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IGT na Rede

versión On-line ISSN 1807-2526

IGT rede vol.10 no.18 Rio de Janeiro enero/jun. 2013

 

ARTIGO

 

O processo de envelhecer com HIV/AIDS: uma abordagem gestáltica

 

The process of growing old with HIV/AIDS: a gestaltic approach

 

Rana Malva Medeiros Dos Santos*

Instituto Müller-Granzotto, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo a descrição de teorias e conceitos básicos sobre HIV/AIDS, envelhecimento e Gestalt Terapia, seguida da associação teórica entre as três temáticas. Descreve-se um breve histórico do surgimento do HIV/AIDS e seu impacto sócio-histórico, bem como a dinâmica biológica do vírus e os modos de contágio. Uma análise biológica e sócio-histórica da velhice também é feita, conceitualizando senescência e refletindo sobre a imagem do idoso na sociedade. Conceitos principais da Gestalt Terapia como contato, awareness e os mecanismos neuróticos de defesa, além da Teoria de Campo, são também aqui explanados, de forma a subsidiar o elo teórico estabelecido entre Gestalt Terapia e o processo de envelhecer com HIV/AIDS. Tal processo é visto, neste escrito, como mobilizador de inúmeros introjetos que geram sofrimento ao indivíduo. Também é discutida aqui as possibilidades que o portador de HIV/AIDS na senescência encontra para se ajustar à realidade de seu estado mórbido crônico aliada ao fato de estar em um estágio avançado da vida. O artigo também busca demonstrar as possíveis contribuições da Gestalt Terapia para a melhoria na qualidade de vida do grupo específico em discussão.

Palavras-chave: Gestalt Terapia, envelhecimento, HIV/AIDS, ajustamento neurótico.


ABSTRACT

This article's objective is to describe the theories and basic concepts on HIV/AIDS, ageing and Gestalt Therapy, followed by theoretical association of those themes. A brief description of the discovery of HIV/AIDS is made, including historic and social impacts caused by the virus. A description of the biological dynamics of HIV and how it's transmitted is also included in this article. A biological, social and historic analysis is done in order to define senescence and reflect on the image elderly people have in society. Main concepts of Gestalt Therapy like contact, awareness and the neurotic defensive mecanisms, besides Field Theory, are also explained to support the theoretical link established between Gestalt Therapy and the process of ageing with HIV/AIDS. It's perceived in this paper that such process mobilizes countless introjects that generate suffering to the individual. The possibilities that the person living with HIV/AIDS in senescence finds to adjust to the reality of one's chronic morbid state, combined with the advanced stage in life, are also discussed. This article also seeks to demonstrate the possible contributions of Gestalt Therapy to improve the quality of life of the targeted group in discussion.

Keywords: Gestalt Therap; ageing; HIV/AIDS; neurotic adjustment.


 

 

Introdução

As pesquisas sobre HIV/AIDS estão em um crescente acentuado desde os anos 1980, década de diagnóstico dos primeiros casos confirmados do vírus. Inovações médicas têm melhorado a qualidade e tempo de vida de portadores de HIV/AIDS, tendo em vista que a medicina evoluiu muito na elaboração de coquetéis medicamentosos no combate aos efeitos da doença. Porém, o caminho de destas pesquisas ainda é incerto, devido à aparição recente do vírus; todas as descobertas ainda carecem de efeitos confirmados em longo prazo. O envelhecer com HIV/AIDS é algo novo na civilização. Descobre-se a cada dia mais sobre como o indivíduo mais velho reage ao vírus e aos medicamentos. Tais reações não são apenas biológicas. É importante observar como a terceira idade está lidando com HIV/AIDS pela primeira vez em termos psicológicos. O presente artigo tem por objetivo perspectivar, através da abordagem gestáltica, como os indivíduos pioneiros na questão dos efeitos biológicos e psicológicos em longo prazo do diagnóstico e tratamento de HIV/AIDS - que compõem a primeira geração de portadores do vírus que se torna idosa - podem lidar com a morbidade crônica. O diagnóstico de portadores de HIV/AIDS é uma situação delicada, pois inspira uma série de dúvidas sobre saúde e tempo de vida. O olhar para o futuro se torna ansiogênico, pois a ameaça à saúde compromete um sonho de futuro. Em idosos, muitas vezes o diagnóstico está associado a outras doenças crônicas comuns na terceira idade, o que aumenta as preocupações com a saúde e a morte. A Gestalt Terapia (GT) é uma abordagem fenomenológico-existencial que usa de uma visão holística da existência e de seus desdobramentos. Promove o resgate do viver aqui-e-agora - visa ao homem ser capaz de avaliar cada situação e buscar uma saída/desfecho de acordo com suas particularidades - ou seja, cada situação é nova e pede que a enxerguemos como tal (Rodrigues, 2007). Desta forma, apresenta-se como proposta inovadora para estabelecer relações com o processo de envelhecer com HIV/AIDS, na medida em que é uma situação nova e, inicialmente, ameaçadora para o indivíduo.

 

HIV/AIDS

Os primeiros relatos de casos de Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS) datam de 1981. O vírus causador da doença, que veio a se chamar HIV – Human Immunodeficiency Virus – em português, VIH, foi identificado em 1983 (Rachid & Schechter, 2005). Primeiramente, classificaram a composição do grupo de risco como homens homossexuais, hemofílicos, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo (Provinciali, 2005). Com o decorrer do tempo, a incidência de HIV em homens heterossexuais, mulheres e crianças de todas as classes sociais tornou-se realidade crescente (Rachid & Schechter, 2005). A ênfase em grupos de risco tornou-se um problema, pois insinua que todos os que não se sentem ou não fazem parte do grupo designado como de risco estão imunes de contrair a doença. Isto contribuiu para o estado pandêmico que vivemos hoje, pois aqueles não incluídos nos grupos estigmatizados não foram orientados a tomar as precauções necessárias para evitar o contágio. As políticas de saúde pública ignoraram populações como, por exemplo, a clientela heterossexual de profissionais do sexo (Kalipeni, Craddock, Oppong & Ghosh, 2004). Ainda hoje, vivemos as consequências do estabelecimento de grupos de risco no preconceito contra determinadas minorias e na falta de cuidado contra o contágio do HIV em certos grupos que se julgam fora de risco, entre eles os idosos.

O vírus HIV age no organismo infectando células do sistema imunológico, a saber, o responsável pela defesa contra microorganismos e substâncias estranhas, acarretando em maior vulnerabilidade a infecções. Portanto, o vírus HIV não é mortal, porém deixa o indivíduo exposto a doenças sem possibilidade de defesa eficaz, e isto por vezes leva ao óbito (Savi & Souza, 1999). Uma das consequências de portar o vírus HIV é a AIDS – Acquired Immune Deficiency Syndrome – conhecida em português como SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). O HIV deixa o indivíduo exposto a infecções oportunistas ou secundárias – algumas delas inofensivas a pessoas saudáveis – aumentando a frequência de estados mórbidos. O desenvolvimento destas doenças oportunistas é o que caracteriza a AIDS e seus sintomas (Savi & Souza, 1999).

As pessoas que contraem o HIV passam por uma fase assintomática variável em cada organismo. Nesta fase o sistema imunológico combate o vírus, destruindo parte de sua população e, assim, mantém a manifestação do HIV controlada. Porém, o HIV é um vírus com alta capacidade de mutação e, conforme o sistema imune combate alguns exemplares do vírus, mutações ocorrem de forma a criar um tipo de vírus que seja resistente às ações do sistema imunológico. Desta forma, a população de vírus resistentes aumenta com o passar do tempo, de modo que passados em média 8 - 10 anos, a resistência do vírus se torna tão alta que as defesas do organismo surtem pouco ou nenhum efeito (Savi & Souza, 1999). A partir desta fase, geralmente se desenvolve a AIDS, pois o organismo está deveras fragilizado e suscetível a infecções. Há uma lista de doenças classificadas como indicativas de AIDS. É digno de nota que o diagnóstico de AIDS não acarreta mudanças significativas no tratamento das pessoas que vivem com HIV, sendo ele utilizado para fins de vigilância epidemiológica apenas (Rachid & Schechter, 2005).

Os avanços da medicina no que concerne o tratamento do HIV e AIDS através das drogas anti-retrovirais contribuiu para a queda da morbidade e mortalidade associadas ao HIV/AIDS da população com acesso a tratamento. Isto se dá porque tais drogas possibilitam a reversão da imunodeficiência, de tal modo que o indivíduo portador de HIV/AIDS pode desenvolver sua imunidade, mesmo que já esteja prejudicada e em fase avançada de infecção pelo vírus (Rachid & Schechter, 2005). Doravante, portar o HIV e/ou desenvolver AIDS passou a ser percebido como doença crônica - estado mórbido que acompanha o indivíduo em longo prazo - que não o impede de viver por muitos anos, até mesmo um tempo de vida igual ao de alguém não infectado por HIV (Rachid & Schechter, 2005). Torna-se fundamental, a partir disso, a discussão no campo da saúde sobre efeitos – biológicos, psicológicos e sociais – em longo prazo na vida das pessoas vivendo com HIV/AIDS. É neste viés que a discussão sobre o envelhecimento com HIV/AIDS se faz presente e de importância contundente.

A transmissão do HIV acontece por meio de contato de sangue e derivados a nível subcutâneo ou em mucosas, relação sexual sem camisinha e ingestão de leite materno infectado. O risco de transmissão é variável em cada um destes métodos, mas parece haver relação entre risco de contágio e progressão da imunodeficiência do transmissor. As probabilidades de transmissão homem-mulher e mulher-homem são parecidas: uma em mil no primeiro caso e duas em mil no segundo. Existem, ainda, estudos sobre a relação entre a circuncisão e transmissão de HIV. Tais pesquisas indicam que a probabilidade de infectar ou ser infectado pelo vírus diminui em indivíduos circuncisados. Há o risco de transmissão da mãe para o bebê durante a gravidez e o parto, mas tal risco pode ser controlado. Porém, estudos indicam que ele aumenta conforme a imunodeficiência da mãe se agrava. (Rachid & Schechter, 2005).

 

ENVELHECIMENTO E SEUS DESDOBRAMENTOS

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), pode-se classificar como idoso aquele que tem 60 anos ou mais - em países em desenvolvimento - e 65 anos ou mais em países considerados desenvolvidos. A população idosa cresce de maneira sem precedentes, devido aos avanços tecnológicos e médicos, os quais auxiliam na qualidade de vida e, logo, potencializam a estimativa do tempo até a morte.

Vivemos um tempo contraditório quanto à visão sobre o "ser idoso"- que com base na dialética anuncia um tempo de mudança - causador de certa confusão na identidade dos mais velhos e em como eles são percebidos pelos mais novos. As representações tradicionais de velhice - descanso, passividade, sendetarismo, quietude e outros - estão co-presentes com representações emergentes do idoso como ativo, flexível, apto e disposto a aprender, desejoso de satisfação pessoal e sexual (Silva, 2008). Assim, olhar para si como idoso e para o outro como tal adquire um nível de complexidade inédito. Conceitos como "terceira idade" e ditos como "60 (anos) é o novo 40" anunciam um novo modo de ver e viver o envelhecimento, modo este que parece esticar o tempo de vida, distanciar a morte, ou seja, "rejuvenescer a velhice". Isto leva à pergunta de base: como se define a velhice?

A biologia classifica como estágio da velhice (em linguagem mais apropriada, senescência), aquele no qual o indivíduo está passando por mudanças degenerativas, durante o período adulto de sua vida. A passagem por estes períodos de deterioração está associada ao tempo vivido, que conforme se acumula diminui a capacidade do indivíduo de resistir ou adaptar-se a mudanças, portanto, a capacidade de manter-se vivo (Masoro, 1999). Percebe-se que, de acordo com a biologia, não é somente a passagem do tempo que determina a velhice, mas a deterioração do organismo nesta passagem de tempo. Logo podemos perceber a diferença entre a velhice cronológica e a biológica.

Podemos pensar a velhice, ainda, como categoria etária, formulada no processo histórico-cultural. Hareven (1995) coloca a possibilidade da velhice como máscara social, encobrindo a identidade jovial do indivíduo. Tal máscara é composta por roupas, postura, limitações físicas, tornar-se avô/avó, tom de voz e atitudes. Se, chegada determinada idade cronológica, o indivíduo não se dispõe a utilizar-se da máscara da velhice e inserir-se na categoria etária correspondente, isto é ofensivo para a sociedade (Hareven, 1995). Esta percepção da velhice é atravessada pelos conceitos da biologia e se transforma de acordo com eles. Nota-se que a máscara da velhice de Hareven (1995) representa o estereótipo de envelhecer, mas que já há espaço para um novo olhar para a senescência, mais ativa e jovial. É necessário destacar que esta nova percepção tende, também, a se tornar uma máscara: por vezes esconde a real identidade e necessidade do idoso. Assim, quem passa pela senescência nesta geração vive um período de conflito entre submeter-se aos valores sociais vigentes, adaptar-se a valores emergentes, seu estado e necessidades psicofisiológicas e sua história.

Partindo de um ponto de vista holístico, podemos compreender o processo de envelhecimento como fenômeno biopsicossocial. Adotando esta forma, é possível olhar não somente para as mudanças individuais na senescência, mas também para o histórico-cultural e social. As alterações biológicas do sujeito estão ligadas às mudanças em seus papéis sociais e tais fatores, por sua vez, atravessam e são atravessados pelas vivências do indivíduo, a saber, sua subjetividade (Vasconcelos et al. 2004). É esta percepção mais abrangente que a Gestalt Terapia adota. Perls, Hefferline e Goodman (1997) afirmam que "em toda investigação biológica, psicológica ou sociológica temos de partir da interação entre o organismo e o ambiente" (p. 42), desta forma percebe-se, em GT, sempre um campo interacional e nunca o indivíduo como destacado do resto do mundo. Em GT, o homem se apresenta sempre por inteiro - tudo o que foi, e é seu potencial para ser - no espaço/tempo, exercendo e sofrendo diversas forças de elementos do campo, a modo de configurar a realidade (Rodrigues, 2007).

O conflito entre os diversos fatores humanos e naturais envolvidos no envelhecer apresenta um viés polêmico e crucial: a sexualidade na senescência. O sexo e tudo o que a ele é relacionado ainda é assunto delicado em nossa sociedade - muitos tabus ainda estão presentes no meio sócio-cultural (Risman, 2005). Isto vem sendo amenizado com a propagação rápida, eficaz e abrangente de informação em nosso momento histórico, o que permite a discussão e desmistificação de assuntos relacionados à sexualidade e divulgação de descobertas científicas para o grande público. Além disso, os trabalhos de Sigmund Freud no final do século XIX/início do século XX também têm grande crédito na problematização e popularização das discussões sobre sexualidade, sendo ele pioneiro nas discussões acerca deste tema em uma época na qual a repressão sexual era o imperativo. Há, ainda, o papel desempenhado pela revolução sexual nos anos 60, marco histórico no movimento de superação de valores morais e sociais repressores.

O que acontece com os idosos quanto à sexualidade é o retorno da repressão, graças aos rótulos sociais de que o momento de se ter desejo sexual é na juventude e de que se deve encerrar a vida sexual quando se chega à senescência. É possível que tais rótulos sejam construídos pela associação entre sexo e reprodução que, apesar de desmentida por Freud em seus trabalhos, é dominante desde a propagação do cristianismo - defensor da reprodução como único objetivo do ato sexual (Risman, 2005). Desta forma, a representação social criada é de que o idoso não mais deveria ser ativo sexualmente, pois seu aparelho reprodutor apresenta dificuldades ou impossibilidades de conceber (disfunção erétil no caso dos homens e menopausa nas mulheres). Porém, segundo Masters e Johnson (1970) o aparelho sexual geralmente não perde sua capacidade de proporcionar prazer ao longo dos anos em pessoas saudáveis. A biologia do idoso permite que ele sinta necessidade e satisfação sexual mesmo que não seja capaz de gerar vida. Conforme as discussões sobre sexualidade se tornam mais comuns e acessíveis às massas, cada vez mais idosos permitem-se a experiência sexual, indo à busca de novos parceiros ou em suas relações afetivas estabelecidas. Seja como for, nota-se que a vida sexual vem sendo esticada, porém há ainda um grande tabu quanto à discussão aberta acerca do sexo com pessoas na senescência. O estereótipo dominante ainda é de que o sexo deve ser abandonado com a chegada da velhice. O preconceito e as regras comportamentais herdadas de séculos anteriores e da religião inviabilizam a discussão clara do tema com os idosos (Risman, 2005). Pode-se pensar no fator de risco que isto representa quanto à transmissão de doenças sexualmente transmissíveis.

Indubitavelmente, a falta de espaços para discussão sobre sexo seguro com idosos é um dos fatores que colaboram para o crescente número de infectados na terceira idade por HIV/AIDS. Até 1994, 1,8% da população vivendo com HIV/AIDS era idosa. Recentemente, aumentou para 2,8% (Provinciali, 2005). A população idosa, portadora de HIV/AIDS ou não, está crescendo, portanto medidas de prevenção e tratamento de DSTs para idosos torna-se problema de saúde pública.

 

A VIVÊNCIA DO ENVELHECER COM HIV/AIDS PELO OLHAR DA GESTALT TERAPIA

A partir da teoria do self, pode-se pensar em como as contribuições teóricas da GT podem ajudar a perceber os fatores envolvidos no envelhecer com HIV/AIDS. Primeiramente, é necessário reconhecer a complexidade do assunto em pauta, pois são inúmeros os fatores psicológiocos e biológicos envolvidos quando um paciente é diagnosticado com HIV, sendo que isto se torna ainda mais complexo com a adição do fator idade.

Percebemos nos ajustamentos evitativos (neuróticos) o enfraquecimento da função ego (ou função de ato), limitando as ações no campo (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007). Quando relacionamos os ajustamentos neuróticos e a senescência, podemos perceber o quanto a máscara social afeta o funcionamento do sistema self. A sociedade repressora exige que os idosos realizem inibições deliberadas consecutivas, com o objetivo de se enquadrar ao estereótipo de idoso, suprimindo seus excitamentos (portanto, seus desejos) para serem aceitos. Tais inibições tornam-se reprimidas e, em algum momento do fluxo temporal, os ajustamentos evitativos acontecem, muitas vezes trazendo ansiedade e prejuízos.

A sociedade produz informações por vezes preconceituosas, com o fim de culpar, desumanizar e criar bodes expiatórios. Tais informações criam um grupo "outro", algo separado e que precisa ser evitado (Kalipeni, Craddock, Oppong & Ghosh, 2004). As informações manipuladoras - criadas por um grupo dominante - são facilmente introjetadas pelos indivíduos, tornando-se uma "verdade". Sem dúvida, muitas destas informações sobre o HIV/AIDS divulgadas no início da epidemia, quando pouco se sabia sobre a doença, ainda permanecem no imaginário social sob a forma de introjetos, ou seja, não foram digeridas pelos indivíduos, mas "engolidas" por inteiro, a saber, o sistema self - mais especificamente a função personalidade - faz uso destas informações alienígenas. Eis que surge o primeiro ponto importante na questão do HIV/AIDS na velhice: a emergência de introjetos.

Ao receber o diagnóstico, o paciente percebe em si mesmo aquilo que antes via como do grupo "outro". Desta forma, está sob a mira dos próprios introjetos. Como Kalipeni, Craddock, Oppong e Ghosh (2004) afirmam, muitas concepções sobre HIV/AIDS foram construídas historicamente, por aqueles que são autorizados socialmente a reconhecer os fatos como reais, sem se pensar nas conseqüências. O conhecimento só é reconhecido se for produzido por aqueles que fazem parte do meio científico. Tais indivíduos focaram apenas em padrões sociais ao analisarem a incidência de soropositividade, ignorando a história individual, as variações no espaço de vida entre as pessoas. Porém, de maneira contraditória, a política de prevenção era baseada na responsabilidade e risco individuais. Desta forma, minorias sociais como homossexuais e profissionais do sexo, bem como populações de localidades em situação econômica desfavorável, como Haiti e África, foram colocados no lado mais negativo do espectro da moral, estigmatizados como promíscuos (Kalipeni, Craddock, Oppong & Ghosh, 2004).

Ora, tal conceito é impreciso, como ressalta Kalipeni, Craddock, Oppong e Ghosh (2004), e carregado de valores, de tal maneira que jamais pode ser usado cientificamente. Atribuir a alguém características sem que se esteja inserido em seu espaço de vida e sem que se esteja em contato com este alguém não passa de preconceito. Na GT isto seria um caso de ajustamento projetivo neurótico. Aqueles tidos como parte dos grupos de risco eram depósito daquilo que a maioria era incapaz de reconhecer como seu, servindo de bode expiatório para as necessidades insatisfeitas dos acusadores e estigmatizadores. Os alvos da projeção a receberam como "verdade", dada a aceitação social e o conteúdo pseudocientífico por trás dela. Segundo Perls (1988) "a introjeção é o mecanismo neurótico pelo qual incorporamos em nós mesmos normas, atitudes, modos de agir e pensar, que não são verdadeiramente nossos" (p. 48).

Surgem, assim, os introjetos dos portadores de HIV/AIDS, oriundos da defesa projetiva neurótica de uma classe dominante.

Quando pensamos sobre o impacto da projeção e dos introjetos na vida de pessoas vivendo com HIV/AIDS, a situação toma um contorno muito específico no caso dos idosos que, além de serem classificados como promíscuos, ainda fazem parte de um grupo fragilizado socialmente, pois geralmente não são parte da população economicamente ativa e não são considerados consumidores ávidos, sendo que a atenção da sociedade está totalmente voltada àqueles que tem sede de consumir e são maioria: os jovens. A pessoa portadora de HIV vê-se em uma situação nova frente à confirmação da presença do vírus no corpo e, no caso do idoso, este é por vezes desamparado pela família, vivendo em solidão e abandono. Onde irá buscar os meios para lidar com o diagnóstico e por quem será acolhido e confirmado? Nesta situação, na qual é difícil tomar decisões e saber o que fazer, o ajustamento neurótico pode surgir sob o mecanismo da introjeção.

Provinciali (2005) coloca, ainda, as representações sociais da velhice, como momento de inatividade sexual ou, se há vida sexual ativa, há restritamente atividade heterossexual monogâmica, e etapa da vida na qual não há consumo de drogas. Tais crenças exercem pressão sobre idosos soropositivos, pois ao se defrontarem com o introjeto "promiscuidade" estão na contramão do que a sociedade espera deles. Em GT, isto quer dizer que há, por parte de muitos idosos, um movimento de introjeção dos valores sociais de velhice que ditam como se deve viver na terceira idade. Tais introjetos entram em conflito com aquele de promiscuidade, de maneira que há uma sensação de desobediência ao que se é "correto". Como afirma Perls (1988) quando há introjeção de conceitos incompatíveis, partes da personalidade são tragadas na tentativa processual de reconciliá-los. Isto contribui para a desintegração da personalidade. O trabalho clínico que precisa ser desenvolvido quanto a isso concerne a confrontar do movimento introjetivo, de forma a assimilar aquilo que está no indivíduo, mas ainda é do meio: ele precisa digerir estas informações, apropriar-se delas, de forma a perceber o que faz sentido e em seu espaço de vida especificamente. Em outras palavras, é preciso destruir fantasias e criar outras novas acerca do processo de envelhecer e do vírus HIV.

A questão da morte se torna figura no recebimento do diagnóstico para grande parte das pessoas e no caso dos idosos isto tem impacto duplo: o HIV/AIDS como possibilidade de morte está ligado ao fator idade, à aproximação do fim da vida. As batidas da contagem regressiva recebem força do diagnóstico de morbidade. Há, ainda, a preocupação quanto à soma do HIV a doenças que tipicamente se desenvolvem na velhice, como diabetes ou hipertensão. Nesta situação, o idoso vivendo com HIV/AIDS pode se ver preso num horizonte de futuro que mostra apenas abstrações, idéias e racionalizações do que pode vir a ocorrer. Há necessidade de se preparar para o futuro, de modo a controlar todas as possibilidades. Portanto, observa-se, neste caso, em GT, o papel importante do ajustamento egotista no que concerne à possibilidade de morte, que se torna viva com o diagnóstico de HIV somado à idade avançada. O idoso pode se achar perdido num futuro que tenta controlar e, portanto, evitando o campo atual e seus excitamentos, em prol de fantasias. A retomar a questão da morte como ela aparece aqui-e-agora e como está sustentada, de modo que se fique com o que é possível ser feito aqui-e-agora - já que não é possível viajar ao passado e tampouco ao futuro - o idoso pode se voltar ao atual, aliviando a ansiedade e diminuindo o abismo que se abriu em seu futuro.

Ainda, deparar-se com uma doença sem cura, estigmatizada pela sociedade como sinônimo de morte, causa sensações desestruturantes, sendo um momento de grande impacto no qual diversas defesas são acionadas (Provinciali, 2005). Dentre tais defesas, a primeira geralmente é, como cita Kübler-Ross (1991), a negação. Ela serve, segundo a mesma autora, como um pára-choque para a notícia impactante do diagnóstico, afastando-o da realidade. Neste momento, em GT, pode-se dizer que o diagnosticado passa pelo mecanismo neurótico da confluência, no qual não é capaz de identificar a necessidade que emerge quanto à notícia do diagnóstico, permanecendo no vazio. Podemos dizer que a pessoa sofre de uma dessensibilização que a imobiliza.

Sendo que o HIV é algo que invade o corpo, corroborando para sua destruição, por vezes o indivíduo sente repúdio ao próprio corpo, esta materialidade doente que ameaça sua existência. Como não pode se lançar ao meio para atacar a ameaça, o HIV, o sujeito volta-se contra o próprio corpo, agredindo-o, repudiando-o ou repreendendo-o, num movimento de retroflexão. No caso do idoso, o corpo está marcado não só pela presença do vírus, mas pela deterioração biológica, a marca social do tempo cronológico acumulado e o introjeto de corpo velho como feio. Como diz Perls (1988) "o retrofletor faz consigo o que gostaria de fazer com os outros" (p. 54) e, no caso dos portadores de HIV/AIDS, o "outro" pode ser o vírus, os médicos que informam o diagnóstico, a família que isola o infectado, a sociedade preconceituosa etc. Desta forma, o portador volta para si a ação que desejaria direcionar a estes "outros', de maneira que se torna, ao mesmo tempo, agente e alvo de suas ações. O corpo do idoso que vive com HIV/AIDS pode sofrer muito com as consequências de seus comportamentos retrofletidos. Isto, por vezes, representa um perigo à sua saúde, já que podem ocorrer comportamentos que comprometem a imunidade do organismo. Assim, a GT pode auxiliar o indivíduo a desenvolver um quadro geral de melhora na sua saúde, pois trata de frustrar as defesas neuróticas - entre elas a retroflexão - de forma a ajudar o homem na sua auto-regulação.

Há, ainda, a possibilidade de se apresentar como vítima das circunstâncias, de modo a mobilizar o outro a fazer algo sobre o impasse do diagnóstico, o que também caracterizaria um movimento retroflexivo neurótico. Isto em idosos se torna mais provável, já que são representados como fracos e indefesos pela sociedade (Risman, 2005). A manipulação do meio para que ele satisfaça as necessidades do indivíduo não acarreta em uma satisfação genuína, pois o self não se lança no horizonte de possibilidades identificadas e alienadas por ele. Ora, disto não resulta crescimento algum, não há assimilação. No caso dos idosos, sua máscara social, aliada ao seu quadro mórbido crônico, contribuem para um sentimento geral de pena que pode levar aqueles à sua volta a ceder as suas manipulações retroflexivas, sustentando-as.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se o espiral complexo formado pela situação do diagnóstico de HIV/AIDS na velhice, que precisa ser acompanhado de perto, em cada espaço de vida. A clínica gestáltica provê uma forma humana e acolhedora de receber o outro, de forma a ajudá-lo a buscar o suporte necessário para a retomada do contato, quando este está comprometido pelos ajustamentos neuróticos. Sendo que todos apresentamos tais ajustamentos vez ou outra, é mister avaliar seu impacto na população idosa diagnosticada com HIV, situação extremamente ansiogênica e conflituosa, na qual a função ego pode se fragilizar ainda mais.

Estar aberto para a velhice como um momento de vida específico de cada um, de modo a evitar projeções parece fundamental no sentido de livrar o outro de preconceitos e insinuações danosas. Ainda, destruir os introjetos, buscando construir sentido no espaço de vida específico do indivíduo, de modo que este se aproprie dele, é fundamental para fortalecer a personalidade do idoso vivendo com HIV/AIDS e, logo, estimular o ajustamento saudável, livre de ansiedade. Tais atitudes vão em direção à melhora na qualidade de vida daqueles que passam pelo estigmatizado período da senescência, agravado pelo fator HIV/AIDS. A clínica gestáltica fornece ferramentas para irmos neste sentido, contribuindo para a diminuição do sofrimento de tais indivíduos, de modo que possamos compreender e frustrar suas defesas neuróticas. Através da frustração habilidosa, a GT propõe que o indivíduo possa enfrentar a angústia da criação, do novo, do desconhecido, na co-presença do passado e satisfação da criação pretérita (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007). As inibições não são eliminadas, mas reconhecidas, bem como a satisfação possível que se obteve delas. A pessoa que envelhece com HIV\AIDS sofre e não vai parar de sofrer depois do processo terapêutico em Gestalt Terapia, como qualquer um que se proponha a tal processo, mas seu sofrimento torna-se mais fértil - pode ser o que a impulsionará a lançar-se ao meio em busca de situações melhores de vida, na luta por seus direitos, na direção de tornar-se o que se é e se autorizar a isso.

 

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Endereço para correspondência
Rana Malva Medeiros Dos Santos

Endereço eletrônico: rana.mms@gmail.com

 

Recebido em: 20/11/2012
Aprovado em: 30/04/2013

 

 

Notas

*Graduada na Universidade Federal de Santa Catarina e especializanda em Gestalt-terapia no Instituto MÜller-Granzotto.

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