciam apenas entre cegos e autoridades, mas também entre os cegos. Disputas de poder, roubos de comida, desorganização, desrespeito, brigas e até estupro ocorreram lá dentro. A mulher do médico observava tudo, tentava organizar as pessoas, auxiliava àqueles que precisavam de ajuda, mas sem impor nada, afinal, acreditava que não podia sobrepor a eles, uma vez que todos estavam cegos, exceto ela. Ela agia sempre à medida que os próprios cegos lhe davam espaço para isso. Essa atitude não ocorreu, porém, com um grupo armado, liderado por um cego companheiro de outro cego, mas este de nascença. Aproveitando-se de sua condição superior em relação aos recém-cegos, esse grupo empunha poder sobre os outros, pegava comida dos demais e estuprava as mulheres dos outros grupos. Isso ocorreu até que a mulher do médico resolveu não seguir cedendo àquela situação humilhante para as mulheres. Silenciosamente entrou no quarto dos cegos “malvados” junto às outras mulheres e, no tempo certo, cortou a garganta do cego chefe do grupo. Isso causou grande confusão entre o grupo dos espertos e eles passaram a temer o que podia acontecer-lhes caso insistissem na idéia de estuprar as mulheres. Já as cegas molestadas diziam que as mãos daquela que o matou foram as mãos de todos os cegos. Porém, os cegos “malvados” detiam toda a comida e água e se negavam a distribuir e, coincidentemente, após o ocorrido o exército parou de entregar as caixas com alimentos para os cegos isolados na quarentena. A mulher do cego, após alguns dias sem comida, mesmo sem forças, resolveu organizar cegos voluntários para uma batalha. Armaram-se com pedaços de ferro e foram tentar invadir o quarto daqueles cegos. Porém, rapidamente foram espantados por tiros os quais mataram dois dos cegos atacantes. Inesperadamente, uma das cegas pegou um isqueiro que guardava em sua mala de mão e, sem que ninguém soubesse, foi silenciosamente até o quarto dos cegos “malvados” e colocou fogo nas cobertas das camas que esses cegos mantinham na porta como proteção. O fogo se alastrou rapidamente. A mulher se queimou junto dos cegos “malvados”. Desesperados com o cheiro da fumaça, os cegos dos outros quartos saíram gritando e com medo do fogo. Ninguém entendia o que estava acontecendo. Saíam todos pela porta fugindo do incêndio. A mulher do médico, gritando ajuda aos policiais, mal conseguia acreditar no que via: não havia ninguém nas guaritas. Eles estavam livres. Como relata Saramago (2008), “O portão está aberto de par em par, os loucos saem” (p. 210).

A Saída do Internato:

A mulher do médico, mantendo o grupo formado ainda no internato unido, ou seja, o médico, o velho da venda preta, o rapazinho estrábico, o primeiro cego, a mulher do primeiro cego e a rapariga dos óculos escuros, saiu em busca de alimento. Andavam em fila, um segurando o ombro do outro. O grupo já sabia que a mulher do médico não perdeu a visão. Então, ela ia à frente, guiando-os e contando o que via. No caminho entenderam que toda a cidade havia cegado. Os abrigos estavam quase todos ocupados por grupos de cegos e a cidade lotada de lixo e excrementos. A mulher do médico encontrou um abrigo seguro e achou melhor que todos descansassem lá enquanto fosse procurar comida. Encontrou um supermercado com cegos brigando pelos restos de alimentos que encontravam. Ela conseguiu encontrar a despensa do supermercado e voltou para alimentar a si e ao seu grupo. Assim foi por dias: a mulher do médico guiando, procurando comida, vendo os homens perderem sua humanidade, cachorros comendo mortos e a atmosfera carregada de odores de putrefação.

Saramago (2008) narra diversas situações de desespero, medo, cansaço, esperanças e desesperanças por que passaram os cegos e a mulher do médico. Expõe situações nas quais a mulher do médico é extremamente forte para com a responsabilidade de ela ser os olhos de seis pessoas, enquanto em outras passagens ela quase desiste e deseja até cegar como os outros por não suportar ver a situação em que se encontravam. A trama se desenrola de forma angustiante até que, enfim, o primeiro cego grita: “vejo”. E assim, cada um foi recuperando a visão, os cegos cantavam e gritavam a novidade por toda a cidade, como exemplifica a seguinte passagem de Saramago (2008): “A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda estava ali” (p. 310).

 

CEGUEIRA COMO METÁFORA DE ADOECIMENTO PSÍQUICO:

Após ter sido realizada uma exposição sobre a obra Ensaio sobre a Cegueira, do escritor português José Saramago (2008), foi desenvolvida uma releitura gestáltica da obra literária em questão. Esta foi entendida como uma metáfora da realidade social contemporânea e, por isso, tal como a gestalt-terapia, fala de vida.

A cegueira descrita por Saramago (2008), ao contrário da cegueira conhecida, era branca. Entendeu-se, então, que o autor, por ressaltar tantas vezes esse dado em sua obra, gostaria de dizer algo com isso. A fenomenologia, como visto, mostra que o mundo é feito de possibilidades e o existencialismo completa dizendo que o homem é livre e responsável por suas escolhas. O neurótico é aquele que se cristaliza no passado e não vê as possibilidades que o mundo lhe oferece. Sendo assim, a cegueira branca pode representar essa ofuscação diante das possibilidades. Aqueles cegos não conseguiam eleger o que era figura frente ao que o mundo lhes oferecia, tal como ocorre quando todas as cores, todas as luzes se juntam e tem-se, com isso, o branco. Elucidando, menciono a seguinte passagem de Saramago (2008): “Mas quem nos diz a nós que esta cegueira branca não será precisamente um mal do espírito, e se o é, ponhamos por hipótese, nunca os espíritos daqueles cegos estiveram tão soltos como agora estão, fora dos corpos, e portanto mais livres de fazerem o que quiserem” (p.90).

Ao final do livro o Saramago (2008) conclui através do diálogo entre a mulher do médico e o médico: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem” (p.310).

A sociedade moderna oferece inúmeros estímulos, mas muitas vezes o homem não consegue manter um contato consciente com o que Ribeiro (1998) denominou de sábio interior e, assim, aliena-se, adoece. Esse termo expressa aquilo que diz da própria essência, da voz que grita dentro de nós e nos confronta com questões frente à realidade, a cada instante e que é fundamental para o processo de autorregulação (homeostase) ao qual, de acordo com Perls (1988), todo ser humano tende e necessita para a manutenção do equilíbrio e da saúde. Ribeiro (1998) sinaliza que para atingirmos o caminho da cura, é preciso “Acreditar, com A maiúsculo, em nosso sábio e, portanto, em nós mesmos e, como decorrência lógica, acreditar no Outro e no Mundo” (p. 57). Nessa mesma direção, Giussani (2009) coloca que ser responsável é saber responder conscientemente a um chamado. Ao chamado da realidade. Para tanto, faz-se necessário o exercício da atenção e da aceitação. Prestar atenção e acolher o destino, no entanto, não são posicionamentos automáticos. Precisam de trabalho e educação. Somente com essas capacidades é que conseguiremos interpretar os sinais da existência. Caso contrário, não faremos a pergunta adequada e, portanto, não buscaremos uma resposta verdadeira. Por não estar atento ao chamado da realidade, muitas vezes as pessoas elegem o que os outros querem e descartam aquilo que realmente era importante para a satisfação das suas necessidades.

Perls (1988) alerta que, apesar de o mundo oferecer amplas possibilidades de enriquecimento e diversão, o homem moderno vagueia sem objetivo. O contato com o mundo e com as pessoas não é positivo, não ajuda no crescimento e desenvolvimento do sujeito e esse acaba cedendo às pressões da sociedade sem, no entanto, manter o equilíbrio entre o eu e o não-eu. A sua fronteira de contato não está bem demarcada o que o leva a se misturar com a sociedade e com o outro. Já não sabe mais o que é dela e o que não é. Ribeiro (1998) afirma que o ser humano, numa tentativa de ser amado, renuncia a si mesmo e ao que ama e cede à obediência. Ele passa a captar a autoridade alheia e corresponder às suas expectativas. Assim, seus contatos baseiam-se nessa obediência ilimitada e infundada à autoridade. Saramago (2008) demonstra isso em diversas passagens de sua obra. Os cegos seguiam as ordens vindas do Governo, dos policiais, dos cegos malvados. E por que não se rebelaram por tanto tempo? Por que aceitaram calados as humilhações do governo e dos cegos malvados? Lembrando-se que o objetivo primeiro do ser humano é a sobrevivência, é possível entender a atitude daqueles cegos. Enquanto obedientes, eram “aceitos” e recebiam seu alimento. No princípio os cegos aceitaram passivamente serem presos no isolamento e acreditaram, porém sem reflexões, nas palavras do Governo de que aquilo era o melhor a ser feito: “O Governo está perfeitamente consciente de suas responsabilidades e espera que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem de ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um acto de solidariedade para com o resto da comunidade nacional (...) O Governo e a Nação esperam que cada um cumpra o seu dever” (p. 50. Grifo nosso).

Saramago (2008) demonstra com clareza o quanto os cegos obedecem às ordens, mesmo que isso seja contra o sentido humano, seja por medo ou por considerá-las normais: “Não há nada a fazer, eles nem têm culpa, estão cheios de medo e obedecem a ordens, Não quero acreditar que isto esteja a acontecer, é contra todas as regras de humanidade, É melhor que acredites, porque nunca te encontraste diante de uma verdade tão evidente” (p.69). E ainda, mais à frente: “Avisos como aquele de Abandonar o edifício sem prévia autorização significará morte imediata, ou Os internados enterrarão sem formalidades o cadáver na cerca, tomavam agora, graças à dura experiência da vida, mestra suprema de todas as disciplinas, pleno sentido, enquanto aquele que prometia caixas de comida três vezes ao dia se tornava em grotesco sarcasmo ou ironia mais difícil de suportar ainda” (p.95).

Essas passagens ilustram pelo menos duas teorias expressas pela gestalt-terapia: a renúncia do ser humano em prol da sociedade e a importância fundamental da experiência. Perls (1988) fala que o homem tende a manter um equilíbrio entre o social e o psicológico. Porém, o neurótico retira-se cada vez mais e permite que a sociedade o influencie demais, e passa, assim, a ver a sociedade como maior que a própria vida. Esse desequilíbrio ocorre quando indivíduo e sociedade vivenciam necessidades discordantes e o indivíduo não consegue identificar qual a necessidade dominante. Quanto à importância da experiência, Perls, Hefferline e Goodman (1997) afirmam que é a partir dela que se estabelecem contatos, que se é possível chegar à awareness, à organização/reorganização figura-fundo. É por isso, segundo Polster e Polster (1979) que a gestalt-terapia trabalha a partir da experiência do aqui-e-agora como sendo esta a responsável pelo fluxo de conscientização.

O ser humano, segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997), tem perdido a sensibilidade às suas experiências e às suas próprias necessidades. Isso acaba gerando confusão e perturba a formação figura-fundo. Saramago (2008) deixa clara essa dificuldade de os cegos se perceberem e entrarem em contato com suas necessidades, de deixarem emergir uma figura, mesmo que apenas sua sombra: “Aquela confusão, meu Deus, a falta que os olhos nos fazem, ver, ver, ainda que não fosse mais que umas vagas sombras, estar diante de um espelho, olhar uma mancha escura difusa e poder dizer, Ali está a minha cara, o que tiver luz não me pertence” (p. 75).

Outra questão apontada por Saramago (2008) foi o fato de toda a sociedade ter sido “contaminada” pela cegueira branca (neurose?), exceto uma pessoa: a mulher do médico. Perls (1988) explica que tanto a sociedade, quanto o indivíduo estão doentes, afinal, uma sociedade a qual tem muitos neuróticos torna-se uma sociedade neurótica e uma sociedade neurótica acarreta em um grande número de neuróticos: “O pior é que as famílias, sobretudo as menos numerosas, rapidamente se tornaram em famílias completas de cegos, deixando portanto de haver quem os pudesse guiar e guardar, e deles proteger a comunidade de vizinhos com boa vista, e estava claro que não podiam esses cegos, por muito pai, mãe e filho que fossem, cuidar uns dos outros, ou teria de suceder-lhes o mesmo que aos cegos da pintura, caminhando juntos, caindo juntos e juntos morrendo” (p. 125).

Uma sociedade neurótica, tal como um neurótico, são incapazes de ver suas próprias necessidades e, assim, não podem satisfazê-las. O neurótico, segundo Perls (1988) está ligado ao passado, o seu presente é obscuro e é torturado pelo futuro exatamente porque o presente lhe escapa. Saramago (2008) demonstra essa falta de temporalidade: “Bons dias, perdera-se o costume de dar os bons dias, não só porque dias de cegos, propriamente falando, nunca seriam bons, mas também porque ninguém poderia estar inteiramente certo de que os dias não fossem tardes ou noites” (p. 215). E ainda: “Então não há futuro, disse o velho da venda preta, Não sei se haverá futuro, do que agora se trata é de saber como poderemos viver neste presente, Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse, Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos, mas então deixará de ser humanidade, o resultado está à vista, qual de nós se considerará ainda tão humano como antes cria ser” (p. 244).

Além da confusão temporal, fronteiras de contato mal definidas, contatos negativos, Saramago (2008) aponta também o medo e a falta de esperança como geradores da cegueira. Fatores que inibem o contato o qual é, segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997), um ajustamento criativo entre o organismo e o meio e é isso que gera crescimento. Porém, na neurose o ajustamento criativo é interrompido e padrões estereotipados surgem. O medo, no caso daqueles cegos, por muito tempo interrompeu o processo de ajustamento criativo. Eles apenas se “ajustavam” às normas, mas não criavam. Ribeiro (1998) localiza que a descrença e a falta de fé em si é um traço característico da sociedade moderna. Isso abala a autoestima e autoconfiança, munindo o sujeito de defesas, resistências e alienações. Saramago (2008) demonstra as distorções da visão advindas do medo em uma cena na qual os soldados ainda não contagiados, mas já cegos de medo, cheios de defesas e com a autoconfiança abalada, matam vários cegos que queriam apenas chegar mais próximo do portão para aguardarem a chegada da comida:

“Os cegos começaram a cair uns sobre os outros, caindo recebiam no corpo balas que já eram um puro desperdício de munição, foi tudo tão incrivelmente lento, um corpo, outro corpo, parecia que nunca mais acabavam de cair, como às vezes se vê nos filmes e na televisão. Se ainda estamos em tempo de ter um soldado de dar contas das balas que dispara, estes poderão jurar sobre a bandeira que procederam em legítima defesa, e por acréscimo também em defesa dos seus camaradas desarmados que iam em missão humanitária e de repente se viram ameaçados por um grupo de cegos numericamente superior” (Saramago, 2008, p. 88-89).

Com relação às defesas neuróticas, há que se reconhecer também a sua importância. Elas também têm funções autorreguladoras. O problema, como mencionado anteriormente, é que o neurótico vive defendido. Saramago (2008) demonstra metaforicamente essa diferença entre defender-se e viver defendido, ao narrar uma cena em que os cegos entram no prédio da rapariga dos óculos escuros:

“Com o nervosismo da pressa, a rapariga dos óculos escuros tropeçou duas vezes, mas achou que o melhor era rir-se de si mesma, Imagina tu, uma escada que eu dantes era capaz de subir e descer de olhos fechados, As frases feitas são assim, não têm sensibilidade para as mil subtilezas do sentido, esta, por exemplo, ignora a diferença entre fechar os olhos e ser Cego” (p.234. Grifo nosso).

Porém, o literário demarca também que, enquanto se é vivo, é possível recuperar-se ou curar-se: “Meu general, essa deve ser a doença mais lógica do mundo, o olho que está cego transmite a cegueira ao olho que vê, já se viu coisa mais simples, Temos aqui um coronel que acha que a solução era ir matando os cegos à medida que fossem aparecendo, Mortos em vez de cegos não alteraria muito o quadro, Estar cego não é estar morto, Sim, mas estar morto é estar cego” (Saramago, 2008, p. 111. Grifo nosso).

 

A RECUPERAÇÃO DA VISÃO COMO METÁFORA DE CURA:

Até o momento, discorri sobre o adoecimento/ cegueira da obra literária em questão, poderei acerca das características dos cegos que podem ser lidas como metáforas de adoecimento psíquico ou neurose: disfunção de contato, desorganização, desequilíbrio entre demandas sociais e psíquicas, confusão e perturbação da formação figura-fundo, medo, descrença em si mesmo. Porém, Saramago (2008) descreve também diversas situações e diálogos que demonstram crescimento e conscientização. Portanto, levantarei considerações também sobre o processo de cura, afinal, a obra demonstra várias situações em que os cegos, principalmente o grupo que acompanhava a mulher do médico, experenciaram contatos verdadeiros, propícios ao crescimento e recuperação da visão. Partindo da consideração de que uma psicoterapia fundamentada na gestalt-terapia visa o crescimento do indivíduo e sua conscientização ampla (awareness), foi feita uma leitura a partir desses relacionamentos ocorridos no doloroso processo o qual passaram os cegos sob a ótica gestáltica.

Os cegos que seguiam com a mulher do médico puderam encontrar contatos que contribuíram para a recuperação da autoconfiança e da autoestima:

“Tanto ela (a mulher do médico) se tema cansado a dizer-nos, Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoa, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais, tantas vezes o repetiu, que o resto da camarata acabou por transformar em máxima, em sentença, em doutrina, em regra de vida, aquelas palavras, no fundo simples e elementares. Provavelmente, um estado de espírito, propício ao entendimento das necessidades e das circunstâncias, foi o que contribui, ainda que de forma colateral, para o benévolo acolhimento que ali foi encontrar o velho da venda preta” (Saramago, 2008, p. 119).

E Saramago (2008) reforça, mais à frente, o quanto ter olhos naquele grupo, uma pessoa que os pudesse guiar quando lhes faltava visão e que proporcionou um espaço de acolhimento, cuidado e respeito foi importante para que aqueles cegos conseguissem manter a dignidade frente às adversidades encontradas: “Há que reconhecer que os primeiros cegos trazidos a esta quarentena foram capazes, com maior ou menor consciência, de levar com dignidade a cruz da natureza eminentemente escatológica do ser humano” (p. 133).

Também em um processo terapêutico, posturas como essas exemplificadas, de acolhimento, respeito e cuidado, são fundamentais para o estabelecimento do contato. Ribeiro (1997) demonstra que o encontro pleno entre cliente e terapeuta e contatos que possibilitam a experienciação de aceitação, são um convite para o entregar-se. Para o autor, o cuidado é a alma do contato e sem aquele, este não pode existir. O cuidado, o acolhimento e o respeito encontrados nas relações estabelecidas entre o grupo de cegos que acompanhava a mulher do médico foi fundamental para que eles (o grupo e a mulher) pudessem experenciar contatos saudáveis e, portanto, não-neurotizantes.

Para Ciornai (2004), para haver esse contato saudável, a inclusão no fenômeno é essencial. Isso significa que a pessoa deve penetrar no fenômeno, sem, portanto, perder seu próprio referencial. Essa postura de inclusão traz consigo confirmação e aceitação. Foi isso que fez a mulher do médico ao fingir-se cega para ser levada junto com o marido para a quarentena. Ela penetrou no mundo dos cegos, como em uma atitude empática, para guiá-los. Além disso, a mulher do médico demonstra outras posturas que favorecem esse encontro, tal como Ciornai (2004) pontua: a presença envolvida e atenta, o compromisso com o diálogo, disponibilidade para a relação com o outro e a não-exploração, no sentido de não manipulá-los para gratificações narcísicas: “A mulher do médico levantou-se, por sua vontade iria ajudar os recém-chegados, dizer-lhes uma palavra simpática, guiá-los até aos catres, informar (...) Não se mexeu, só disse ao marido, Estão a chegar (...) O médico disse, levantando a voz, Tenham calma, não se precipitem, aqui somos seis pessoas, vós quantos sois, há lugar para todos” (Saramago, 2008, p. 65).

Nessa passagem fica clara a sua presença de forma inteira e disponível, bem como o desinteresse em gratificações narcísicas, atitudes as quais trouxeram, implicitamente, um incentivo à autonomia do marido. Ao invés de fazer por ele, percebendo ser uma situação a qual o marido estava preparado para enfrentar, ela apenas lhe disse o que acontecia e deixou que ele escolhesse e agisse da forma como queria. Essas posturas de inclusão e presença genuína podem ser encontradas também em uma passagem da obra literária mais à frente: “Entre os cegos havia uma mulher que dava a impressão de estar ao mesmo tempo em toda parte, ajudando a carregar, fazendo como se guiasse os homens, coisa evidentemente impossível para uma cega, e, fosse por acaso ou de propósito, por mais que uma vez virou a cara para o lado da ala dos contagiados, como se pudesse ver ou lhes percebesse a presença” (Saramago, 2008, p. 91).

Posturas como essas que propiciam o estabelecimento do contato são fundamentais para a gestalt-terapia, uma vez que esta se centra no conceito de contato, considerando-o, dessa forma, matéria-prima da relação terapêutica. A ternura, a suavidade, a clareza são, segundo Ribeiro (1997), alimentos do contato saudável, o qual permite que a pessoa supere seus próprios limites.

Tendo em vista esse estabelecimento de contatos saudáveis, ou seja, relações confirmadoras e empáticas, Ribeiro (1998) pontua a importância do fortalecimento da autoconfiança e da auto-estima como indicadores de saúde. Para o autor, tanto doença, quanto saúde ou neuroses e cura, são produtos das relações que a pessoa estabelece com o meio. Porém, para que esses contatos possam existir, é necessário reconhecer os próprios limites e os limites do outro. Se a pessoa não está preparada para superá-los, é preciso respeitar ao invés de empurrá-la e apressá-la. Essas atitudes de respeito aos limites também pode ser exemplificada através de passagens da narrativa de Saramago (2008): “Mal-intencionados e de mau carácter foram também aqueles que não só intentaram, mas conseguiram, receber comida duas vezes. A mulher do médico apercebeu-se do condenável, mas achou prudente não denunciar o abuso. Não queria nem pensar na conseqüências que resultariam da revelação de que não estava cega, o mínimo que lhe poderia acontecer seria ver-se transformada em serva de todos, o máximo talvez fosse converterem-na em escrava de alguns” (p. 93).

Utilizando-se da prudência, a mulher do médico não denunciou aquilo que viu, mas que os demais internos não estavam preparados para ver. Na passagem seguinte, Saramago (2008) deixa explícito o reconhecimento do seu próprio limite: “Em que loucura estou a pensar em meter-me, duvidou a mulher do médico, mesmo que eles não exigissem, e nada é menos certo, eu própria não agüentaria sem me pôr aí a lavar, a limpar, quanto tempo me durariam as forças, isto não é trabalho para uma pessoa sozinha” (p. 136).

O terapeuta deve, assim como a mulher do médico, ter consciência de seus limites e de suas neuroses, bem como os de seus clientes. Ribeiro (1998) afirma a importância desse saber até onde se pode ou consegue ir, ou ainda, nas palavras da personagem de Saramago (2008), “Irei até onde for capaz, não posso prometer mais” (p. 293).

Além do respeito aos limites, a mulher do médico demonstrava respeito aos cegos como um todo, como pessoas. Assim, não querendo desvelar aquilo que não quer ou não pode ser desvelado, ela sente-se incomodada pelo fato de ver os cegos sem que eles soubessem que ela os observava: “Pela primeira vez, desde que aqui entrara, a mulher do médico sentiu-se como se estivesse por trás de um microscópio a observar o comportamento de uns seres que não podiam sequer suspeitar da sua presença, e isto pareceu-lhe subitamente indigno, obsceno, Não tenho o direito de olhar se os outros não me podem olhar a mim, pensou” (Saramago, 2008, p. 71).

Então, foi nesse ambiente fortalecedor e acolhedor, especialmente propiciado pela postura da mulher do médico, que os cegos daquele grupo encontraram momentos de diálogos, de respeito, de aceitação, de compreensão, de cuidado. Momentos estes fundamentais para o crescimento, desenvolvimento da autoestima, da autoconfiança e da coragem.

O primeiro cego a demonstrar esses sinais de crescimento de forma clara na obra literária, foi o ladrão. Quando ele chegou ao internato demonstrou sinais de adoecimento, não apenas o problema da perda da visão enquanto fenômeno físico, mas também de adoecimento psíquico. Ribeiro (1998) destaca, nesse sentido, que uma doença é relativa ao organismo como um todo, não um ente separado, afinal, a abordagem gestáltica implica numa visão holística de homem. Para ele, muitas pessoas estão com a autoconfiança adoecida, perderam o contato com o seu íntimo, alienaram-se, baseiam-se em relação de poder ou, por outro lado, entregam-se ao vício, apresentam-se infelizes, defensivos, agressivos e medrosos. Assim, escamoteiam a responsabilidade e buscam um bode expiatório para as suas desgraças. Isso fez o ladrão ao acusar e agredir o primeiro cego como causador da epidemia. Porém, após ferir-se gravemente, recebeu cuidado, experenciou relações de respeito e acolhimento, podendo, então, voltar-se para si e alcançar, com clareza, sua autoconsciência e autonomia:

“Não posso continuar aqui a apodrecer, reconheço que o seu marido fez o que estava ao seu alcance, mas quando eu tinha de roubar um carro não ia pedir a outro que o roubasse por mim, agora é o mesmo, eu é que lá tenho de ir, quando eles me virem nesse estado perceberão logo que estou mal, metem-me numa ambulância e levam-me ao hospital (...) é o que se faz com os condenados à morte, se têm uma apendicite operam-nos e só depois é que os matam, para que morram com saúde (...) Assombrava-o o espírito lógico que estava descobrindo na sua pessoa, a rapidez e o acerto dos raciocínios, via-se a si mesmo diferente, outro homem, e se não fosse esse azar da perna estaria disposto a jurar que nunca em toda a sua vida se sentira tão bem” (Saramago, 2008, p. 77; 79-80).

Após esse momento em que demonstrou crescimento, awareness, organização, insights, ele tomou uma atitude de coragem: enfrentou a dor causada pelo ferimento na perna e foi em busca de ajuda, querendo, com isso, satisfazer a necessidade que se configurou claramente. Organizou-se e cresceu.

O crescimento, para Ribeiro (1997), é função do contato o qual permite deixar livre o fluxo do encontro com o outro e com a vida e, assim, gerar mudanças e abrir novas possibilidades. Ele afirma que é a partir do contato que a pessoa pode se encontrar com a sua coragem, seu medo, sua esperança. O contrário disso é a desorganização, o desajuste, ou seja, a interrupção do fluxo do contato, da formação figura-fundo e, consequentemente, da não satisfação das necessidades atuais do organismo.

É preciso organizar-se para que se possa almejar a saúde ou a cura, afinal, segundo Ribeiro (1997), a saúde pressupõe um relacionamento harmonioso dos sistemas psíquicos, ao passo que adoecer é sinal de desequilíbrio. Na saúde há a satisfação adequada das necessidades, o que implica na autorregulação do organismo e liberação do processo dinâmico da formação figura-fundo. Saramago (2008) também ressalta a importância da organização como sinal de saúde e desorganização como doença: “Uma organização, o corpo também é um sistema organizado, está vivo enquanto se mantém organizado, e a morte não é mais do que o efeito de uma desorganização, E como poderá uma sociedade de cegos organizar-se para que viva, Organizando-se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos” (p. 281-282).

Nesse trecho pode-se perceber que, a partir de um todo organizado, as pessoas podem começar a ver, ou seja, quando a pessoa se organiza, deixa fluida a formação figura-fundo e é capaz de entrar em contato com o seu interior, ela é capaz de ter clara a figura que se forma, a necessidade que precisa ser satisfeita, a realidade na qual está inserida. O espaço encontrado pelos cegos do grupo da mulher que tinha olhos ajudou-os a se organizarem. Saramago (2008) “Olhos, uns simples olhos, uma mão capaz de nos conduzir e guiar, uma voz que me diga, Por aqui. Estes cegos, se não lhes acudirmos, não tardarão a transformar-se em animais, pior ainda, em animais cegos” (p. 134).

A mulher do médico também tinha esse espaço para si. Há uma passagem na qual Saramago (2008) deixa bem claro a sua necessidade de ela voltar seus olhos para si para, então, não perder seu referencial, seu eixo e entrar em contato com as suas necessidades: “Uma vontade de rolar-se sobre si mesma, os olhos, ah, sobretudo os olhos, virados para dentro, mais, mais, mais, até poderem alcançar e observar o interior do próprio cérebro, ali onde a diferença entre o ver e o não ver é invisível à simples vista” (p. 157-158).

Perls (1988) nos alerta para a importância do (re)encontro com o sábio interior, para a (re)significação dos fatos, não apenas no nível cognitivo, mas também no nível dos sentimentos e da percepção de si e do mundo. Saramago (2008) expõe essa visão de integração entre corpo-mente: “De que servirá ter olhos límpidos, e belos, como estes são, se não há ninguém para os ver. A mulher do médico disse, Todos temos nossos momentos de fraqueza, ainda o que nos vale é sermos capazes de chorar, o choro muitas vezes é uma salvação, há ocasiões em que morreríamos se não chorássemos (...) As mãos da rapariga dos óculos escuros buscaram onde agarrar-se, mas foi a mulher do médico que suavemente as prendeu nas suas, Descanse, descanse” (p. 101).

Primeiramente, esse trecho aponta para algo já mencionado na fenomenologia e reforçado por Perls (1988): “Em verdade, eu posso dividir a frase “Eu vejo uma árvore” em sujeito, verbo e objeto. Mas na experiência o processo não pode ser cindido desta maneira. Não há vista sem algo para ser visto. Nem algo é visto sem olho para vê-lo” (p. 32). Porém, essa passagem literária evidencia também que o contato com o interior, no caso a fraqueza e o choro, é fundamental para o equilíbrio do sujeito. A mulher do médico (re)significou a importância dos olhos. Se ela apenas racionalizasse, poderia supor, tal como o fez inicialmente a rapariga dos óculos escuros, que eles servem apenas para ver, no sentido físico. Porém, numa situação em que a fraqueza advinda da situação em que olhos que viam deixaram de ver, encontra o outro sentido desses: o choro, enquanto forma de expressão não verbal. O seu marido ainda abre outro significado para esses: “O médico só disse, Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver a alma, A alma, perguntou o velho da venda preta, Ou o espírito, o nome pouco importa, foi então que, surpreendentemente, se tivermos em conta que se trata de pessoa que não passou por estudos adiantados, a rapariga dos óculos escuros disse, Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos” (Saramago, 2008, p. 262).

Nesse trecho os olhos são entendidos como espelhos da alma. Ainda aí, Saramago (2008) abre uma discussão sobre o que é alma, mantendo a visão holística de homem. Essa discussão sobre esse aspecto assemelha-se à visão existencial-fenomenológica de essência. A essência, segundo Ribeiro (1998), é construída a partir das relações que a pessoa estabelece ao longo da vida e é o que torna a pessoa o que ela é. Sendo assim, a existência é anterior à essência. Esta é formada a partir daquela.

Esses trechos apontam também para algo já denunciado, segundo Ribeiro (1998), pela gestalt-terapia: a substituição da disjunção OU pela aditiva E. Os olhos não servem apenas para ver, no seu sentido literal, OU para chorar, OU para ver a alma das pessoas, mas sim, para todas essas possibilidades. Sendo assim, esses trechos apontam para a integração consciência E corpo, sentimento E ação. Porém, esse pensamento é difícil de ser encontrado na modernidade, uma vez que as pessoas estão muito mais acostumadas a excluir que incluir.

Ciornai (2004) questiona essa dualidade estabelecida, responsável pela cisão corpo-mente-social. Para ela, as pessoas estão viciadas no pensar, o que atrapalha o fluxo de awareness. No processo terapêutico, o (re)estabelecimento da totalidade da pessoa é fundamental. É preciso deixar a mente para se chegar aos sentidos; abrir-se à vivência e ao contato e confiar na sabedoria interna de cada um e na própria. Afinal, como expões Saramago (2008), “Se não podemos confiar uns nos outros, aonde é que vamos parar, perguntavam uns” (p. 107).

Como já demonstrado, a mulher do médico possuía essas posturas de confiança e abertura, presença atenta, aceitação, respeito aos limites e ao próximo, ternura, suavidade, clareza, carinho. Todas essas posturas são mencionadas por Ribeiro (1997) e Ribeiro (1998), como sendo fundamentais para o processo terapêutico enquanto propiciador de mudança, cura e saúde. Isso pode ser percebido no trecho que se segue:

“Viu o marido levantar-se e, de olhos fixos, como um sonâmbulo, dirigir-se à cama da rapariga dos óculos escuros. Não fez um gesto para o deter. De pé, sem se mexer, viu como ele levantava as cobertas e depois se deitava ao lado dela, como a rapariga despertou e o recebeu sem protesto, como as duas bocas se buscaram e encontraram, e depois o que tinha de suceder sucedeu, o prazer de um, o prazer do outro, o prazer de ambos, os murmúrios abafados, ela disse, Ó senhor doutor, e estas palavras podiam ter sido ridículas e não o foram, ele disse, Desculpa, não sei o que me deu, de facto tínhamos razão, como poderíamos nós, que apenas vemos, saber o que nem ele sabe. Deitados no catre estreito, não podiam imaginar que estavam a ser observados, o médico de certo que sim, subitamente inquieto, estaria dormindo a mulher, perguntou-se, andaria aí pelos corredores como todas as noites, fez um movimento para voltar à sua cama, mas uma voz disse, Não te levantes, e uma mão posou-se no seu peito com a leveza de um pássaro ele ia falar, talvez repetir que não sabia o que lhe tinha dado, mas a voz disse, Se não disseres nada compreenderei melhor. A rapariga dos óculos escuros começou a chorar, Que infelizes nós somos, murmurava, e depois, Eu também quis, eu também quis, o senhor doutor não tem culpa, Cala-te, disse suavemente a mulher do médico, calemo-nos todos, há ocasiões em que as palavras não servem de nada, quem me dera mim poder também chorar, dizer tudo com lágrimas, não ter de falar para ser entendida. Sentou-se na borda da cama, estendeu o braço por cima dos dois corpos, como que para cingi-los no mesmo amplexo, e, inclinando-se toda para a rapariga dos óculos escuros, murmurou-lhe baixinho ao ouvido, Eu vejo. A rapariga ficou imóvel, serena, apenas perplexa porque não sentia nenhuma surpresa, era como se já o soubesse desde o primeiro dia e só não tivesse querido dizê-lo em voz alta por ser um segredo que não lhe pertencia (...) Depois a mulher do médico disse ao marido, Deixa-te ficar um pouco mais, se queres, Não, vou para a nossa cama, Então ajudo-te. Ergueu-se para lhe deixar os movimentos livres (...) Ele levantou-se devagar, buscando apoio (...) então ela, como sempre havia feito, agarrou-lhe um braço, mas agora o gesto tinha um sentido novo, nunca ele precisara tanto que o guiassem como neste momento, porém não poderia saber até que ponto, só as duas mulheres o souberam verdadeiramente, quando a mulher do médico tocou com a outra mão a face da rapariga e ela impulsivamente lha tomou para levar aos lábios. Pareceu ao médico que ouvia chorar, um som quase inaudível, como só pode ser o de lágrimas que vão deslizando lentamente até as comissuras da boca e aí se somem para recomeçarem o ciclo eterno das inexplicáveis dores e alegrias humanas. A rapariga dos óculos escuros ia ficar só, ela era a que devia ser consolada, por isso a mão da mulher do médico tardou tanto a desprender-se” (Saramago, 2008, p. 171-173).

Esse trecho demonstra a importância do deixar sentir, sem a sua interrupção através de justificações racionalizadas, do acolhimento do outro enquanto pessoa, do respeito entre os três personagens, a compreensão contextualizada do fato. Foram momentos como esse, vivenciados por todos daquele grupo, que possibilitaram a cura dos cegos. E demonstrando que o contato transforma, Saramago (2008) ressalta através da personagem da rapariga dos óculos escuros, transformada pelas relações, que hoje seria capaz de viver com o velho da venda preta: “A mulher que então era não o diria, reconheço, quem o disse foi a mulher que sou hoje” (p. 292).

Então, entre tantos acontecimentos difíceis, dolorosos, que beiravam o insuportável, o grupo da mulher do médico e ela mesma, devido às relações terapêuticas que se estabeleceram, foram, ao longo do caos que lhes era oferecido, se organizando, fortalecendo, (re)significando as relações, recuperando a auto-estima, a autoconfiança e a coragem, se abrindo para a vida, mudando, transformando. Eles escolheram viver o mais dignamente possível dentro das possibilidades que estavam ao alcance. Os olhos que viam, ou seja, os da mulher do médico foram fundamentais nesse processo de cura o qual passaram os personagens, uma vez que foram a luz que faltava e o guia necessário para que não se perdessem. Eles puderam (re)nascer, o que é sempre possível enquanto se está vivo: “Finalmente, arrancou uma rama da roseira que crescia num canto do quintal e foi plantá-la na base do moimento, do lado da cabeça. Ressurgirá, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Ela, não, respondeu a mulher do médico, mais necessidade teriam os que estão vivos de ressurgir de si mesmos, e não o fazem, Já estamos meio mortos, disse o médico, Ainda estamos meio vivos, respondeu a mulher” (Saramago, 2008, p. 288).

Ao final, Saramago (2008) reforça mais uma vez a importância de integrar corpo-mente para conseguir chegar à harmonia e equilíbrio do organismo, bem como a necessidade que o homem tem de se renovar, limpar a sujeira acumulada ao longo da existência e abrir-se às novas carícias ou atropelos da vida, de maneira clara e direta: “Tudo o que pudesse servir para limpar um pouco, ao menos um pouco, essa sujidade insuportável da alma. Do corpo, disse, como para corrigir o metafísico pensamento, depois acrescentou, É o mesmo. Então, como se só essa tivesse de ser a conclusão inevitável, a conciliação harmónica entre o que tinha dito e o que tinha pensado, despiu de golpe a bata molhada, e, nua, recebendo no corpo, umas vezes a carícia, outras vezes a vergastada da chuva” (p. 265).

Sendo assim, a obra contemplada demonstra diversas situações e visões que devem existir em um processo terapêutico, bem como a cura, a mudança, a integração do todo, a abertura aos fenômenos, a (re)organização e, sobretudo, a fundamental importância das relações da qualidade dos contatos que são estabelecidos, uma vez que a abordagem gestáltica baseia-se especialmente no contato como fator indispensável à vida e ao crescimento. Para Ribeiro (1997), aquilo que não contata, perde o seu sentido, agoniza e, assim, morre.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O homem moderno tem passado por um período de alienação em que experimenta a cisão entre o eu e a sociedade, entre corpo e mente, entre organismo e meio. Sendo assim, ele não consegue diferenciar o que é sua necessidade e o que é imposição da sociedade, abdicando-se cada vez mais da satisfação de suas necessidades e, então, cedendo à obediência passiva às normas e tentando, apenas, atender às expectativas alheias.

Entendo os cegos de Saramago (2008) como personagens simbólicos do homem moderno, estabeleço também sua relação com a cegueira metafórica. Apesar de ter uma gama de possibilidades, as pessoas não conseguem enxergar o que é prioritário, quais as suas necessidades e, assim, não podem manter o equilíbrio do organismo. E é esse homem que muitas vezes procura, angustiado, uma terapia.

Sendo assim, o processo terapêutico deve auxiliar a pessoa no processo de organização de suas necessidades, do contato com seu sábio interior, na ampliação das possibilidades e no incentivo à autonomia e escolhas responsáveis do cliente, ou seja, na sua retomada da visão. Para isso, é fundamental a qualidade do contato entre terapeuta-cliente, uma vez que o contato positivo propicia um campo para o crescimento, reflexões, integração e awareness.

Para que seja estabelecido esse contato genuíno, o terapeuta deve tomar atitudes empáticas, de aceitação incondicional, acolhimento, cuidado e respeito para com o cliente. Este não pode sentir-se ameaçado, julgado ou empurrado para além dos seus limites. O terapeuta deve saber até onde ele e o cliente conseguem caminhar em campo seguro, sem perderem o eixo referencial e isso é dado a partir da relação e do fenômeno que se abre nesse momento. Avançar além do que são capazes pode gerar fechamento, enrijecimento e, até mesmo, paralisação do processo de cura. Afinal, ninguém se desvela todo ao mesmo tempo.

O processo terapêutico deve ser cuidadoso; o terapeuta deve estar atento às partes que o cliente deixa desvelar e juntar essas peças que, aos poucos, vão integrando o todo. É importante entender como a pessoa se defende, de que e para que ela se defende, é também um trabalho importante do terapeuta. Ao mesmo tempo em que a perda da visão pode levar à desorganização, ela também pode ser uma proteção. A pessoa deve ver aquilo que está preparada para ver.

Então, o terapeuta deve ajudar o cliente a desenvolver suas potencialidades, sua autoestima, sua autoconfiança, sua autonomia e sua consciência para que ele possa lidar com os fenômenos que se mostram, sem desintegrar-se com isso. Através do crescimento, o cliente descristaliza-se, organiza-se e ganha coragem para ver e enfrentar aquilo que vê. Não é, portanto, papel do terapeuta, apontar o que o cliente deve ver, mas fortalecê-lo para que ele próprio possa abrir os olhos. Abrir os olhos para a vida, para si, para o mundo. Abrir os olhos e ver. Ver, inclusive, o momento de fechá-los e esperar o momento de abri-los novamente.

 

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Endereço para correspondência
Karina Masci Silveira

Endereço eletrônico: kkmasci@yahoo.com.br

Recebido em:05/06/2012

Aprovado em:06/12/2012

 

Notas

*Coordenadora do Serviço de Psicologia do Hospital das Clínicas/ UFMG. Especialista em Psicologia Clínica Existencial e Gestáltica pela FEAD. Especialista em Arteterapia pela FAVI. Graduada em Psicologia pela PUC Minas Gerais - Brasil.

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