SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 número19Estudo da demanda de um Centro de Atenção Psicossocial de uma cidade de médio porte: imagens dos desafios da Reforma Psiquiátrica Brasileira índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

IGT na Rede

versão On-line ISSN 1807-2526

IGT rede vol.10 no.19 Rio de Janeiro jul./dez. 2013

 

ARTIGO

 

O ciúme nas relações amorosas contemporâneas: um olhar gestáltico

 

Jealousy in love relationships contemporary: a look gestalt

 

Bruna Cabral Vianna Pinto*

IGT-Instituto de Gestalt Terapia e Atendimento Familiar - Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretendemos por meio deste trabalho, investigar o ciúme de caráter rígido, estereotipado, independente do contexto. Mesmo não havendo qualquer sinal consistente que justificaria o medo da perda da pessoa amada, o ciumento cria suas próprias fantasias. Tomaremos por base o cenário contemporâneo onde observamos uma maior fluidez e  enfraquecimento de vínculos duradouros, desenvolvendo relacionamentos voltados para a satisfação de desejos imediatos. Abordaremos o tema tomando como referencial teórico a Gestalt-terapia, lançando mão de conceitos como a teoria de campo, teoria paradoxal da mudança, fronteiras, contato e suas interrupções. Discutiremos o padrão de comportamento comum aos casais que vivenciam um ciúme excessivo, caracterizando relações nas quais as fronteiras mostram-se rígidas. Os casais desenvolvem patologias complementares, formando pares que representam papéis cristalizados. Por fim, destacaremos a postura do gestalt-terapeuta, atento às particularidades do ciúme como um sentimento que deve ser considerado em sua singularidade existencial para cada pessoa.

Palavras-chave: ciúme; relações amorosas; cenário contemporâneo; gestalt-terapia; contato.

 


ABSTRACT

We intend through this work, to investigate the jealousy rigid character, stereotyped, >out of context. Even without any consistent signal that would justify the fear of the loss of the lover, the jealous creates his own fantasies.We will take based on the contemporary scene where we see a greater fluidity and a weakening of lasting relationships, developing relationships aimed at satisfying immediate desires.Discuss the issue taking as theoretical main Gestalt therapy, making use of concepts such as the of field theory, paradoxical theory of change, borders, contact and their interruptions.Discuss the pattern of behavior of couples with excessive jealousy, featuring relations with rigid borders. Couples develop pathologies complementary, forming pairs that represent roles crystallized.Finally, we will highlight the position of gestalt therapist, attentive to the particularities of jealousy as a feeling that must be considered in its existential singularity for each person.

Keywords: jealousy; love affairs; contemporary setting; gestalt therapy; contact.

 


INTRODUÇÃO

A palavra ciúme tem origem etimológica no latim zelúmen e no grego zelus, que significa zelo, receio (MACHADO, 1990). O dicionário Aurélio da língua portuguesa traz a definição de ciúme como:

Sentimento doloroso que as exigências de um amor inquieto, o desejo de posse da pessoa amada, a suspeita ou a certeza de sua infidelidade, fazem nascer em alguém; zelos. Emulação, competição, rivalidade. Despeito invejoso, inveja. Receio de perder alguma coisa; cuidado, zelo (FERREIRA, 1995, p.154).

Através da definição, percebemos como o ciúme é um sentimento complexo que pode ser suscitado em diferentes tipos de relação. O ciúme que abordaremos é aquele caracterizado pela estereotipia, pela rigidez, sem manter relação com o contexto presente. Trata-se do ciúme de caráter patológico, tendo em vista que a rigidez caracteriza a disfuncionalidade, na perspectiva gestáltica. Mesmo não havendo qualquer sinal consistente que justificaria o medo da perda da pessoa amada, ocorre uma discrepância entre o que o ciumento percebe, criando suas próprias fantasias com relação àquilo que vê e ouve.

O ciúme  é um sentimento experimentado por cada pessoa, a partir de suas singularidades, mesmo que a sua expressão mantenha uma regularidade de uma pessoa para a outra (NUNES, 2009). Nunes (op.cit) afirma que se trata de um sentimento atemporal que atravessa diferentes épocas. Para a autora, a experiência do ciúme nas relações amorosas ocupou diferentes lugares na vida social, de acordo com o contexto e as concepções das diferentes épocas. Para compreendê-lo na atualidade, torna-se importante considerar também como ele foi vivenciado ao longo da história, em outras épocas e contextos. Como disse Lewin (1973), toda experiência do indivíduo pode sofrer alterações conforme o campo em um dado momento, sendo importante considerar as forças do campo em que o organismo se encontra. Portanto, dentro de uma perspectiva de campo, podemos considerar que há diversos aspectos que constituem esse sentimento: sociais, culturais, históricos, individuais, entre outros. Lewin definiu campo a partir de várias regiões (sociais, intrapessoais, interpessoais, físicas) que estariam demarcadas por fronteiras. Descreveu o campo como um conjunto de forças que atuam no presente formando uma rede de relações entre as partes. 

 

O ciúme e os relacionamentos amorosos ao longo da história

Na cultura romana, o casamento se configurou como um arranjo que se dava como uma obrigação social para a coletividade. Era motivado pela necessidade de assegurar a preservação da propriedade. Havia a oferta de um dote pelo pai da noiva ao noivo pelo fato de que à mulher não era permitido trabalhar (YALOM, 2002). No mesmo período, era possível a associação entre atividade sexual e casamento, onde somente dentro deste o ato sexual teria sentido. Portanto, a fidelidade começou a ser problematizada, na medida em que era exigida pois constituía um respeito aos direitos do marido (FOUCAULT, 1993).

Enquanto o ciúme do homem era uma defesa necessária da própria moral do casamento, por parte da esposa era visto como uma transgressão em relação à postura tolerante e compreensiva que dela se esperava aos desvios extraconjugais do marido (YALOM, 2002).

No século XVI, no período do Renascimento, profundas mudanças políticas, econômicas, culturais e sociais começaram a tomar vulto neste tempo (FROMM, 1974). A religião perdeu importância e o  centro da vida social passou a ser ocupado pelo homem (BRANDEN,1998). Segundo Yalom (2002), houve a valorização de uma maior liberdade de escolha dos indivíduos que também refletiu nas relações amorosas, onde o amor começou a ser evocado como condição desejável e necessária para o casamento. O ciúme era tomado como uma atitude congruente diante de ameaças concretas à fidelidade conjugal. (NUNES, 2006).

No século XVIII, o Iluminismo foi o movimento que representava as ideias burguesas de liberdade, com todos os indivíduos tendo direitos iguais: à vida, à liberdade e à posse de bens materiais (FROMM, 1974). De acordo com Dumont (1985), houve a valorização da razão humana e foi marcado pelo individualismo que pregava os interesses individuais acima dos coletivos, o que também fortaleceu a liberdade de escolha dos parceiros amorosos.

Os séculos XIX e XX foram caracterizados pela Modernidade, quando a sociedade mostrou-se norteada pelo individualismo, tendo possibilitado indivíduos serem livres para escolher seus parceiros amorosos (BRANDEN, 1998). Surge o Romantismo como movimento literário que trouxe tendências possessivas e exclusivistas, valorizando um amor idealizado. O casamento seria o reflexo da escolha do companheiro ideal . Como assinala Yalom (2002), o ciúme assume um novo lugar na vida social quando surge diante do temor pela perda do objeto de amor.

Em meados do século XX, chegamos à contemporaneidade, quando uma lógica individualista começa a permear os relacionamentos amorosos, trazendo valores comocompetitividade, independência e liberdade(PLASTINO, 1996).

O que vai sendo construído historicamente é um relacionamento amoroso marcado pela fluidez e abertura, metaforizado por Bauman (2004) através da expressão "amor líquido". O mesmo autor traz a ideia de uma lógica do consumo com a consequente descartabilidade dos produtos e das relações. Sendo assim, os indivíduos buscariam relações que não demandam tanta dedicação e compromisso.

A abertura e flexibilidade proporcionadas pelo relacionamento amoroso abre espaço para uma relação mais autêntica, na qual há uma escolha por viver a relação a partir do próprio desejo mas, ao mesmo tempo, provocaria insegurança. Novas exigências são demandadas dentro de um relacionamento amoroso, que segundo Vaitsman (1985) são: a abertura para o diálogo, da negociação democrática, da expressão de sentimentos, da revelação de si e da capacidade de perceber o outro passam a ser importantes dentro de uma experiência amorosa que precisa sustentar a si própria.

A confiança passa a ser fundamental dentro de uma relação amorosa, que não segue mais um curso predeterminado pelas obrigações tradicionais (GIDDENS, 2002). Precisa ser desenvolvida pelo casal mas essa dedicação pode ser um preço alto para alguns (BAUMAN, 2004). O Romantismo foi se desgastando historicamente. No lugar do ideal de ‘amor eterno e insubstituível' começam a surgir novos modelos de relacionamento que expressam a flexibilidade de possibilidades. Ainda assim, percebemos a existência de uma herança desse período, na medida em que muitas pessoas  exercitam alguns ideais românticos em seus relacionamentos. Porém, Luft (2004) esclarece que, dentro de uma relação, a busca pela fusão total não é atingida. A idealização do parceiro faz com que sejam projetadas no outro as expectativas que não encontra em si mesmo. Um estado chamado "solidão" costuma acompanhar os indivíduos, despertando sensações de desamparo. A aliança com outra pessoa  daria a sensação de plenitude, como se não fossem inteiros (GIKOVATE, 2006).

Um aspecto peculiar da contemporaneidade é a formação de uma tensão entre individualidade e conjugalidade na vida do casal. Os ideais individualistas estimulam a autonomia dos cônjuges, na busca do crescimento de cada um. Ao mesmo tempo em que também é necessário vivenciar a conjugalidade, os desejos e projetos do casal (FÉRES-CARNEIRO,1998).

Outro aspecto, de acordo com Áries & Béjin (1986),  é que os amantes podem optar por serem fiéis um ao outro, mas não a priori e sim por uma decisão livre.

Pensando sobre o ciúme, este aparece quando há insegurança pela dificuldade de se estabelecer a confiança (GIDDENS, 2002). Nunes (2006) considera o ciúme inteligível dentro da lógica onde as relações parecem descartáveis, podendo o indivíduo sentir-se ameaçado e vulnerável. A autora destaca que a sua problemática se revela dentro de uma relação amorosa onde há um monitoramento incessante, chegando a gerar sofrimento psíquico. O indivíduo precisaria resgatar a sensação de segurança obtida através do controle do outro.

 

Casais engessados pelo ciúme

O processo de mudança exige capacidade de fazer contato. Através do contato com o novo, é possível promover a descoberta e a transformação, pontuou Perls (1951 apud SILVEIRA, 2007). Através da fronteira que o contato é possível, sendo nela onde também ocorrem as resistências (Ginger, 2007).

Olhando não somente para o ciumento mas para o par que se forma e se apoia em sua dinâmica, lembramos que a constante indiferenciação caracteriza os relacionamentos doentios, onde os envolvidos na relação apresentam distúrbios de contato. Segundo Tellegen (1984), um deles pode expressar um excesso de rigidez, ou o outro uma extrema permeabilidade, acarretando isolamento ou a perda de diferenciação e identidade. Portanto, nos casos de ciúme excessivo podemos considerar que este promove fronteiras mais rígidas e dificulta um bom funcionamento desse casal que vê-se impedido de transformar a relação, enquanto o crescimento de cada membro fica comprometido.

Silveira (2007) assinala que são muitos os modelos de relacionamentos e a instabilidade das uniões afetivas do mundo contemporâneo, demandando que as fronteiras conjugais sejam flexíveis. Há um processo de união e separação entre os cônjuges, de forma a exercer suas  individualidades. Porém, existem patologias complementares quando o casal  apresenta papéis cristalizados, podendo oscilar entre esses papéis, quando cada um ocupa em dado momento um deles  (Silveira, 2007). No caso do ciúme, formam o par controlador-controlado. Há ganhos na manutenção dos papéis, apesar de tais ganhos coexistirem com sofrimento e mal-estar.

Feldman (2005) aponta que, muitas vezes, o ciumento pode encontrar uma falsa segurança na medida em que provoca insegurança no companheiro quando seduz outras pessoas de forma explícita, faz ameaças ou consuma uma traição. O ciúme provocado desestabiliza o parceiro, sendo utilizado como instrumento de dominação.

Ainda sobre a dinâmica comum aos casais que têm o relacionamento atravessado pelo ciúme,  Miller (1995) descreve como muitos casais contemporâneos constroem um padrão baseado na disputa e na competição pelo controle da relação e na prevalência das ideias e desejos de cada um dos envolvidos. O autor faz uso da expressão "terrorismo íntimo" como uma metáfora para descrever os  casais que não estabelecem relação de parceria, estando voltados para os interesses individuais. Trata-se de um padrão baseado na busca pelo controle do relacionamento, quando as pessoas atacam os pontos vulneráveis uma da outra mas também de forma sutil, quando a violação pode ocorrer sendo disfarçada de cuidado.  Este casal encontra uma forma conveniente de se relacionar, que cria uma sensação de segurança, mas na verdade é um subterfúgio para não terem que lidar com a intimidade e suas questões. O ciúme mantém os parceiros juntos, mas a uma distância segura um do outro. Os pares vivem um perseguindo e o outro fugindo, mas não conseguem se encontrar ou diminuir o espaço que há entre eles.

 

Mecanismos de evitação de contato e a dinâmica do ciúme

As pessoas administram sua energia de modo a obter um bom contato com seu ambiente ou para resistir ao contato, sendo necessário redirecionar essa energia por diversos modos (POLSTER e POLSTER, 2001). Diante da impossibilidade de satisfazer uma de suas necessidades e realizar bom contato ou de poder optar pela evitação deste, o organismo se vê obrigado a recorrer a estratégias que assegurem sua integridade e sua sobrevivência. Esses mecanismos de defesa não são danosos enquanto não criarem uma cristalização.

Podemos pensar o ciúme a partir dos mecanismos de evitação de contato, destacando a expressão de alguns deles:

Polster e Polster (2001) assinalam que a projeção é comum ao indivíduo que não é capaz de aceitar seus sentimentos e ações, pois acredita não dever sentir ou agir desse modo. A partir disso, aquele que projeta nega o que é seu e o atribui à outra pessoa. Perls (1988) destaca que o mecanismo é comum aos casos em que a paranoia está presente. O indivíduo tende a desconfiar e acusar os outros, a partir de sua própria agressividade projetada. O mesmo autor diz que a pessoa faz hipóteses baseadas em suas próprias fantasias, mas não reconhece o que faz. Ao invés disso, tende a responsabilizar os outros por seus próprios problemas. No caso do ciúme, é experimentado como provocado pelo outro, o que livra a si mesmo de responsabilidade sobre os próprios sentimentos de desqualificação e insegurança que são projetados no parceiro. É como se o ciúme fosse provocado pelo outro, o que isenta o indivíduo de responsabilidade, levando-o a uma vitimização. O ciumento pode também projetar os próprios desejos de trair por meio das desconfianças sobre a infidelidade do parceiro.

Cavalcante (1997) assinala que o ciumento pode não se satisfazer com as provas materiais que busca e o liberariam da desconfiança. Ao mesmo tempo em que alimenta aspectos irreais para fortalecer a própria desconfiança que a relação pode chegar a um grau tão significativo ao ponto de o ciumento se desligar de seus investimentos mais significativos para viver através das necessidades e da vida de seu parceiro, construindo uma relação de dependência quase que absoluta.

Passando à confluência, esta acontece quando a relação é tida entre duas pessoas que concordam em não discordar por meio de um acordo velado (POLSTER e POLSTER, 2001). De forma cristalizada, o indivíduo não consegue fazer contato com ele mesmo pelo fato de se ver ligado fortemente aos outros sem diferenciar o que é seu do que é deles. Quando é um estado disfuncional,  a pessoa não pode discriminar entre o que ela é e o que as outras pessoas são pois as fronteiras de cada um mostram-se pouco distintas (PERLS,1988). Um dos membros não aceita diferenças e insiste em fazer do companheiro algo que ele não é. O parceiro atende as exigências do outro, se submetendo ao que este determina. Mostra-se intolerável reconhecer a dependência, porque perceber o outro separado de si é precisar desse outro para uma série de gratificações pessoais  (Silveira, 2007). O ciumento torna-se dependente do outro, não sendo capaz de distinguir mais o que é seu e o que é dele. Portanto, o ciumento é aquele que carece de autossuporte.

A retroflexão pode ser observada quando o indivíduo trata a si mesmo como gostaria de tratar as outras pessoas. Ao invés de dirigir suas energias para fora, na tentativa de provocar mudanças no meio que satisfaçam suas necessidades ele as investe nele mesmo, colocando-se como alvo do comportamento. Em geral, quem retroflete se culpabiliza e se arrepende do que faz. Isso porque se enxerga inadequado e sem satisfação em suas relações com o meio (PERLS, 1988). Tentando combater a sensação de inadequação, faz as coisas e acaba por refazê-las (RIBEIRO, 1997). No caso do ciúme, é comum haver verificações excessivas de sinais da infidelidade do parceiro. O ciumento se culpabiliza e se arrepende do que faz mas não consegue evitar a repetição desse comportamento.

Os Polster e Polster (2001) falam sobre um desdobramento da confluência para a retroflexão quando um dos parceiros viola a confluência, permitindo-se vivenciar algo em sua individualidade. Diante da própria  transgressão, a culpa é um sinal característico, levando o indivíduo punir a si mesmo, se desvalorizando.

A proflexão seria uma espécie de combinação de projeção com retroflexão, ou seja, fazer ao outro o que gostaríamos que o outro nos fizesse (GINGER & GINGER,1995). A pessoa costuma  manipular os outros de forma a receber o que deseja, tendo dificuldade de se reconhecer como própria fonte de nutrição (RIBEIRO,1997). O ciumento não pouparia esforços para fazer de tudo pelo parceiro, doando-se inteiramente a ele, na expectativa de receber elogios e a mesma dedicação em troca. No entanto, pode não ser atendido em sua necessidade de receber atenção e afeto, o que provocaria insegurança (NUNES, 2009).

 

O processo terapêutico

É bem comum encontrarmos o cliente que vivencia o ciúme de forma excessiva tendo as suas funções de contato enfraquecidas. Ou seja, o cliente não vê e não ouve, não mais se comunica com o outro com eficiência, o que o mantêm no padrão neurótico. Portanto, é importante que essas funções sejam trabalhadas na terapia (NUNES, 2009).

Ao falar de ciúme, é bem comum o cliente ficar no conteúdo, explorando os  detalhes dos acontecimentos, solicitando ao terapeuta que analise os fatos com ele. Mesmo parecendo tentador, o terapeuta não deve combater, questionar ou refutar as desconfianças. Nunes (2009) assinala que o terapeuta precisa evitar perder o contato com a mensagem existencial de seu comportamento de ciúme pois o sintoma contém um sentido. De forma geral, o cliente sabe que suas desconfianças são fantasiosas mas não consegue deixar de possuí-las, utilizando diversos argumentos para convencer o terapeuta.

O terapeuta busca auxiliar o cliente para que seu campo perceptivo possa se reorganizar quando o que era fundo se torna figura. Ganhando um contorno mais claro, as figuras de ciúme ficarão mais nítidas para que se possa trabalhar com elas. O cliente traz como figuras as discussões e brigas por conta do ciúme; seus medos, inseguranças, sentimentos de menos- valia, introjeções aparecem como fundo (NUNES, 2009).

Apesar do campo já ter mudado, o cliente ainda reage em relação àquilo que lhe aconteceu no passado, se impedindo que flexibilize a ‘forma' estereotipada que desenvolveu para lidar com o mundo   (SPANGEMBERG, 2007). Nunes (2009) destaca que o cliente não é capaz de ‘estar presente' e se relacionar com o outro pois se mantém fiel a fantasias de abandono, desqualificação e menos-valia vivenciadas no passado. Ocorre a repetição de difíceis experiências que buscam elaboração ‘fora do tempo'. Tendo isso por base, mais importante que explorar as explicações que o cliente traz para justificar seu comportamento, é partir para o 'como' o cliente se mantém dessa forma. No lugar de questionar as fantasias do cliente, o terapeuta terá mais eficácia em investigar para que servem essas fantasias. Portanto, o cliente visitará a própria experiência e revelará seus próprios sentidos que levam as suas atitudes ciumentas.

A relação entre terapeuta e cliente é uma possibilidade de reproduzir a ‘forma' encontrada pelo cliente para se relacionar com o mundo. Representa um recurso valioso ao processo terapêutico, na medida em que atenta ao ‘como' o cliente se ajusta criativamente por meio de uma conduta ciumenta. Além disso, o cliente poderá obter uma ressignificação de sua experiência, despertando-o para uma vida com mais liberdade e contato (NUNES, 2009).

A teoria paradoxal da mudança (Beisser, 1980) serve se embasamento para nossa prática. Ela traz que a mudança acontece quando a pessoa se torna o que é, não quando tenta converter-se no que não é. Para tanto, é preciso aceitar afetos, pensamentos e desejos, mesmo que desagradáveis e dolorosos. Portanto, na clínica procuramos focalizar o que é, agora, solicitando ao cliente que possa fazer contato com o que está fazendo no momento.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No processo terapêutico, mais importante que explorar as causas da insegurança do cliente, será trabalhar com as próprias funções de contato que, permanecendo enfraquecidas, mantêm o cliente no padrão neurótico. Além disso, analisar as explicações que o cliente traz para justificar seu comportamento não é de ajuda efetiva, mas sim partir para o 'como' o cliente se mantém dessa forma. Ou seja, no lugar de questionar ou refutar as fantasias do cliente, o terapeuta terá mais eficácia em investigar para que servem essas fantasias. 

Retomando a questão da confluência patológica, o ciumento busca apoio ambiental no lugar de contar com o próprio potencial (PERLS, 1988). Necessita saber onde seu parceiro está, com quem, fazendo o que ele faz, indo onde ele vai. Quando o apoio ambiental falha, não acontecendo como ele espera, surge a insegurança. Sendo assim, na terapia, é comum o parceiro do ciumento ter mais espaço que o próprio cliente pelo fato do ciumento torna-se dependente do outro. O trabalho terapêutico pretende ajudar esse cliente a delimitar seus próprios sentimentos, responsabilizar-se por suas projeções. A expressão dos sentimentos torna-se mais produtivo do que as acusações feitas ao parceiro, quando este pode acolher bem melhor do que quando se sente acusado, o que gera a reação de defesa, de dissuadir o outro de suas fantasias ou até mesmo gerar uma retaliação (BRANDEN,1980). 

Yontef (1998) afirma a importância do processo de aceitação pois sendo ele mesmo, o cliente passa a ter uma base sólida para se movimentar. E justamente a possibilidade de mudança está ligada ao desenvolvimento de autossuporte, sendo primordial que seja desenvolvido dentro do processo terapêutico do cliente ciumento. Chegando à aceitação de como é, o cliente será capaz de descobrir o próprio sentido de suas atitudes ciumentas e começar a experimentar saídas mais funcionais para suas dores.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁRIÈS, P. & BEJIN, A. (1986). Sexualidades Ocidentais: contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

BAUMAN, Z. (2004) Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

BEISSER, A. (1980) A Teoria Paradoxal de Mudança In Fagan, J. e Shepherd, I.L. Gestalt-Terapia - teoria, técnicas e aplicações. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

BRANDEN, N. (1998) A Psicologia do Amor. O que é amor por que ele nasce, cresce e às vezes morre. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.         [ Links ]

CAVALCANTE, M. (1997)O Ciúme Patológico. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.         [ Links ]

DUMONT, L. (1985) O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

FELDMAN, C. (2005) Sobrevivendo à traição. Belo Horizonte: Editora Crescer.         [ Links ]

FERREIRA, A.B. de H. (1995) Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

FÉRES-CARNEIRO, T. (1998) Casamento contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Porto Alegre: Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 11, n. 2, p. 379-394.         [ Links ]

FOUCAULT, M. (1993) História da Sexualidade. Vol 3. São Paulo: Graal.         [ Links ]

FROMM, E. (1974) O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

GIDDENS, A. (2002) Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ] 

GIKOVATE, F. (2006) Ensaios sobre o amor e a solidão. MG Editores: São Paulo.         [ Links ]

GINGER, S & GINGER (1995) Gestalt: uma terapia do contato. São Paulo: Summus.         [ Links ]

__________. (2007) Gestalt: a Arte do Contato. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Lewin, k. (1973) Princípios de psicologia topológica. São Paulo, Cultrix.         [ Links ]

LUFT, L. (2003) Perdas e Ganhos. Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

MACHADO, J. P. (1990) Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 6ª ed.         [ Links ]

MILLER, M.V. (1995) Terrorismo íntimo. A deterioração da vida erótica. Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

NUNES, L.B. (2006) O ciúme nas relações amorosas contemporâneas. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/IP.         [ Links ]

___________ (2009) Amores adormecidos e amores triunfantes na contemporaneidade: o ciúme na clínica gestáltica. In: IX Congresso e XII Encontro Nacional de Gestalt-Terapia, setembro de 2009. Disponível em:http://www.igt.psc.br/ojs2/index.php/cengtb/article/view/215/441 . Acesso em fevereiro de 2013.         [ Links ]

PERLS, F. (1988) A abordagem gestáltica e a testemunha ocular da terapia. Rio de Janeiro: LTC.         [ Links ]

PLASTINO, C. A. (1996). Os Horizontes de Prometeu. Considerações para uma Crítica da Modernidade. In PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, (n 11): (pp. 195 -216). Rio de Janeiro: Editora do IMS, Uerj.         [ Links ]

POLSTER & POLSTER, E. e M. (2001). Gestalt-Terapia Integrada. São Paulo: Summus editora.         [ Links ]

RODRIGUES. H. E (2000) Introdução à Gestalt- terapia: conversando sobre os fundamentos da abordagem gestáltica. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

SILVEIRA, T.M. (2007) Caminhando na corda bamba. A gestalt-terapia de casal e de família. Disponível em: http://www.igt.psc.br/Artigos/caminhando_na_corda_bamba.htm.         [ Links ]

SPANGEMBERG, A. (2007) Gestalt-terapia: um caminho de volta para casa. São Paulo: Livro Pleno.         [ Links ]

VAITSMAN, J. (1985) Casal sim, mas cada um na sua casa. Jornal do Brasil. In: Caderno Especial. A nova família. Rio de Janeiro.         [ Links ]

tellegen, t. a. (1984). Gestalt e grupos: uma perspectiva sistêmica. São Paulo, Summus.         [ Links ]

YALOM, M. (2002) A História da Esposa: da Virgem Maria a Madonna: o papel da mulher casada dos tempos bíblicos até hoje. Rio de Janeiro: Ediouro.         [ Links ]

YONTEF, G.M. (1998) Processo, diálogo e awareness: ensaios em Gestalt-terapia.  São Paulo: Summus.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Bruna Cabral Vianna Pinto

Endereço eletrônico: brunacabralvp@yahoo.com.br

Recebido em: 28/07/2013

Aprovado em: 25/12/2013

 

 

Notas

*IGT-Instituto de Gestalt Terapia e Atendimento Familiar - Rio de Janeiro, Brasil

Creative Commons License