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IGT na Rede

versão On-line ISSN 1807-2526

IGT rede vol.10 no.18 Rio de Janeiro jan./jun. 2013

 

RESENHA

 

Amar e brincar - Lembrando os fundamentos da condição humana

 

Love and play - Remembering the fundamentals of the human condition

 

Luciana Loyola Madeira Soares

Laboratório Gestáltico UERJ - UCL, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO:

O texto de Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller apresenta o amar e o brincar como os fundamentos da condição humana a partir da perspectiva do emocionar. Vão às origens da primitiva cultura matrística europeia e da patriarcal que a sucedeu, decisivas na formação do linguagear e do emocionar no ocidente. Apontam como as crianças são responsáveis por conservar as mudanças culturais. Os autores acenam com a perspectiva de um novo rumo - o neomatrístico - para um redesenho das relações do humano com o ambiente natural e na formulação de uma condição mais humanizada para a comunidade humana. Segundo eles, a democracia é a própria redenção do humano.

Palavras-chave: cultura; brincar; amar; criança; democracia.


ABSTRACT:

Humberto Maturana's and Gerda Verden-Zöller's book presents play and love as the basis of the human condition under the perspective of emotion. They go back to the primitive European matriarchal culture and also to the patriarchal culture as both of them were decisive for the West world. The authors show how children are responsible for the transformation inside a culture. Maturana and Verden-Zöller indicate a new possibility for the human being: a dialogical attitude among humans and also with the environment. Democracy is described as the way to freedom.

Keywords: culture; play; love; child; democracy.


 

 

Resenha do livro:

MATURANA, H. e VERDEN-ZÖLLER, G. Amar e Brincar - fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena Editora, 2011, 3ª edição. 263 páginas. ISBN 978.7242-048-7. Original publicado em 1993, em Santiago, Chile.

Vivemos tempos de transformações em todos os âmbitos das relações do humano no planeta, quando se questiona o papel da educação voltada predominantemente para um futuro de competições acirradas, diante das novas configurações familiares, crises éticas espocam e ficam sem o devido encaminhamento, junte-se a isso o desenfreado avanço da tecnociência e a visão dos recursos naturais em franca degradação. Ainda muito mais poderíamos continuar elencando como sinais de decadência para compor o já conhecido e ameaçador cenário do mundo contemporâneo. Até aí, nenhuma novidade. A partir deste livro, ousamos afirmar que esta é uma maneira unilateral para descrever nosso viver na contemporaneidade, não contemplando os aspectos relacionais, afetivos e criativos do humano em seu percurso existencial - uma efetiva aposta em novas perspectivas para a desacreditada comunidade humana. Este é o resgate que esta obra pretende realizar. Isto é motivo suficiente para darmos boas vindas à nova edição brasileira. Em "Amar e brincar - fundamentos esquecidos do humano", cuja primeira publicação em língua espanhola foi em 1993 em Santiago, e que teve sua primeira edição brasileira em 2004, estando atualmente em sua terceira edição, datada de 2011, Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller nos trazem suas reflexões acerca das relações humanas e as transformações culturais pela trajetória do emocionar. A afetividade na conversação dá o tom e o tema, como evidenciado na própria montagem do texto e distribuição dos capítulos. Ambos os autores indicam que a obra foi produzida a partir de conversas entre eles, as quais, peculiarmente, geraram dois textos separados e totalmente entrelaçados em sua base teórica e na visão das relações e perspectivas para o humano em sua existência na contemporaneidade, tempo em que sua própria sobrevivência depende das relações entre si e com o ambiente natural. Apoiados na noção de "... que uma cultura é uma rede fechada de conversações." (p. 12) os autores indicam que mudanças em uma cultura ocorrem por transformações "... no emocionar que assegure a conservação da nova rede de conversações que constitui a nova cultura." (p. 23), reputando às crianças da comunidade o papel de firmar uma mudança cultural, afirmando que elas constituem a conservação deste novo emocionar.

A primeira parte coube a Maturana, sob o título 'Conversações matrísticas e patriarcais' onde ele se dedica a discutir cultura e como nela se dão os processos de mudanças, passando pela perspectiva matrística e patriarcal como modos de emocionar e, sua relevância na formulação da democracia. Maturana mantém-se fiel à linha constituída por ele e Francisco Varela em outras obras, abordando o surgimento da existência humana como entrelaçamento entre o linguagear e o emocionar; sua 'Biologia do Amor' - apresentada como característica central da coexistência humana - não se limita o campo do biológico, pelo contrário, faz uma interlocução da Biologia com outros campos, como Antropologia, Sociologia, Política, Psicologia e Educação. Em suas palavras, a vida humana ocorre "... como uma rede de coordenações consensuais de ações e emoções entre seres humanos..." (p. 104).

O autor pensa a cultura patriarcal europeia como caracterizada por pensamento linear, conflitos, contradições, competição e busca por resultados, produzindo sofrimento, perda de respeito e de sensibilidade. Tal modo surgiu na Europa como modificação no emocionar devido às invasões de povos que já praticavam a cultura do patriarcado; emerge a necessidade de defesa, o que determina o sentido de enfrentamento, controle e rígida delimitação de espaços e, consequentemente, define novas redes de conversações em que a exclusão figura. Já o modo matrístico, que existia na fundação da comunidade humana, a qual surgiu pela constituição do linguagear em seu entrelaçamento com o emocionar, formulando as primeiras redes de conversações, caracterizava-se pelo consensual, pois mais do que permitir a existência humana, ele é um modo de coexistência, fundamentado na busca pelo acordo e por um projeto comum de convivência. Propondo não incidir numa cisão conflituosa entre estes modos, já que a exclusão de um deles seria insistir em funcionar no pensamento ao modo do patriarcal, o autor propõe a reflexão como caminho, apontando sua convicção de que possamos passar de uma cultura patriarcal para uma 'neomatrística' cuja característica seria o viver em democracia, o que ele considera uma tentativa de resgate da essência matrística de nossa infância. É utópico sem ser nostálgico ou nutrir vã esperança. Maturana finaliza suas reflexões apontando que para vivermos num mundo melhor, diferente deste modo hoje praticado, será preciso ter outros desejos, o que ocorrerá a partir mudanças em nossas conversações, o que, segundo ele, necessariamente implicará em tomada de responsabilidade tanto por nossa racionalidade quanto por nossos desejos.

Na segunda parte, Gerda Verden-Zöller dedica seu texto a H. Maturana e discorre sobre a cultura e a produção do emocionar em crianças a partir da experiência do brincar e da brincadeira. A autora explicita que sua perspectiva é baseada na 'Biologia do amor' de Maturana, privilegiando o corpo na integração das experiências do humano. O principal aspecto em seu trabalho é a aposta na saúde, optando por afastar-se da tradição ocidental dicotômica que separa corpo e alma, corpo e espírito, corpo e mente, ser humano e mundo natural, observador e observado, o que, nos permite estender nossas reflexões a outras separações que incluem o racional e o emocional, o viver e o morrer, saúde e doença, homem e mulher, todas indicando a supremacia de um em detrimento do outro. A autora considera as diferenças como produtoras de novos arranjos existenciais e como aquilo que pode promover a própria renovação das relações dos humanos entre si e com o ambiente natural. Em seu texto Verden-Zöller enfatiza a importância da interatividade corporal, indicando que nosso devir se dá pela transformação corporal, já que a validação da criança como ser no mundo se dá por suas experiências afetivas corporais. A autora segue alertando o leitor para o fato de que a relação com a mãe, que não necessariamente é a genitora, é o marco fundamental da aceitação, da intimidade, da confiança, do brincar e do amar, possibilitando as experiências interacionais mais decisivas para o desenvolvimento de sua autoconsciência e de sua consciência social. Brincar e amar só se vivem no presente, não se comprometem com o futuro - simplesmente acontecem em plena mutualidade. Decorre daí o que pode haver de mais humano na condição humana: desdobrar amorosidade e respeito em suas futuras relações, produzindo ética. É a saída para um modo de viver em aliança com o presente. Nesta linha, ela afirma que a democracia seria uma tentativa de retorno a esta dimensão oriunda das primeiras trocas gratificantes entre mãe e bebê. Desenhos de crianças que tomaram parte no trabalho realizado pela autora em sua prática como observadora participante ilustram sua conversa com o leitor.

A mensagem de Maturana e Verden-Zöller de que "... a aprendizagem do emocionar é transferível." (p. 63) sintetiza a idéia de que é no presente com as crianças que tecemos as novas redes de sustentação para a comunidade humana. Portanto, este livro é obra altamente recomendável para psicólogos e educadores envolvidos com o tema da infância e da existência humana na contemporaneidade, dentro de uma perspectiva relacional, e que fizeram do emocionar uma aposta incondicional naquilo que o humano pode fazer de melhor por si e pelo mundo que habita.

 

 

Endereço para correspondência
Luciana Loyola Madeira Soares

Endereço eletrônico: psi.lucianasoares@gmail.com

 

Recebido em: 15/08/2012
Aprovado em: 06/06/2013

 

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