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IGT na Rede

On-line version ISSN 1807-2526

IGT rede vol.11 no.20 Rio de Janeiro Jan./June 2014

 

ARTIGOS

 

Paul Goodman e o projeto do livro Gestalt Therapy

Paul Goodman and the Project of the book Gestalt Therapy

Marcus Cézar de Borba Belmino*

UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina, SC - Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar as principais ideias do livro Gestalt Therapy: Excitement and Grouth in the Human Personality. O livro, publicado em 1951, marca a fundação da Gestalt-terapia, assim como apresenta as propostas teóricas do escritor e crítico político Paul Goodman (descritas no segundo tomo do livro). Paul Goodman faz uma releitura das teorias psicanalíticas e neopsicanalíticas a partir da fenomenologia e do pragmatismo, apresentando uma nova antropologia assim como também outra forma de se conceber a psicologia. Com isso, Goodman apresenta uma nova teoria do self e sua implicação para se pensar o campo da psicoterapia e também uma ética gestáltica que pode ser replicada igualmente na educação e na política. Esperamos que este artigo possa contribuir para o crescimento da abordagem gestáltica, assim como ressaltar a importância de Goodman como um autor fundamental para o desenvolvimento da Gestalt-terapia.

Palavra-chave: Gestalt-terapia; Paul Goodman; anarquismo; educação libertária.


ABSTRACT

This article aims to present the main ideas of the book Gestalt Therapy: Excitement and growth in the Human Personality. The book published in 1951 marks the founding of Gestalt therapy, as well as presents the theoretical proposals written by writer and political critic Paul Goodman (described in the second volume of the book). Goodman reexamines psychoanalytic theories and neo-psychoanalytic from phenomenology and pragmatism presenting a new anthropology as well as another way of conceiving psychology. Thus, Goodman presents a new theory of the self and its implications for thinking about the field of psychotherapy and also an gestaltic ethic that can be replicated also in education and politics. Hopefully this article will contribute to the growth of the gestalt approach, as well as emphasize the relevance of Goodman as an essential author to the development of this approach.

Keywords: Gestalt-Therapy, Paul Goodman, ego psychology, psychotherapy.


 

1 Introdução

O livro Gestalt Therapy: Excitement and Grouth in the Human Personality foi escrito em 1951 e é considerado o marco fundamental de fundação da abordagem gestáltica. Porém, por mais que o livro tenha esse reconhecimento histórico, ele não recebeu o devido reconhecimento como fundamento teórico da abordagem (FROM; MILLER, 1997). Este artigo tem como objetivo apresentar as principais contribuições oriundas desse livro para o campo da natureza humana e suas implicações na psicoterapia e a compreensão social implícita a ela. Para tanto, defende-se a importância de atribuir o projeto implícito ao tomo teórico do livro Gestalt Therapy (a partir de agora, será utilizado o nome em inglês do livro para se referir à obra, e o nome em português para o nome da abordagem) àquele que foi seu maior articulador e escritor: Paul Goodman.

Apesar de o livro ser assinado por três autores – Frederick Perls, Ralph Hefferline e Paul Goodman – a forma como esses três autores participaram da construção do livro se deu de maneira muito peculiar. O livro original é dividido em duas partes (do qual somente o tomo teórico foi traduzido para o português), uma parte prática de exercícios autodirigidos construídos por Fritz Perls e que foram aplicados por Ralph Hefferline em experimentos na área da educação e uma parte teórica cunhada fundamentalmente pela pena de Paul Goodman. Segundo Stoehr (1994), Fritz Perls pagou Paul Goodman para que ele escrevesse a parte teórica do livro a partir de alguns manuscritos e também a partir das ideias inauguradas em seu primeiro livro, Ego, Fome e Agressão: Uma revisão da teoria e método de Freud, em que aponta as suas primeiras divergências do pensamento freudiano (PERLS, 2002).

Fritz Perls construiu essas ideias a partir das críticas dirigidas à psicanálise e pela reconstrução do modo de pensar e praticar a análise. Sua proposta pode ser apresentada a partir de quatro pilares: 1) na desconstrução da noção de psiquismo a partir das teses gestaltistas e substituindo-as por uma compreensão organísmica (baseada primordialmente no pensamento de Kurt Goldstein); 2) na busca pela construção de uma linguagem não dicotômica a partir da aplicação de uma leitura dialética baseada no pensamento diferencial de S. Friedlander; 3) pela inserção de uma compreensão da neurose a partir de uma leitura sociocultural, influenciada primordialmente por W. Reich; e, por último, 4) uma revisão da técnica terapêutica da associação livre, substituindo-a pelo foco na experiência presente a partir da concentração na experiência imediata (PERLS, 2002).

Ao migrar para os Estados Unidos, Fritz Perls foi apresentado a Paul Goodman pela aproximação que os dois tinham em função do pensamento de W. Reich (STOEHR, 1994). A partir desse encontro, Fritz Perls, Laura Perls (sua esposa na época) e Paul Goodman iniciaram um movimento que aos poucos foi se ampliando e constituindo um grupo interessado na fundação de uma nova abordagem para o campo da psicoterapia e áreas afins. A inauguração da Gestalt-terapia como abordagem se deu oficialmente a partir do lançamento do livro em 1951, mas também a partir das discussões do chamado grupo dos sete (GINGER; GINGER, 1995), do qual faziam parte Fritz Perls, Laura Perls e Paul Goodman, assim como também Ralph Hefferline, Isadore From, Vincent Miller, entre outros.

Por mais que esse grupo se reunisse, a busca por uma leitura unificada do que viria a ser a abordagem psicoterápica ali construída não era de fato discutida: “Havia discussões, mas certamente eu não me lembro de existir um tópico sobre ‘o que era a Gestalt-terapia’” (FROM, 1988, p. 33-34, tradução nossa).

From (1988) aponta que, apesar de não haver claramente um líder no grupo, Fritz Perls e Paul Goodman eram sem dúvidas os mais atuantes. Paul Goodman era um escritor, poeta, novelista e crítico literário que possuía fortes posições anarquistas. A ideia inicial era a de que Goodman fosse somente o editor do livro, porém, com o tempo Goodman comprou a ideia e o desafio propostos por Fritz e Laura e tornou-se coautor do livro. Porém, como aponta Stoehr (1991b), o estilo de coautoria de Goodman era bem peculiar; tal como fizera em seu livro Communitas, escrito com seu irmão Percival, Goodman gostava de debater o tema com seus coautores e escrever sozinho para dar a sua interpretação às informações colhidas. Porém, Goodman e Perls não se deram bem logo de início, e os contatos dos dois foram mínimos, dando a Goodman total liberdade para produzir o tomo teórico do livro.

Por isso, Paul Goodman tomou a liberdade de descrever as ideias levantadas a partir de seu modo de interpretar o campo da natureza humana. Assim, Goodman trouxe um novo olhar para as propostas do casal Perls, ampliando essas discussões para além da psicoterapia, incluindo temáticas que já eram de seu interesse, tal como o campo da educação e da política, como foi mostrado em trabalhos anteriores (Belmino, 2014). Esse empreendimento foi feito a partir de novos fundamentos epistemológicos, a saber, a fenomenologia de Husserl e o pragmatismo de John Dewey como formas de aplicar uma nova lente para pensar o self, indo além das teses subjetivistas e individualistas que poderiam ser encontradas na psicologia e na psicanálise da época (STOEHR, 1994).

O próprio Fritz Perls reconhece, no prefácio escrito na reedição de 1969 do Gestalt Therapy, que o livro ainda tinha seu grande valor devido aos exercícios nele propostos (construídos prioritariamente por ele e Ralph Hefferline), mas que não concordava com as discussões teóricas sobre a teoria da neurose ali produzida (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997).

Foi essa divergência, inclusive teórica, que fez com que a Gestalt-terapia criasse várias ramificações e movimentos, sendo o livro base da abordagem praticamente inutilizado com o tempo (FROM; MILLER, 1997), e, devido ao seu estilo mais expansivo, performático e atuante no campo da psicoterapia, a Gestalt-terapia acabou sendo mais identificada com o estilo de Fritz Perls. Isso criou uma separação nítida entre o grupo da costa leste e o da Califórnia, ou seja, o grupo criado por Fritz Perls e o grupo criado por Laura Perls e Paul Goodman (FROM; MILLER, 1997).

Se o livro de 1951 foi por muitas vezes ignorado, isso não se deu à toa. Porque, se a Gestalt-terapia foi mais identificada ao estilo de Perls, sabemos que ele não utilizava o livro como fundamento para a sua prática. Além disso, ainda que houvesse alguns interessados na leitura do livro, ele era identificado como uma obra de difícil leitura, dado que era visível a dessemelhança entre o tomo teórico e o tomo prático, o “que deu ao livro uma personalidade dividida” (FROM; MILLER, 1997, p. 17). Além disso, ainda havia o fato de que a parte teórica parecia ter sido escrita “numa prosa descompromissadamente difícil” (Ibidem, p. 18).

Mas de onde vinha essa forma de escrita difícil? Goodman afirmara, em uma carta endereçada a Köhler, que o livro buscava integrar o pensamento fenomenológico de Husserl e o pragmatismo de Dewey: “quanto à forma de expressar estas ideias, eu modernamente me associo, digamos, às Ideen de Husserl ou, pelo aspecto oposto, às ideias de Dewey” (GOODMAN apud STOEHR 1994, p. 103, tradução nossa). Por mais que possa parecer uma integração inusitada, a leitura integrativa entre essas duas teorias tinha como propósito apresentar uma forma de ler a experiência vivida para além das dicotomias apresentadas pela filosofia e pela ciência tradicional que acabavam cedendo ao positivismo e ao naturalismo.

Já na introdução do livro, Goodman alerta sobre a dificuldade de assumir essa descrição da experiência pré-reflexiva:

“O leitor é aparentemente confrontado com uma tarefa impossível: para entender o livro precisa de uma mentalidade ‘gestaltista’, e para adquiri-la precisa entender o livro. Felizmente, a dificuldade está longe de ser insuperável, visto que os autores não inventaram tal mentalidade. Ao contrário, acreditamos que a perspectiva gestáltica é a abordagem original, não deturpada e natural da vida; isto é, do pensar, agir e sentir do homem” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 32).

Por mais que essa tentativa de pensar uma teoria não dicotômica fosse algo em que Goodman estava interessado desde o início de seu trabalho, ele encontrou nos textos de Perls um apoio para pensar essas novas categorias. Perls já havia mostrado um ponto fundamental de erro teórico das psicoterapias tradicionais, visto que elas buscavam uma tarefa impossível, a de “integrar personalidades com o auxílio de uma linguagem não-integradora” (PERLS, 1977, p. 72).

Para tentar superar essas concepções dicotômicas, Perls recorre à noção de indiferença criativa do filósofo Friedlander para pensar uma leitura de campo da experiência de autorregulação organísmica (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2007). Para Fritz Perls a teoria da indiferença criativa poderia ser uma nova ferramenta para se pensar o campo experiencial a partir de uma leitura dialética, porém, sem precisar recorrer às teses metafísicas que muitas vezes atravessam o pensamento dialético. Para ele, a indiferença criativa é a “quinta-essência da dialética” (PERLS, 2002 p. 48).

Assim, essa nova leitura do campo da experiência poderia ser incluída na experiência clínica sem a necessidade de cair no paradigma associacionista a que Fritz acusava Freud de recorrer: “as teses de Friedlander permitiam uma descrição de nossas vivências de campo sem que, para tal, tivéssemos de admitir um agente exterior (causa primeira), uma teleologia (causa final, distinta dos próprios meios) ou uma forma rígida ou linear (causa formal)” (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO 2007, p. 148).

Já Goodman não recorre às teses de Friedlander para descrever a experiência, mas, sim, é a fenomenologia que ele vai utilizar como ferramenta crítica para olhar para o campo experiencial de forma não dicotômica:

“Mas talvez a contribuição mais importante que Goodman deu aos insights de Perls foi simplesmente trazê-los numa linguagem fenomenológica [...] O objetivo do tratamento fenomenológico dos conceitos foi justamente para incutir uma nova atitude, para acostumar os leitores a um ponto de vista diferente” (STOEHR, 1994, p. 92-93, tradução nossa).

Sendo assim, o objetivo do tomo teórico do livro Gestalt Therapy foi o de apresentar uma releitura fenomenológica e pragmática das teorias psicanalíticas e neopsicanalíticas e com isso estabelecer uma nova forma de compreender a natureza humana e as relações sociais. Porém, é comum que encontremos atrelada ao modo libertário e antiteórico com que Fritz Perls traduziu o pensamento gestáltico a ideia de que o livro possa ser desconsiderado ou ultrapassado, o que acabou também contribuindo para a pouca aderência às propostas de leitura da natureza humana propostas no livro.

Por isso, é importante perguntar: é necessária uma teoria da natureza humana para a abordagem gestáltica? É bastante discutida a forma como a Gestalt-terapia aponta a sua posição teórica (e, por que não dizer, política) quando afirma não possuir, de forma estruturada, uma teoria da personalidade, uma teoria do desenvolvimento e uma teoria da psicopatologia (HOLANDA, 2005; ROBINE, 2006). Essa posição, que nasce com Fritz Perls, na verdade diz respeito a uma postura assumida pela abordagem, desde o seu nascimento, em prol de uma crítica radical às teorias subjetivistas, individualistas e reducionistas do humano.

Assim, a Gestalt-terapia, em suas várias ramificações, sempre buscou apontar falhas nos sistemas psicológicos fechados, ou seja, aqueles que possuem como fundamento alguma forma de psicologismo, reducionismo ou leitura teleológica explícita da experiência. De fato, a Gestalt-terapia, desde sua intenção originária com Fritz Perls (2002), sempre se posicionou radicalmente contra o moralismo que permeava muitos dos campos da psicologia e da psicoterapia, e buscou, antes de qualquer coisa, um respeito às capacidades de autorregulação do organismo (PERLS, 2002).

Assim, a tradição de pensamento da abordagem gestáltica sempre criticou os sistemas que focam a concepção de saúde e doença a partir de uma função normativa, definindo claramente um objetivo último para o sujeito na psicoterapia, ou seja, um conceito de saúde já pré-estabelecido que deva ser alcançado através de uma terapêutica específica. Perls (1977) afirma que a Gestalt-terapia é uma teoria existencialista, em contrapartida a uma teoria que se funda em paradigmas pré-estabelecidos de ciência e de moralidade.

Por isso, muitas vezes a proposta de Paul Goodman e a teoria do self por ele apresentada foram acusadas de ferir esse princípio libertário. Essa crítica é, no mínimo, um equívoco de leitura, pois este também era o ideal da perspectiva de Paul Goodman. Já que, para ele, “O problema da psicoterapia é arregimentar o poder de ajustamento criativo do paciente sem forçá-lo a encaixar-se no estereótipo da concepção científica do terapeuta” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 90). Nesse sentido, a construção teórica da Gestalt-terapia se constitui como uma crítica também a uma das principais dicotomias nas quais muitas correntes da Gestalt-terapia recaem, a saber, a dicotomia teoria-prática.

Talvez por isso Paul Goodman tenha recorrido à Fenomenologia e ao Pragmatismo como duas possíveis bases para edificar seu empreendimento. Da fenomenologia, ele trouxe a superação de uma leitura psicologista ou historicista da experiência, e do pragmatismo ele procurou trazer a ênfase na experiência concreta e na importância de uma leitura social (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2012).

Por isso o projeto do tomo teórico do livro Gestalt Therapy é o de apresentar uma teoria e prática da psicoterapia, mas, além disso, é também uma proposta de compreensão do modo contemporâneo das formas de expressão humanas a partir de uma tese antropológica e social. Porém, essas duas leituras são constituídas não a partir de uma racionalização ou de uma compreensão transcendental do que é o homem, mas sim de uma reflexão contínua da dinâmica da própria experiência.

 

2. Uma nova leitura da natureza humana

Para Goodman (1960), é fundamental que qualquer investigação, seja no campo da educação, da política ou da psicoterapia, comece a partir de uma investigação da natureza humana. Goodman já havia apresentado anteriormente uma vasta crítica às teorias psicanalíticas e neopsicanalíticas (Goodman, 1991), e, por isso, resolve importar essas leituras para suas discussões no livro Gestalt Therapy e buscar uma releitura das teorias da psiquiatria e da psicanálise freudiana e neofreudiana (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). Tal como dito anteriormente, seu propósito era repensar a dimensão dicotômica que essas teorias apresentavam a partir de um viés fenomenológico e pragmatista da compreensão da realidade e do campo experiencial. Assim, dentro desse viés unitário, torna-se possível pensar uma nova unidade básica de investigação, a saber, a própria experiência, já que

“A totalidade das experiências não inclui ‘tudo’, mas são estruturas unificadas e definidas; e psicologicamente tudo o mais, inclusive a própria idéia de organismo e ambiente, é uma abstração ou uma construção possível, ou uma potencialidade que se dá nessa experiência como indício de outra experiência” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997 p. 41).

Nesse contexto, é possível pensar uma nova antropologia que tenha como ponto de partida a unidade indivisível da experiência, ou seja, tendo como ponto de partida o “campo organismo/ambiente” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 42), e, assim, não cairemos em uma antropologia que pense a partir de um subjetivismo ou uma noção de interioridade independente dos agentes exteriores. O campo é, para Goodman, a própria célula integrativa da experiência. Pensar qualquer ação humana, sem entendê-la a partir de uma abordagem de campo, será sempre uma investigação incompleta. Ou seja, “em toda e qualquer investigação biológica, psicológica ou sociológica temos de partir da interação entre o organismo e o ambiente” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 42).

Mas como atravessamos tantos séculos tendo como fundamento de nosso pensamento uma leitura dicotômica da realidade? Para Goodman, é fundamental entendermos que o pensamento dicotômico não tem a ver necessariamente com um erro teórico, mas com o modo como as experiências humanas têm se constituído nos últimos séculos, dado que o pensamento dicotômico é a base do modo de pensar neurótico, daí o porquê de reconhecê-las como “dicotomias neuróticas básicas” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 54). Podemos perceber uma “antropologia da neurose” (Ibidem, p. 115) na própria constituição evolutiva da natureza humana, ou seja, no decorrer dos séculos, fomos nos afastando de nossas experiências mais elementares e fomos reprimindo nossa sensibilidade e criatividade. Porém, isso não aconteceu à toa, já que “a neurose também é parte da natureza humana e tem sua antropologia” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 118) e, assim, ao invés de compreender a neurose como uma forma de adoecimento, Goodman propõe percebê-la como um aspecto evolutivo da natureza humana. Talvez, o grande salto do livro Gestalt Therapy em relação às teorias psicológicas que interpretam o campo da saúde e doença seja justamente a compreensão de que a personalidade neuroticamente dividida tem a ver com um processo de busca de equilíbrio, ou seja, de um processo de autorregulação organísmica.

Por essa razão é que Goodman é tão enfático em caracterizar o processo de construção da personalidade neurótica como “funções saudáveis” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 118), isso porque, no modo neurótico em que vivemos, muitas vezes tidas como sem sentido, desnecessárias ou “ridículas para quem olha de fora” (Ibidem, p. 35), são na verdade estratégias de sobrevivência e de superação de um contexto social que é extremamente adoecido. Ou seja, uma sintomatologia neurótica tem a ver com um modo criativo de lidar com uma série de erros antropológicos que criaram um sistema social opressor e com pouca mobilidade e capacidade para um desenvolvimento criativo.

Nesse sentido, o reconhecimento de uma abordagem que perceba a experiência a partir de um campo multidimensional nos leva a repensar o próprio objeto de estudo da Gestalt-terapia. Isso porque Goodman apresenta no tomo teórico do livro Gestalt Therapy um estudo que não é somente uma antropologia, pois reconhece a natureza humana também a partir de uma leitura sociológica intensa do desenvolvimento das categorias sociais. Porém, apresenta também uma reconfiguração das noções de saúde e doença tão cara à psiquiatria da época, entendo-a como construções transitórias e não fixadas em uma psicopatologia formal. Por esse motivo, Goodman apresenta sua abordagem não como uma antropologia, não como uma sociologia, nem como uma psicopatologia, mas como uma “Psicologia social” (GOODMAN, 1973 p. 135) afirmando que “em Gestalt Therapy defino a psicologia como o estudo dos ajustamentos criativos” (Ibidem, p. 137).

2.1. A ideia de psicologia como estudo dos ajustamentos criativos

Mas em que sentido nós podemos pensar que a proposta levantada por Paul Goodman no livro Gestalt Therapy é uma forma de psicologia? E o que ele quer dizer com a afirmação de que a psicologia é o estudo dos ajustamentos criativos? Essas questões são importantes já que a psicologia como uma área de conhecimento se formou tendo uma série de embates para conseguir estabelecer o seu objeto de estudo. Para Goodman, a psicologia “é um tema peculiar, e entende-se facilmente por que psicólogos sempre acharam difícil delimitar seu objeto” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 43). Isso porque a psicologia, em toda a sua construção histórica, foi constituída a partir de uma série de combinações e contraposições entre modelos fisiologistas, modelos intrapsíquicos ou sociológicos. Porém, é quase hegemônico nos manuais de psicologia que o nascimento da psicologia como ciência se deu a partir dos trabalhos de W. Wundt e a sua tentativa de descontruir o pensamento metafísico (GUNDLACH, 2012). Sabemos, no entanto, que a investigação de um objeto psicológico já vinha sendo problematizada séculos antes das discussões de Wundt, e, além disso, mesmo depois de suas pesquisas, várias correntes de pensamento se constituíram a partir da contraposição das ideias wundtianas.

Na escrita do livro Gestalt Therapy, Paul Goodman e também Fritz Perls se apoiaram o tempo inteiro em modelos de discussão do psiquismo que tinham, como ponto de encontro, a busca de desconstruir o modelo wundtiano de se pensar a relação entre o psíquico e o somático (o que Wundt chamou de paralelismo psicofísico). Por isso, mesmo que pareçam muitas vezes antagônicas, a psicanálise freudiana e parafreudiana, a fenomenologia, o gestaltismo, o pragmatismo, os estudos contemporâneos sobre a semântica, entre outras perspectivas que atravessam o livro Gestalt Therapy, possuem em comum a tentativa de pensar novos caminhos para os problemas levantados por Wundt.

Por isso, de forma direta ou indireta, todas essas teorias encontram em suas bases nas influências do filósofo vienense Franz Brentano, que buscou desconstruir o fundamento associacionista e antifilosófico de Wundt, criando uma psicologia que tinha como objetivo primeiro descrever os fenômenos psíquicos, ao invés de tentar quantificá-los em laboratório (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2007). A partir de sua atividade descritiva, Brentano relocou na discussão filosófica contemporânea um conceito muito caro à filosofia escolástica, a saber, a noção de intencionalidade: “o princípio da intencionalidade é que a consciência é sempre ‘consciência de alguma coisa’, que ela só é consciência estando dirigida a um objeto” (DARTIGUÉS, 2005, p. 22). A ideia de intencionalidade descontruía o “predicamento egocêntrico” (SOKOLOWSKI, 2000, p. 21) da psicologia, e reestabelecia o papel da investigação dos aspectos relacionais da consciência e seus objetos. Esse conceito foi de fundamental importância para a construção do pensamento de E. Husserl e do movimento do gestaltismo (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2007), mas também é possível encontrar as influências de Brentano no pensamento de Freud e nos princípios da metapsicologia psicanalítica (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2007; GARCIA-ROZA, 2004).

Tendo em mente a noção de intencionalidade, podemos agora entender qual a noção de psicologia que é estabelecida no Gestalt Therapy. Afinal, para Goodman

“Imitando Aristóteles, psicólogos modernos (especialmente do século XIX) começam pela mera física dos objetos de percepção, e em seguida voltam-se para a biologia dos órgãos etc. Contudo, eles não têm o discernimento compensador e preciso de Aristóteles de que ‘no ato’, no perceber, o objeto e o órgão são idênticos” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 43).

Dessa forma, retomando diretamente o pensamento de Aristóteles (que fora uma forte influência para Brentano), o livro Gestalt Therapy nos mostra um modo de pensar a investigação psicológica que parte do princípio de que não podemos distanciar o organismo de seu mundo circundante. Assim, “a psicologia estuda a operação da fronteira de contato no campo organismo/ambiente” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 43), e, nesse contexto, precisamos entender a fronteira de contato como “o órgão de uma relação específica entre o organismo e o ambiente” (Ibidem, p. 44). Nesse sentido, a fronteira de contato não é um lugar que pode ser identificado entre o organismo e o ambiente. Na verdade a fronteira de contato é uma função que emerge nos atos relacionais entre o organismo e o ambiente. Nesses atos (o contato), a fronteira de contato são abstrações que permitem pensar a diferenciação entre o organismo e o ambiente, mas também sua forma de integração.

Igualmente, dentro dessa concepção, contatar não é o ato de “atritar” com algo (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2007, p. 193), mas é o processo de assimilação da novidade e a rejeição do inassimilável. O “contato é ‘achar e fazer a solução vindoura’” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 48), ou seja, é a construção, na atualidade, de uma solução (ainda virtual) para um obstáculo encontrado no nosso campo de presença (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2007).

No processo do contato, a solução é encontrada e uma novidade é assimilada, e, com isso, há o crescimento do organismo. Porém, é fundamental pensar que o campo organismo/ambiente tal como é pensado por Goodman precisa se compreendido em suas dimensões sociais, biológicas, espirituais, culturais, etc., tal como se discutirá mais à frente. E, por isso, encontramos no livro Gestalt Therapy um novo conceito para pensar esse processo de crescimento do organismo a partir dos atos de contato: a noção de ajustamento criativo. Assim, “todo contato é ajustamento criativo do organismo e ambiente” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997 p. 45) e, com base nessa ideia, podemos apreender outra definição mais apurada do objeto da psicologia:

“[...] a psicologia é o estudo dos ajustamentos criativos. Seu tema é a transição sempre renovada entre a novidade e a rotina que resulta em assimilação e crescimento. Correspondentemente, a psicologia anormal é o estudo da interrupção, inibição ou outros acidentes no decorrer do ajustamento criativo” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 45).

Com essa definição, podemos agora pensar a Gestalt-terapia como uma verdadeira psicologia social, dado que ela não se resume a uma investigação puramente psicológica, já que o foco é sempre o organismo como um todo; também não é um materialismo reducionista, já que reconhece a complexidade dos fenômenos organísmicos em interface com a cultura e a sociedade sem reduzir essa dinâmica a processos de mesma ordem; também não é um sociologismo, justamente por reconhecer a emergência da criatividade como fenômenos que não podem ser compreendidos por uma analítica puramente social, ou seja, reconhece “a natureza antissociológica de qualquer forma de conduta original e criadora” (GOODMAN, 1973, p. 138 tradução nossa). Como forma de desenvolver e ampliar sua nova psicologia, Goodman se debruça a tentar pensar uma nova teoria do self que possa englobar essa forma de se pensar a psicologia e superar as dificuldades produzidas pelas teorias psicanalíticas.

2.2. A releitura gestáltica da noção de self

Para Goodman, o principal problema encontrado nas teorias psicanalíticas e neopsicanalíticas está no modo como elas interpretam o self e o ego. Isso porque, em sua grande maioria, o self dentro das concepções psicanalíticas ou é “a pessoa enquanto lugar da atividade psíquica na sua totalidade” (DORON; PAROT, 2006, p. 692) – como é o caso da escola anglo-saxônica –, ou uma construção egoica da “representação de si” (Ibidem, p. 693) – como é o caso da escola americana. Além disso, essas teorias sempre recaem numa compreensão do self e do ego a partir de teses substancialistas, entendendo o self e o ego como coisas que podem ser compreendidas e estudadas. Sendo assim, Goodman propõe uma nova leitura do self que o entenda não a partir de uma noção substancialista, mas como um sistema de contatos que possa ser analisado em um dado campo experiencial. Para isso, o self está diretamente ligado ao contato e, portanto, os autores propõem uma releitura da noção psicanalítica de id, ego e superego. Porém, essas estruturas não dizem respeito a categorias mentais ou substâncias, mas, sim, ao próprio processo do contato, ou seja, estruturas parciais de uma experiência e não de uma mente ou de uma subjetividade. Dessa forma, é possível romper completamente com as propostas desenvolvidas por Freud, mas também por seus sucessores e dissidentes.

Por isso, o self a ser concebidoa partir de uma leitura fenomenológicae pragmática pode ser compreendido como as etapas do processo de ajustamento criativo. Assim, a Gestalt-terapia passa a se diferenciar radicalmente das psicologias do ego (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997), sendo o capítulo XI do livro Gestalt Therapy dedicado a discutir as principais teorias do ego e do self desenvolvidas pelas correntes neopsicanalíticas e mostrar suas principais deficiências. Apontando as críticas às teorias do ego, Goodman afirma que “a função-self é tratada mais adequadamente pelo próprio Freud, só que, devido a uma teoria falha da repressão, ele atribuiu o trabalho criativo dessa função, na maior parte, ao inconsciente” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 190). Ou seja, Goodman apresenta um elogio ao pensamento freudiano porque este, mesmo com ferramentas extremamente precárias, conseguiu apresentar uma teoria do self menos reducionista, dado que “com todos os seus defeitos, nenhuma outra disciplina nos tempos modernos transmitiu tanto a unidade do campo organismo/ambiente como a psicanálise” (Ibidem, p. 204).

Em trabalhos anteriores, tanto Perls quanto Goodman já haviam mostrado (PERLS, 2002; GOODMAN, 1991) que a teoria psicanalítica de Freud precisava ser reconhecida como uma proposta à frente de seu tempo, pois Freud, utilizando-se de ferramentas extremamente precárias, como as as teses naturalistas e as perspectivas associacionistas (PERLS, 2002) e construções políticas vinculadas ao capitalismo e suas bases judaico-cristãs (GOODMAN, 1991), ainda conseguiu criar uma teoria nova e capaz de apontar para novos caminhos até então não percorridos. Porém, o elogio que Perls e Goodman apresentam a Freud é muito mais no sentido de descortinar a deturpação teórica, metodológica e política produzida pela psicanálise do ego, e, por isso, não significa que o livro Gestalt Therapy seja uma continuidade do pensamento freudiano. Ao operar com uma linguagem fenomenológica buscando uma visão não dicotômica e, principalmente, reconhecendo a dinâmica do ajustamento criativo como fundo ontológico para se pensar a experiência humana, Paul Goodman traz uma superação da leitura metapsicológica apresentada por Freud e a que foi dada continuidade por seus seguidores.

“Neste livro, ao procedermos não pela anulação, mas pela afirmação da operação poderosa do ajustamento criativo, ensaiamos uma nova teoria do self e do ego, que o leitor encontrará oportunamente. Continuemos aqui a indicar que há diferença para a prática terapêutica se o self é uma consciência ociosa, mais um ego inconsciente, ou se é um contatar criativo” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 61).

Nesse sentido, o self é o processo de ajustamento criativo e, por isso, é uma função do campo. Assim, com base nas críticas apresentadas anteriormente, e pautado em um fundamento fenomenológico, é possível repensar a função-self a partir de dois pontos de vista: em seu aspecto funcional e em seu aspecto dinâmico. Do ponto de vista dinâmico, podemos compreender o contato como a partir de uma leitura temporal (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2007), e do ponto de vista das funções (id, ego e personalidade) é possível compreendê-lo como diferentes pontos de vista que podemos analisar um campo experiencial.

A partir dessa nova leitura do self como uma função do processo de contatar (ajustamento criativo), criou-se uma releitura das noções de id, ego e superego tão caras ao pensamento psicanalítico. Goodman passa a chamar de id, ego e personalidade (e não mais superego) as estruturas parciais da experiência quando percebidas do ponto de vista funcional.

O id, diferente da noção freudiana de inconsciente, passa a ser entendido como o fundo em que emergem as experiências. E, a partir das leituras que Goodman tinha de Reich e Alexander Lowen (Goodman fora analisando de Lowen), ele compreende esse fundo experiencial como o próprio corpo. Porém, o corpo entendido por Goodman não diz respeito exclusivamente à fisiologia ou ao corpo anatômico. É importante entender corporeidade a partir da superação da dicotomia mente/corpo e da dicotomia interno/externo. Assim, o corpo é também aquilo que no livro Gestalt Therapy está descrito como fisiologia secundária, ou seja, os hábitos aprendidos que estão inscritos na experiência corpórea. Esses hábitos são constituídos a partir de outra ordem, que não a fisiológica, que, na verdade, diz respeito ao modo como a natureza e a cultura se atravessam no campo experiencial. O id aparece a partir do relaxamento corporal, e por isso sempre se manifesta como “disperso e irracional” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 186).

Também dentro dessa leitura, não podemos compreender o ego a partir de uma leitura substancialista. O ego diz respeito ao processo de identificação e alienação que emerge no campo experiencial, ou seja, o ego é entendido como o próprio ato do organismo em sua relação de campo. O ego é o próprio ato de deliberação (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 185) e o órgão fundamental responsável pelo processo de assimilação do organismo. Essa nova concepção de ego proposta por Paul Goodman é, sem dúvidas, baseadas nos trabalhos desenvolvidos por Fritz Perls. A gênese da construção desse modo de entender o self e o ego pode ser lida já no primeiro livro de Fritz Perls, Ego Fome e Agressão (PERLS, 2002), em que buscava reler o pensamento psicanalítico freudiano e pensar uma psicanálise constituída de novas bases. Influenciado pelas ideias de Kurt Goldstein (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2007), Perls busca repensar a noção de ego a partir da noção de ego insubstancial, ou seja, um ego que possa ser compreendido não como uma instância psíquica ou metapsicológica, mas que possamos pensar o ego como uma função do organismo. O ego é uma função abstrata, e, por isso, não é uma parte do organismo, “mas uma função que cessa, por exemplo, durante o sono e o coma, e para o qual nenhum equivalente físico pode ser encontrado, tanto no cérebro como em qualquer parte do organismo” (PERLS, 2002, p. 205). Assim, baseado na ideia insubstancial do ego proposta por Fritz Perls, Goodman vai inserir essa noção para pensar o self e entender o ego como o ato integrador e criativo que se constitui na fronteira entre o organismo e o ambiente (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997).

Porém, para além da noção de id e ego, Goodman aponta uma nova interpretação da noção psicanalítica de superego. Goodman procura, a partir da noção de função personalidade, integrar na dinâmica do contato o modo como a experiência se manifesta nas relações sociais. A discussão acerca do problema indivíduo/sociedade sempre foi relevante para Goodman e, desde seus primeiros trabalhos sobre política, ele procura analisar o modo como a Psicanálise se posiciona frente a essa problemática (GOODMAN, 1991). Sendo assim, a função personalidade passa a ser um terceiro modo de olhar para o campo experiencial, ou seja, a terceira estrutura parcial do sistema self. Sendo “o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p.187), Goodman entende a função personalidade como os processos intersubjetivos, as produções culturais e sociais.

Dessa forma, a teoria do self proposta não divide essas funções como partes separadas do self, mas, sim, como abstrações de modos distintos de olhar para o processo de contato. Esse processo de contato tanto pode ser visto em sua dimensão funcional como também pode ser descrito como o processo dinâmico em que uma figura emerge e se torna fundo. Nesse sentido, há as etapas do contato que Goodman (PERLS; HEFFERLINE GOODMAN, 1997) intitulara de pré-contato, contato, contato final e pós-contato. Não correspondendo a momentos cronológicos, essas etapas constituem uma descrição de como uma experiência ocorre em um dado campo.

2.3. Gestalt-terapia: uma terapia social? Em busca de uma ética gestáltica

2.3.1. A formação da neurose e a proposta de uma análise gestáltica

Baseado nos princípios utilizados pela teoria do self, a Gestalt-terapia tem como objetivo

“[...] treinar o ego, as diferentes identificações e alienações, por meio de experimentos com uma awareness deliberada das nossas variadas funções, até que se reviva espontaneamente a sensação de que ‘sou eu que estou pensando, percebendo, sentindo e fazendo isto’” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 49).

Assim, a proposta terapêutica levantada por Goodman é a de que o ego, como capacidade do organismo de identificar e alienar o que emerge no sistema self,possa ser restabelecido, ou, em outras palavras, que o indivíduo consiga uma fluidez maior na dinâmica espontânea entre figura e fundo. Desse modo, a neurose, para esse autor, tem a ver com uma “perda das funções de ego” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 235) e, nesse sentido, diz respeito às formas de repressão que se tornam habituais.

Mas como acontece a formação dessa repressão? Como se formam esses hábitos neuróticos? Para Goodman uma questão fundamental é se

“O comportamento neurótico também é um hábito aprendido, o resultado de um ajustamento criativo [...] O que diferencia esse hábito de outros e qual é a natureza da inconsciência neurótica (repressão) como algo distinto do mero esquecer e da memória disponível?” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 234).

Sendo assim, para compreender a formação do hábito neurótico, vamos nos ater à descrição de uma experiência qualquer: em um determinado momento, vamos imaginar que uma situação vivenciada não consegue uma solução para uma determinada ação (ou seja, não consegue assimilar o processo vivido e encerrar o contato), porém, logo em seguida, o self precisa ocupar-se de um novo problema, dado que o campo experiencial é formado por um constante processo de abertura de novas gestalten. Para que ocorra o processo de emergência de uma nova situação são necessários meios musculares para que a excitação emergida na experiência anterior seja suprimida, e na medida em que o corpo vai buscando suprimir os excitamentos, com o tempo essa forma de supressão se torna um padrão motor e, como tal, “depois de algum tempo, a situação é aprendida” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 234). Por isso, “as faculdade motoras e perceptivas comprometidas na inibição deixam de ser funções de ego e passam a ser estados corporais tensos” (Ibidem, p. 237). Então, essas ações deliberadas produzidas pelo corpo (ou seja, funções de ego) vão se tornando hábitos aprendidos (padrões motores), isto é, vão se tornando partes da função id. Em outras palavras, esses hábitos aprendidos vão, com o tempo, se tornando estados corporais tensos.

“Nessa primeira fase, portanto, não há nada de extraordinário a respeito da transição de supressão consciente para repressão; é o processo costumeiro de aprender e esquecer como aprendemos; não há necessidade de postular-se ‘um processo de esquecimento desagradável’” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 234).

Assim, se queremos compreender a neurose na Gestalt-terapia, precisamos passar para um segundo passo da descrição de Goodman sobre a formação do hábito neurótico. Até agora, o corpo aprendeu uma forma de suprimir o excitamento e, como um hábito aprendido, essa forma de supressão se torna parte do corpo. O hábito aprendido torna-se parte de uma segunda natureza, ou uma fisiologia secundária. Portanto, sendo o hábito parte do corpo, ele vai encontrar-se disponível para o self, podendo fazer parte do campo experiencial.

Por isso, “nossa postura, quer seja correta, quer incorreta, parece ‘natural’, e a tentativa de mudá-la causa mal-estar; é um ataque contra o corpo” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 234). Ou seja, a partir do momento em que existe uma tentativa de relaxar ou mudar esse hábito aprendido, o corpo precisa defender-se da demanda que busca a mudança e restituir seu processo conservativo. Isso porque a modificação de um padrão aprendido é compreendida pelo corpo como um ataque contra ele, e, por isso, como parte do processo de autorregulação organísmica, o corpo busca defender-se dessa mudança: “o self imagina que está em perigo, e responde com terror, sufocando, e com uma deliberação secundária consciente para proteger o corpo. Evita a tentação, resiste à terapia” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 234). Dessa forma, para Goodman, “A repressão é o processo de esquecimento da inibição deliberada que se tornou habitual. O hábito esquecido deixa de ser acessível devido a formações reativas adicionais voltadas contra o self.” (Ibidem, p. 235).

Por isso é que, com base na teoria da formação do hábito neurótico produzida por Goodman, podemos entender que o que é reprimido não é uma experiência específica (por exemplo, um determinado trauma vivenciado na infância), mas, sim, o que é reprimido são os próprios atos inibitórios. Em resumo, podemos dizer que uma forma deliberada de repressão é assimilada como uma forma corporal tensa (a formação de um caráter), ou seja, o que acontece na verdade é o processo de esquecimento da forma de como há o impedimento dos próprios excitamentos, e não a repressão do excitamento. Sendo assim, o esforço do self é de buscar soluções criativas para as problemáticas que emergem em um campo, porém o esforço do corpo é conservativo, que é manter a forma aprendida. É o conflito entre a tentativa de mudança produzida pelo self e a manutenção de uma forma tensa aprendida produzida pelo corpo que gera a ansiedade e a resposta neurótica.

Se o problema da neurose tem a ver com uma forma de inibir que é esquecida (ou seja, reprimida), Goodman entende que o propósito clínico da Gestalt-terapia é a busca do deslocamento do “foco da psiquiatria do fetiche do desconhecido, da adoração do ‘inconsciente’, para os problemas e a fenomenologia da awareness” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 33). O foco da psicoterapia passa então a ser uma nova forma de análise da experiência, que fora chamada de “análise gestáltica” (Ibidem, p. 46). A análise gestáltica consiste em

“Analisar a estrutura interna da experiência concreta, qualquer que seja o grau de contato desta; não tanto o que está sendo experienciado, relembrado, feito, dito etc., mas a maneira como o que está sendo relembrado é relembrado, ou como o que é dito é dito, com que expressão facial, tom de voz, sintaxe, postura, afeto, omissão, consideração ou falta de consideração para com a outra pessoa etc. Trabalhando a unidade e a desunidade dessa estrutura da experiência aqui e agora, é possível refazer as relações dinâmicas da figura e fundo até que o contato se intensifique, a awareness se ilumine e o comportamento se energize” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 46).

Sendo assim, não cabe ao Gestalt-terapeuta “descobrir o que está por trás do comportamento costumeiro nem pôr esse comportamento de lado para descobrir o mecanismo” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 248); o psicoterapeuta se torna um facilitador do processo de compreensão do paciente (apesar de no Brasil, a comunidade gestáltica se utilizar mais do termo “cliente”, adota-se a terminologia utilizada no livro Gestalt Therapy) nas suas formas de lidar com suas situações, o seu modo de se interromper e impedir seus contatos e sua capacidade de criação. Desse modo, o objetivo da psicoterapia gestáltica é “treinar o ego” (Ibidem, p. 49), ou seja, possibilitar que a função ego volte a agir, como agente da criação. Sendo assim, focar o processo terapêutico no treinamento da função-ego em nada tem a ver com uma hermenêutica dos conteúdos, ou seja, com a busca de desvendar a biografia do paciente ou encontrar um sentido para seus atos. O propósito fundamental da clínica gestáltica tal como é cunhada no livro Gestalt Therapy é o de reestabelecer a fluidez da função-ego, e, com isso, ser capaz de possibilitar o paciente a desenvolver sua autonomia, sua capacidade de deliberação consciente, mas, também, de conseguir se entregar à experiência.

Por isso, é fundamental compreender que reestabelecer a capacidade de autonomia e fluidez do self em nada tem a ver com um processo de reconhecimento de si ou de formação de um autoconceito (como, por exemplo, a ideia de autoconhecimento no sentido de uma dominação dos próprios afetos, ou como a capacidade de aprender a conhecer quem se é de verdade). Como dito anteriormente, o self, sendo o processo de ajustamento criativo, é constituído na própria vivência do contato. Nesse contexto, Goodman vai dizer que

“O conselho habitual ‘seja você mesmo’ é desorientador, [...] a ansiedade sentida nesse conselho é o medo do vazio e da confusão de um papel tão indefinido; o neurótico sente que ele não tem valor algum em comparação a algum conceito presunçoso de seu ego; e subjacente está o pavor do comportamento reprimido que poderia emergir do vazio” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997 p. 181).

Para Goodman a idealização de que podemos ser nós mesmos, apresentada por vários psicólogos e psicoterapeutas, não é algo além de uma forma neurótica de não conseguir deparar-se com a novidade e o desconhecido que se apresentam na vivência aqui-e-agora da fronteira organismo/ambiente. É interessante frisar que, segundo Spagnuolo Lobb (2002), uma das maiores contribuições do livro Gestalt Therapy ao campo da psicoterapia é a compreensão do que Goodman chamou de egotismo como uma experiência de perda da função de ego. O egotismo pode ser entendido como o refreamento da experiência em seu momento final, ou seja, a partir da excitação e da ação, o self não consegue concluir sua satisfação e fixa sua energia no momento final do processo. Assim, ao invés de o self possibilitar a emergência de um novo contato e possibilitar a fluidez da experiência, acontece o que Goodman chama de Pathos Faustiano: “Fica! Eras tão belo(a)” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 226). E não há, portanto, a destruição da Gestalt anterior e consequentemente não há abertura para uma nova criação na fronteira de contato. Segundo Spagnuolo Lobb (2002),

“O conceito de egotismo, descrito como a perda de uma função de ego, representa uma novidade e um importante aspecto cultural e político da psicoterapia, porque nos recorda que um paciente não deveria terminar seu processo de cura sabendo tudo sobre si mesmo e sobre o mundo, mas sim com a capacidade de ser espontâneo e estar plenamente presente na fronteira de contato, superando as resistências que, de todos os modos, representam um ajustamento criativo em situações difíceis” (p.127, tradução nossa).

Goodman pensa uma psicoterapia que elimina de suas propostas a ideia de autoconhecimento ou a possibilidade de que o homem possa ser transparente para si mesmo. Para além disso, Goodman pensa que o campo da liberdade na Gestalt-terapia não está vinculado à ideia de uma autoconsciência ou de um saber sobre si. Ser livre é possibilitar a vivência da espontaneidade e da criatividade a partir de um modo intermediário, em que nem se constitui como uma forma de inconsciência muito menos como total deliberação. Ser espontâneo e criativo é viver uma tensão dialética em que coexistem a capacidade de deliberar e entregar-se ao novo e ao imprevisível. Por isso que a função de ego é sempre uma partícula de passagem, e assim o self deve ser entendido, tal como proposto por Muller-Granzotto e Muller-Granzotto (2007), em sua forma temporal. Goodman entende que “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 180). O self é uma partícula temporal em que coabitam dimensões passadas, presentes e futuras na dinâmica de uma experiência. Dessa forma, não podemos acionar o entendimento da causalidade linear para conhecer totalmente o passado ou como forma de prever o futuro, tal como se o self fosse algo previsível e dividido em momentos claros. O self é uma experiência, e, como tal, precisa ser visto em sua dinâmica virtual: o passado sempre é fundo para que no agora possibilite um futuro como criação. Sendo assim, se a função ego é a unidade integrativa desta experiência de passagem temporal, a análise gestáltica se constitui como um fortalecimento desta função e desta capacidade de criação em prol do imprevisível.

2.3.2. A Gestalt-terapia como uma crítica social e a ética do ajustamento criativo

Goodman, ao escrever o livro Gestalt Therapy, praticamente não tinha nenhuma experiência clínica. Por isso, o livro Gestalt Therapy não é somente um livro que tenha como propósito criar uma nova abordagem psicoterapêutica, mas na verdade pensar novas bases para se pensar o problema da natureza humana. Quando se pensa em uma proposta terapêutica que tem como objetivo restabelecer a capacidade do ego de funcionar, e, por conseguinte, reestabelecer o fluxo do ajustamento criativo, essa ideia está calcada em uma proposta que está fundada em uma nova leitura política e ética, ou seja, há aí uma ética gestáltica oriunda dessa nova concepção de self, mas também de toda a incursão que Paul Goodman já tinha no anarquismo (STOEHR, 1994). Podemos encontrar, embutido nessas teses, o modelo de como Paul Goodman pensa os campos da educação, da política e psicoterapia: a crença na autonomia e na capacidade dos indivíduos de se desenvolverem ao construir um crescimento sem as barreiras das resistências habituais. Porém, essa perspectiva em nada tem a ver com uma ideia otimista da natureza humana, já que a tese anárquica de desenvolvimento de autonomia não pressupunha que as pessoas são naturalmente boas, na verdade, para Goodman, precisamos pensar um modelo político que se constitua a partir do contrário. É porque as pessoas não são naturalmente boas e confiáveis que o poder não pode ser centralizado na mão de uma pessoa ou grupo social específico (GOODMAN, 2010). Porém, além disso, Goodman entende que muito da destrutividade que emerge das relações sociais vem de uma resposta do organismo ao excesso de inibição produzido por uma sociedade autoritária. Para ele, não é que a eliminação da coerção acabe com o conflito, na verdade, ao reduzir as práticas coercitivas, os conflitos genuínos são capazes de emergir, e, com isso, soluções criativas podem aparecer. Na verdade, a sociedade centralista pouco tem conflitos genuínos, já que em grande parte os conflitos são substituídos por exercícios de poder unilaterais e isso impede a emergência da novidade em um campo relacional.

Assim, Goodman acredita que é na emergência de uma figura vigorosa que sempre se apresenta de forma conflitiva (o conflito genuíno é a base para a resolução de problemas de forma criativa) que há a saída para os conflitos, sejam biológicos ou culturais. Essa forma de emergência livre de uma figura Goodman chamou de Eros: “Para Goodman, Eros era o símbolo do poder da natureza viva em nós. Natura sanat” (STOEHR, 1991, p. 4, tradução nossa). Este é o ponto de partidapara que possamos pensar uma ética gestáltica. Essa ética é comum ao seu modelo psicoterápico, político ou educacional. Assim, a ideia fundamental dessa leitura ética é reconhecer a capacidade de cura do organismo e da sociedade a partir da confiança no processo de autorregulação organísmica. Goodman identifica a integração criativa do processo figura/fundo como a saída para a crise entre os campos social e biológico.

Dessa forma, acreditar na capacidade autorregulatória do organismo é o critério mais imediato para que possamos ter uma ética que não esteja submetida aos modos moralistas ou higienistas a que as práticas psicoterápicas e psiquiátricas se submeteram no século XIX (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). Porém, é fundamental reconhecer que o processo de autorregulação não é infalível, porém, ainda assim as experiências constituídas a partir do ajustamento criativo, ou seja, do contato que busca a emergência de uma novidade, ainda são os critérios mais confiáveis de desenvolvimento. Podemos então entender que a ética da Gestalt-terapia é, sem dúvidas, a confiança na autorregulação organísmica.

Goodman sustenta essa tese também em outros campos como a política e a educação. Na verdade, Goodman, com o tempo, começa achar mais importante retomar suas discussões políticas, e, aliadas às suas novas experiências como psicoterapeuta, produzir um olhar crítico para a educação das crianças e jovens nos Estados Unidos. Suas propostas sobre a natureza humana, tanto em seus ensaios psicológicos organizados no livro Nature Heals: The Psychological Essays of Paul Goodman (STOEHR, 1991), como no livro Gestalt Therapy (1997), foram mais bem desenvolvidas nas perspectivas das discussões acerca da política anarquista e da educação libertária (principalmente as ideias vinculadas à desescolarização). Para Goodman, somente se fôssemos capazes de abandonar “o medo social da criatividade” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p.199) é que poderíamos criar novos modos de superar os modelos políticos e educacionais vigentes. Sendo eles constituídos através da opressão e da centralização do poder, eles nos afastam cada vez mais de nossas reais necessidades organísmicas. Isso inibe as formas de criatividade e de espontaneidade, em troca de uma estrutura social aparentemente segura e previsível. Porém, os modos de criação são implacáveis, e, enquanto não constituirmos espaços genuínos de produções criativas, o organismo sempre vai buscar estratégias de sabotar o modelo vigente, seja através das patologias, da rebeldia ou da apatia. Talvez seja este o grande aprendizado de uma ética gestáltica tal como pensada por Paul Goodman: as funções organísmicas, mesmo em suas produções adoecidas, sempre estão buscando encontrar novos caminhos de sobreviver e criar.

 

Considerações Finais

Goodman ainda é, sem dúvidas, um autor pouco estudado pela comunidade gestáltica brasileira. Karwowski (2005), em uma pesquisa desenvolvida em seu mestrado, levantou os principais autores estudados nas instituições formadoras de gestalt-terapeutas no país, e Paul Goodman praticamente não aparece como um autor importante para nenhuma dessas instituições. Além de Goodman não ser estudado, o livro Gestalt Therapy também é muito pouco utilizado como fonte primária para se pensar a abordagem gestáltica, ou, quando é utilizado, a teoria dos self proposta no livro é pouco discutida ou até ignorada.

Isso só reforça que o livro ainda precisa ser mais discutido, estudado e esmiuçado para que possamos compreender cada vez mais as contribuições produzidas por essa obra de difícil leitura, já que ela possibilita uma leitura cheia de aberturas para novas interpretações e compreensões das mais diversas sobre o tema da psicoterapia, mas, principalmente, da natureza humana e suas implicações sociais. Mais do que uma leitura incompreensível, acreditamos que Goodman procurou escrever de maneira hermética para que o leitor não caísse em tentação com as introjeções. O livro não permite que entendamos de princípio tudo o que ele quer dizer, ele sempre possibilita um lugar para o estranhamento, o não dito, ou seja, um lugar para a criação. Além disso, este artigo busca ser um chamado para que a comunidade brasileira dê mais atenção ao trabalho de Paul Goodman. De forma nenhuma se está desconsiderando as brilhantes contribuições de Fritz Perls e Laura Perls (outra autora fundamental da Gestalt-terapia cujo acesso a seus trabalhos é mínimo), mas se está na verdade ressaltando a importância de ler Goodman em solos brasileiros.

As discussões políticas de Goodman podem servir diretamente para se pensar uma leitura gestáltica das organizações, dos modelos políticos e da própria constituição das políticas públicas brasileiras. Suas teses educacionais podem nos ajudar a pensar críticas aos modelos pedagógicos usados em nossas escolas e também enriquecer as discussões produzidas pelo campo da Gestalt-pedagogia. Seus escritos sobre as artes e sobre a literatura podem ampliar nossa visão sobre a expressividade na clínica e em outros espaços. Na verdade, todos os atravessamentos da obra de Goodman são cruciais para pensarmos o que era seu principal foco de investigação: a natureza humana em todas as suas formas de manifestação.

Por fim, espera-se que este artigo contribua para o desenvolvimento dos estudos sobre a obra Gestalt Therapy e também para os estudos sobre Paul Goodman como um autor fundamental da abordagem gestáltica, e que com isso novas pesquisas e escritos possam surgir sobre essas questões.  

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Endereço para correspondência:
Marcus Cézar de Borba Belmino
Endereço eletrônico:marcuscezar@gmail.com

Recebido em: 28/12/2013
Aprovado em: 29/08/2014

 

 

NOTAS

*Psicólogo CRP 11/05136, Gestalt-terapeuta, Mestre em Psicologia (UNIFOR), Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor licenciado da Faculdade Leão Sampaio - Juazeiro do Norte-CE. Autor do livro "Fritz Perls e Paul Goodman: Duas Faces da Gestalt-Terapia", publicado pela Editora Premius. Bolsista CAPES/DS

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