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IGT na Rede

On-line version ISSN 1807-2526

IGT rede vol.11 no.20 Rio de Janeiro Jan./June 2014

 

ARTIGO

Sobre os escritos do terapeuta na clínica da Gestalt-terapia

On the  writtings of the therapist in gestalt clinical context

Kelly Gonçalves da Silva*; Clara Castilhos Barcelos Dias**; Mônica Botelho Alvim***

UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho foi motivado por situações vivenciadas por estagiárias de Gestalt Terapia em um contexto clínico. Nossas reflexões teóricas partiram de um problema que envolvia uma grande dificuldade para descrever as sessões de forma escrita, ainda que as mesmas estivessem cientes de tudo o que havia ocorrido. O trabalho aborda discussões fenomenológicas sobre a temporalidade e a corporeidade para discutir a temática, tendo como objetivo caracterizar e discutir os diferentes registros do terapeuta na psicoterapia, suas peculiaridades e dificuldades, ressaltada aquela do registro escrito que solicitava do terapeuta organizar relatórios com um tipo de escrita formal e técnica que nos trazia uma sensação de desencontro com o vivido. Concluímos que é necessário estar atento à experiência do terapeuta, e esta precisa ser registrada, pois é a conexão feita entre ele e o cliente que proporciona qualidade à compreensão do processo de terapia e possibilita a elaboração dos documentos, não cabendo uma simples transcrição que parta do relato de dados e de uma cronologia de fatos. A experiência de atendimento em Gestalt Terapia possui como aspecto marcante o seu caráter tácito, temporal e fenomenal.

Palavra-chave: Gestalt Terapia; temporalidade; awareness; documentos psicológicos.

 


ABSTRACT

The present work was elaborated based on the experience as trainees on Gestalt Therapy, in a clinic school. Our theoretical reflections came from a great difficulty involving describing the sessions in writing, even though we had in mind all that had taken place. The objective of this work is to discuss a kind of tacit knowledge in psychotherapy and the difficulty in making it a formal written record. The work focusses on phenomenic discussions on temporality and the corporeality to discuss the thematic. To organize a formal and technical writing brought us a feeling of mismatch of what was experienced, since it is an implicit knowing, that comes from an engagement, a body as a whole, imbricated in the field, in the therapeutic setting, which connects itself directly with the situation and that knows, feels and expresses an understanding that does not need to be put into words. We conclude that it is necessary to be aware of the experience of the therapist, since it is the connection made between him and the client that delivers quality on understanding and enables the elaboration of the case studies, not fitting a simple transcription on account of data report and the chronology of facts. The treatment experience on Gestalt therapy possesses as an outstanding aspect, its tacit, temporal and phenomenal character.

Keywords: Gestalt-Therapy; temporality; awareness; psychological documents.

 


A atividade clínica em psicologia requer do psicólogo, além do trabalho de atendimento, o registro escrito e a manutenção de prontuários, havendo, inclusive uma resolução do Conselho Federal de Psicologia que norteia a redação e o encaminhamento do material escrito que é produzido pelo psicólogo. Este material torna possível manter um registro do acompanhamento de cada cliente, auxiliando na compreensão do caso. Em uma equipe multidisciplinar, este material pode auxiliar na integração da equipe perante o caso tratado, bem como na continuidade do cuidado e atenção. No estágio em Gestalt Terapia que suscitou a presente discussão, é solicitada dos estagiários a elaboração de documentos psicológicos. Após os atendimentos, é necessário redigir uma descrição da sessão, informando o conteúdo abordado e a forma como foi abordado, a experiência do terapeuta, a constituição do campo psicoterápico e os aspectos do mundo contemporâneo que estiveram envolvidos naquela sessão. Tal atividade tem uma finalidade didática, pois propicia aos alunos estagiários a experiência e o aprendizado com a redação dos atendimentos e com sua utilização como instrumento institucional e clínico; os registros escritos de atendimentos psicológicos podem ser instrumentos de defesa legal, bem como auxiliam na compreensão e acompanhamento dos atendimentos.

A discussão envolvida neste trabalho foi suscitada a partir de situações vivenciadas nesse contexto. Percebeu-se nos estagiários grande dificuldade para descrever as sessões de forma escrita, ainda que tivessem ciência de tudo o que havia ocorrido. Havia uma “lembrança sensível”, o que os impressionava, surpreendia e intrigava, problemática que buscamos, então, investigar e explorar. Refletindo acerca da postura fenomenológica na relação terapêutica em Gestalt-terapia, este texto busca tratar dos registros do terapeuta na experiência do campo psicoterápico. Partindo da dificuldade assinalada, buscamos refletir acerca dos tipos de registro do terapeuta e discutimos, a partir da temática fenomenológica da temporalidade, uma capacidade de reter dados presente na experiência do terapeuta que se assemelha a uma memória corporal, presente de forma pré-reflexiva na psicoterapia, que caracteriza um tipo de registro da experiência. A partir daí passamos a problematizar as relações entre esse registro e os registros escritos. Antes, porém, faz-se necessário apresentar de modo amplo a proposta psicoterápica da Gestalt-Terapia e alguns de seus fundamentos.

1. A GESTALT-TERAPIA E O TRABALHO PSICOTERÁPICO

A Gestalt-Terapia é uma abordagem de tradição fenomenológica, que faz uma aposta no retorno ao mundo da experiência sensível. Segundo Alvim (2009), o ato psicoterápico inaugurado pela Gestalt Terapia é centrado na experiência e possui caráter fenomenológico. A fenomenologia é uma filosofia que estuda os fenômenos, sendo estes, aquilo que se produz no encontro da consciência com o mundo, o que está intencionalmente presente na consciência, nem nela nem no mundo, mas que se dá exatamente neste encontro. Esta abordagem foi a primeira a trazer a ideia de que consciência e mundo não podem existir separadamente, propondo atentar-se para o sentido dos fatos que emerge no encontro da consciência com o mundo. A consciência é sempre uma atividade correlacionada com o mundo, atitude de dirigir-se a ele para assim significar as coisas, conceito denominado intencionalidade.

Para a Gestalt-terapia, o organismo é um todo corpo e mente e uma totalidade mente-corpo-mundo, concepção esta que está implicada com sua proposta de método psicoterápico focada no trabalho com a experiência imediata. Etimologicamente, entende-se que experiência remete sempre a travessia, a raiz de sua palavra vem de perigo e atravessar, logo podemos dizer que viver a experiência significa viver diante de certo risco, do não-ser, do futuro, da insegurança das possibilidades (Alvim, 2009). Bondía (2002) afirma que a experiência é aquilo que nos passa, toca ou afeta e que o sujeito da experiência é aquele que se abre e permite ser afetado. É aquele afetado pelo mundo, podemos dizer, de forma passiva, não deliberada. Ainda no que tange ao significado da experiência, encontramos semelhante ideia em Merleau-Ponty (1994, apud ALVIM, 2009), que, assim como a Gestalt Terapia propõe um retorno ao mundo da experiência, acentuando a necessidade de buscar a origem, o a priori da correlação entre sujeito e objeto, em contraposição ao pensamento baseado no racionalismo, mecanicismo e dualismo. Esse a priori estaria na experiência em estado bruto. É muito comum encontrarmos hoje em dia uma primazia da dimensão reflexiva da consciência em detrimento de uma experiência pré-reflexiva, em diferentes esferas de nossa vida, de nosso cotidiano. A racionalização fica acima da nossa espontaneidade, modificando nossas experiências. É exatamente este tipo de sabedoria que a Gestalt-terapia visa no processo psicoterápico; um saber que se dá a partir de um engajamento, um corpo como totalidade, imbricado no campo, no setting terapêutico, que se conecta diretamente com a situação e simplesmente sabe, sente e significa, um entendimento que não é da ordem das palavras, das representações, mas da ordem da espontaneidade.

É importante colocar que esta espontaneidade não diz respeito a uma impulsividade, mas a algo que está sempre colocada a partir de um campo, como um fundo, que nasce da situação presente e é também mediada e alimentada pela cultura. De acordo com Alvim (2009), o Ser Bruto de Merleau-Ponty é o ponto originário de encontro entre sujeito e objeto, de onde parte tudo, onde tudo se passa. Consiste em um campo de presença, temporal, centralizado, aqui-agora, na experiência imediata. Esta experiência, por sua vez, é compreendida como uma síntese que engloba eu e mundo, eu e outro, passado, presente e futuro. Trata-se de significações vividas expressas na forma do gesto corporal.

2. AQUI-AGORA, TEMPORALIDADE E AWARENESS; DIÁLOGOS COM A FENOMENOLOGIA

O conceito de aqui-agora da Gestalt Terapia é fundamental para essa discussão, que visa dialogar com a fenomenologia. Entendemos o aqui-agora como um campo de presença temporal, no qual os dados que se apresentam aqui e agora (tempo presente) arrastam co-dados retidos em nossa experiência vivida (horizonte de passado) ou expectativas (horizonte de futuro). Esta noção baseia-se na concepção fenomenológica de temporalidade, em que este se dá como um fluxo de várias vivências e modificações destas. Aquilo que se apresenta no momento presente se conecta a um horizonte de passado e futuro. O tempo é uma rede que se arma de acordo com cada novo agora que surge, tal qual a noção de figura e fundo Gestáltica. Segundo Muller-Granzotto e Muller-Granzotto (2007), os “agora” não possuem ligação entre si (como numa relação cíclica ou causal), entretanto relacionam-se do ponto de vista de cada vivido, sendo sempre uma modificação desde a posição em que me encontro agora. Isso possibilita dizer que nossas vivências materiais não desaparecem completamente de nossa existência. A cada novo agora, nossas vivências se modificam, ou seja, a experiência é sempre atualizada por um dado do presente. O agora não está separado nem do presente nem do futuro, é a síntese de experiências do passado com expectativas do futuro, síntese de sentido que dou para um dado aqui-agora. Compreendemos que o aqui-agora da Gestalt Terapia não é algo estanque, parado no agora, mas sim um fluxo, um campo que está sempre em relação com um horizonte de protensões e retenções, em que vivemos num presente vivo de aparecer e desaparecer (Sokolowski, 2010).

O conceito de awareness da Gestalt Terapia também apoia nossas reflexões. De acordo com Robine (2006), awareness é conhecimento imediato e implícito do campo. Entendemos que a awareness se constitui em um fluxo do aqui-agora a partir da totalidade organismo-ambiente. É pré-reflexiva, se considerarmos que o sentido é dado na e pela experiência. Há também uma dimensão de abertura, entrega e aceitação, possibilitada pelo sentir, que pode ser compreendida como uma “consciência corporal de totalidade” (RIBEIRO, 2006). Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997), a awareness se caracteriza pelo contato, pelo sentir, pelo excitamento e pela formação de gestalten. Ainda de acordo com os autores, o sentir determina a sua natureza. Podemos dizer que o processo de awareness implica estar aberto, disposto e disponível para uma determinada situação, conseguindo apreendê-la ou ser impressionado por ela.

3. OS REGISTROS DO TERAPEUTA

Na psicoterapia, percebemos que na relação entre terapeuta e cliente não encontramos dois corpos objetivados e mecânicos. É possível ver que há uma espécie de engajamento, uma confiança na situação, sentida com o outro e dotada de potencial criativo. A Gestalt Terapia visa a ampliação da awareness e para que o trabalho aconteça é fundamental que o terapeuta esteja também ele engajado na situação, buscando maior conectividade com o aqui-agora do ambiente terapêutico. Isso nos permite estar conectados com o presente vivo e manter uma escuta que seja corporal e implicada, de modo que nossa compreensão da história e daquela existência se torne um saber que provém da experiência. Esse é o principal registro do terapeuta, o registro que se dá corporalmente, a partir de sua experiência.

O registro escrito é o segundo tipo de registro. Aquele implicado tanto nas notas pessoais do terapeuta quanto na elaboração de documentos e na manutenção de prontuários.

Neste ponto resgatamos a principal questão colocada neste trabalho: há uma defasagem entre a experiência de escutar o cliente e de escrever os relatórios ou relatos de sessão.

Na experiência clínica dos estagiários, eles notaram que durante a sessão percebiam situações, gestos, expressões, intuições e nuances que não “cabiam no papel”. Ao relatar, experimentavam certa dificuldade em lembrar de alguns momentos da sessão, o que, entretanto, não se caracterizava como um esquecimento, já que estavam cientes de tudo o que havia ocorrido. Houve momentos, ainda, em que algo que lhes chamava atenção em determinada sessão os remetia a coisas já ditas e experienciadas anteriormente, mas que não haviam sido relatadas em seus registros formais escritos. Era como se de uma forma implícita, todo o conhecimento da sessão estivesse “neles”, e no momento da escrita ele não tomasse forma.

Mesmo com uma sabedoria implícita adquirida na experiência de atendimento, encontravam dificuldade em trazê-la para a reflexão e convertê-la em palavras. A tentativa de organizar a escrita trazia uma sensação de desencontro com o vivido, com a experiência. Seria pelo fato de requerer a transição de uma posição contemplativa e intuitiva para outra lógico-racional? Começou-se então a pensar no que consiste esta dificuldade em relatar e redigir, o que caracteriza cada um desses registros e em como a experiência é transformada no uso da palavra.

3.1-A escuta corporal e o saber da experiência: uma rede temporal

Ao refletir sobre a relação terapêutica, é fundamental lembrar da postura admirativa, preceito inspirado na fenomenologia que envolve uma postura de abertura e receptividade do outro em sua diferença. Tal como compreendemos, o olhar para o outro é dirigido por uma curiosidade e disponibilidade para ser afetado por sua diferença e não por representações e conceitos tomados como naturais. Ao discutir a admiração ingênua Bornheim (1998) afirma que neste estado percebemos “um sentir unido ao real, e esta disponibilidade apreende o real como uma presença insofismável, porque, longe de impor-lhe o que quer que seja, o deixa ser em toda a sua dimensão, como plenitude de presença” (p. 39). Há um encontro, uma sintonia entre o real e o sentido que se entrelaçam e permitem um fundo amoroso onde se processa a admiração ingênua, em que, para o autor, é o seu silêncio que deixa a realidade falar.

Ao discutir o assunto da produção de sentidos em terapia, Alvim (2011) afirma que o momento pré-reflexivo, anterior a uma análise lógica, guarda uma potência em que se desvela o sentido. Estando engajado na situação o terapeuta percebe a forma que se prefigura na situação de atendimento. Podemos dizer que a experiência psicoterápica é da ordem do tempo vivido, kairós, envolve afetos e sentimentos e se organiza espontaneamente a partir do campo e do modo como os dados que vão se apresentando se conectam com os horizontes de passado e futuro.

É possível dizer, assim, que algumas questões suscitadas em um atendimento clínico são simplesmente compreendidas de antemão, sem demandar reflexão. Forma-se uma rede de significações de um tempo que é presente-passado-futuro, não havendo uma relação causal entre os fatos. Os dados trazidos na sessão arrastam co-dados que estão retidos no fundo da experiência do terapeuta.

Tomando a noção de temporalidade tal como discutimos, podemos dizer que a partir de um dado x trazido por um cliente, se arma, para o terapeuta, uma rede temporal que conecta, a partir de sua vivência pré-reflexiva, aquele dado x com co-dados do passado e do futuro daquele processo psicoterápico tal como vivido pelo terapeuta. O cliente, por sua vez, ao falar daquela experiência para o terapeuta, durante a própria fala, abre seu horizonte de passado e futuro. Podemos pensar, assim, em um diálogo que entrelaça as redes de intencionalidades fazendo fluir dados e co-dados, movimentando os horizontes temporais. Podemos inclusive pensar em termos de entrelaçamento, de uma rede compartilhada por ambos, construída e ressignificada nos diálogos terapêuticos.

Ao pensar nesse saber que permanece pré-reflexivamente, podemos dizer que se trata de uma vivência impressa no corpo? Compreendemos que aquilo que foi vivido na sessão permanece na experiência-corpo do terapeuta, estando latente e vivo para ser sentido, re-experimentado e ressignificado quando arrastado por dados de outra situação vivida no contexto da terapia.

Merleau-Ponty (2004) traz a ideia de que o homem não é um espírito e um corpo, mas um espírito com um corpo, que só alcança a verdade das coisas porque seu corpo está como que cravado nelas. Com o corpo experienciamos o mundo; do ponto de vista fenomenológico, o corpo não habita o mundo como pura realidade objetiva. O corpo é no mundo, pois é através dele que habitamos, interagimos e existimos enquanto seres objetivos e sobretudo fenomenais. Enquanto tal, o corpo permite uma apreensão do mundo e das significações e sentidos que dele fazem parte. Há uma compreensão tácita, pois as significações não se dão por representações, mas sim por um conhecimento imediato e que emana do campo. No campo da experiência se constroem as impressões e expressões que irão compor a compreensão pré-reflexiva do terapeuta.

3.2 - O registro escrito

Como dissemos, os registros escritos podem envolver anotações pessoais, registros para manutenção de prontuários ou elaboração de documentos. Com exceção das anotações pessoais, que visam oferecer ao terapeuta um espaço mais livre de reflexão acerca do andamento dos casos, o registro escrito do qual falamos pode ser definido como uma narrativa que precisa ser plausível, obedecer a uma estrutura sintática que vise à transmissão de uma mensagem clara, objetiva, e compreensível, mantendo uma coesão. Inúmeras técnicas de redação versam sobre a necessidade de manter uma coesão no discurso escrito, visto que isso oferece um melhor entendimento das ideias colocadas.

Segundo a resolução nº 007/2003 do Conselho Federal de Psicologia (2003), que institui o Manual de Elaboração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação psicológica, o documento na linguagem escrita deve apresentar uma redação bem estruturada e definida, ter ordenação com a composição de parágrafos e frases, ter qualidades como clareza, concisão e harmonia, além da correção gramatical e do emprego da linguagem adequada, garantindo a precisão da comunicação. Cabe aqui ressaltar a definição do item clareza, a qual se caracteriza pela “sequência ou ordenamento adequado dos conteúdos, pela explicitação da natureza e função de cada parte na construção do todo” (p.4).

A escrita de documentos psicológicos segue um raciocínio lógico e cronológico, chronos. Do ponto de vista da organização do pensamento, a lógica visa examinar argumentações, de forma a tornar um raciocínio válido ou não. Observa uma conexão entre introdução, desenvolvimento e conclusão. A cronologia ordena acontecimentos históricos, considerando um encadeamento entre passado, presente e futuro.

A qualidade da comunicação escrita é conferida a um texto bem organizado e planejado e coeso. As ideias precisam estar colocadas de forma a permitir o entendimento do interlocutor a receber a mensagem.

Entendendo e afirmando a validade de tais requisitos no exercício profissional, o problema aqui colocado envolve uma questão de fundo: como traduzir um saber pré-reflexivo, complexo e dinâmico em uma linguagem que obedeça a tais critérios?

Dutra (2002) afirma que a linguagem está envolvida na complexa organização da experiência, mas não diz tudo desta. Escrevemos uma sessão para dar voz aos pensamentos, organizar o raciocínio, promover uma oportunidade de re-conexão e re-significação da experiência vivida no momento da sessão. Esta redação permite também registrar e tornar inteligível o caso tratado, favorecendo nossas interpretações hermenêuticas, compreensivas, assim como a elaboração dos estudos de caso, pois o registro escrito requer uma atividade reflexiva que é complementar àquilo que está guardado na experiência do terapeuta. Para Gendlin (1973, apud DUTRA, 2002), há um processo denominado referência direta, no qual palavras são utilizadas para afirmar ou separar certos aspectos da experiência, em que o sentimento parece chamar a palavra. Existe uma relação direta entre palavras e experiências. Ainda segundo o autor, a palavra diz a experiência e a experiência chama pela palavra. Não se trata de afirmar que a narrativa da sessão deve ser preterida em relação ao saber intuitivo que dela advém. A experiência da sessão e a redação desta estão relacionadas entre si.

Tendo como base a perspectiva da Gestalt-terapia, na sessão de psicoterapia a ênfase está no diálogo entre terapeuta e cliente, diálogo este que produz uma compreensão que pode surgir de diferentes formas. É necessário estar atento à experiência do terapeuta, pois é a conexão feita por ele e o cliente que proporciona qualidade à compreensão.

De acordo com Alvim (2009), o terapeuta conta com a awareness de si próprio para lidar com o paciente, de acordo com a situação, dando a ele a oportunidade de enxergar suas fixações em circunstâncias reais e enfrentar uma reação normal com o suporte que a situação terapêutica oferece. É possível afirmar, assim, que a Gestalt Terapia, quando propõe concentrar-se na estrutura da situação concreta para restabelecer o fluxo de awareness, propõe reaprender a ver o mundo (Op. cit). A experiência de viver no presente é potente não só para o cliente, mas para o terapeuta e o encontro terapêutico que tem como perspectiva conduzir a ambos, ao âmbito do desconhecido na busca da experimentação de um poder criativo, faz surgir uma criação, um sentido, permitindo a ressignificação da existência.

É esse “aprendizado” vivencial que subsidia a reflexão para a elaboração dos estudos de caso, não cabendo, portanto, uma simples transcrição que parta do relato de dados e de uma cronologia de fatos. Mas também na atividade de escrita há um exercício que não dispensa a experiência e a criação.

Assim, concluímos que não se trata de tradução da experiência e do saber pré-reflexivo em uma linguagem escrita, mas de uma nova experiência que se entrelaça à outra. Propomos, então, um espaço de liberdade criadora na escrita, uma busca de integração entre a experiência da sessão e a de escrevê-la, por meio de uma escrita que aproximamos da escrita poética. Perls, Hefferline e Goodman (1997) equivalem uma fala plena de contato à poesia. De acordo com eles, a fala poética é uma atividade que não tem fins instrumentais e durante o processo de escrita, o poeta pode produzir figuras com mais vitalidade, ao mesmo tempo que comunica ao outro.

"(...) à medida que as palavras concretas estão se formando, o poeta pode manter a awareness silenciosa da imagem, do sentimento, da memória, etc., e também as atitudes puras de comunicação social, clareza e responsabilidade verbal. Desse modo, em lugar de serem estereótipos verbais, as palavras são plasticamente destruídas e combinadas de modo a produzir uma figura mais vital." (p.131).

As ideias desses autores corroboram nossa percepção de que um relato mais poético poderia expressar nossa realidade sensorial, cognitiva e emocional, permitindo que essa escrita também se transforme em uma forma menos mecânica, uma forma em que o terapeuta não perca a experiência durante a reflexão e ao mesmo tempo permita uma boa comunicação.

Lembramos aqui da crônica literária que faz a narração de uma história do cotidiano em um determinado tempo. Ao assumir uma postura contemplativa, o narrador evoca fatos, pessoas, espaços e objetos, resgatando-os à momentaneidade do presente e compondo um painel vivo de recordações. Um mesmo fato ou assunto guarda uma originalidade, pois de acordo com nossas vivências temporais e fenomenais, as experiências terão ângulos e aspectos sempre diferenciados.

Na experiência psicoterápica, o terapeuta quando escreve é um narrador que parte de uma perspectiva para reacender uma recordação ou expectativa à luz de um ponto de vista atual. Não pode pretender fixar perspectivas, tampouco estabelecer uma história clara e constitutiva daquela existência, pois tal como compreendemos a partir da Gestalt-terapia e do pensamento fenomenológico-existencial, a existência é movimento, um processo ininterrupto de transformação e reconfiguração. Os registros do terapeuta na experiência psicoterápica em Gestalt-Terapia têm como aspecto marcante o seu caráter tácito, temporal e processual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Endereço para correspondência:
Kelly Gonçalves da Silva – UFRJ
Endereço eletrônico: gsilva.kelly@gmail.com
Clara Castilho Barcellos Dias – UFRJ
Endereço eletrônico: claracbdias@gmail.com
Mônica Botelho Alvim – UFRJ
Endereço eletrônico: mbalvim@gmail.com

 

Recebido em: 19/03/2014
Aprovado em 28/08/2014

 

 

NOTAS

*Psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
**Graduanda em Psicologia Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
***Doutora em Psicologia, Professora Adjunta na UFRJ

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