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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.3 no.2 Rio de Janeiro July 2003

 

COMUNICAÇÃO DE PESQUISA

 

Saúde e trabalho nas escolas: experimentando a construção de outros modos de fazer psicologia

 

Health and work in schools: experiencing the constructions of other manners of making psychology

 

 

Maria Elizabeth Barros*; Sonia Pinto de Oliveira**

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

Endereço para correspondência

 

 

A perspectiva que norteia esse texto pauta-se no conceito de modo de produção em Marx, que busca dar conta da complexidade das formações sociais como "tendência" (ALTHUSSER; BALIBAR; ESTABLET, 1980). Ou seja, como processo de produção das diversas situações concretas, como constituição das formações sociais, de suas produções materiais e dos modos de cooperação que produzem/inventam modos humanos de existência. O modo de produção capitalista, por exemplo, se pauta na busca da homogeneização, na "produção de repetição" e de modos de vida que não colocam em questão as formas de funcionamento social instituídas, desnaturalizando-as.

O modo de fazer educação se efetivava, inicialmente, de forma difusa no meio social – todos participavam – e era exercido nos diferentes espaços, como a família, o clã etc. Só mais tarde, com o modo de produção capitalista, a educação se especializou sob a égide da escola. Não existia qualquer instituição educativa específica: os membros da comunidade transmitiam diversamente o que era possível. A educação surgia em múltiplas situações de aprendizagem. Numa sociedade onde existem interesses desiguais e antagônicos, o processo educativo torna-se dividido e imposto, mas, mesmo nesse contexto de luta de classes, presença do Estado e fracionamento/desqualificação do trabalho, a educação continua no âmago da vida social.

Estamos afirmando a natureza política do processo educativo e o caráter educativo do ato político e, portanto, a importância de analisarmos alguns modos de regulação da educação por parte dos poderes públicos, as formas de administração das escolas e a maneira como os trabalhadores têm gerido a variabilidade do seu fazer cotidiano (1). Tais análises, ao historicizar estas dimensões no campo da educação, abrem para a possibilidade de se instituir uma forma diferente de se trabalhar na escola. Elas podem ajudar na criação de estratégias de organização do trabalho que valorizem a variabilidade do ato produtivo e seu processo inventivo.

Atualmente, as políticas públicas no âmbito da educação – marcadas pelo sucateamento das escolas públicas, por uma democracia formal e uma pseudo-autonomia político-pedagógica – têm produzido, entre outros aspectos, a desvalorização dos educadores. A insegurança nas relações de trabalho – que tem na figura dos educadores com designação temporária (os DTs) um bom exemplo – dá mostras da quebra de contrato social que se fundamentava, em relação ao trabalhador, em um conjunto de garantias e direitos que está sendo sepultado.

Esse quadro tem sido acompanhado por danos à saúde, que se tem traduzido, com freqüência, em maior sofrimento, o que, algumas vezes, significa fragilização da saúde e, em outras, possibilidade de transformá-lo em criação. As práticas pedagógicas têm sido pautadas numa desarticulação entre os diferentes níveis de trabalho educativo e o esvaziamento dos momentos de planejamento e de debates coletivos. Os educadores da rede pública com quem temos trabalhado sentem-se limitados quanto à possibilidade de intervir de maneira mais efetiva nas situações vividas na escola, de forma a dar conta da variabilidade do seu trabalho.

Entretanto, os humanos estão em permanente atividade, procuram enfrentar o sofrimento e estão constantemente em combate. A produção de saberes no trabalho está marcada por um constante debate de valores, construídos ao longo da história pelo coletivo de trabalhadores. A história atravessa o trabalho, pois, fazer história é recombinar saberes, conforme afirmou Schwartz, na Conferência de Abertura do Seminário "Trabalho e saber", em Belo Horizonte (2003). Nessa perspectiva, saúde é conquista diária, luta contra as adversidades cotidianas e compromisso que se assume com a realidade, sendo fundamental o papel de cada um e dos grupos que a experimentam.

Dentre as diferentes propostas para reverter o quadro de fragilização da saúde dos docentes, os resultados de nossas pesquisas nos levam a considerar que fortalecer as investigações no âmbito dos processos de formação(2) é uma estratégia fundamental. A pesquisa integrada desenvolvida na UFES em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UERJ é fruto das reflexões efetivadas a partir do que temos produzido no campo das articulações entre os processos de trabalho em educação e a saúde dos profissionais. O objetivo é implementar um programa de formação dos educadores que viabilize uma análise permanente do trabalho que desenvolvem, na perspectiva de modificá-lo sempre que necessário. Temos a preocupação não só em mostrar como o trabalho que se organiza nas escolas contribui para a produção de sofrimento e adoecimento naqueles que lá trabalham, mas também identificar como esses trabalhadores constroem estratégias para se defenderem dessa nocividade. É preciso apresentar as maneiras que eles vêm construindo para lidar com a dor e o prazer de ser educador, pois, ao dar visibilidade ao que têm vivido, abre-se a possibilidade de produção de uma nova realidade para os processos de trabalho nas escolas.

Desde 1998, em consonância com a demanda formulada pelos docentes da rede municipal de ensino de Vitória/ES, colocamos em foco, num primeiro momento, a situação desses educadores em suas articulações com as diferentes administrações implementadas no município. Partimos do princípio de que as formas como o trabalho se organiza na escola interferem na produção de saúde/doença dos docentes.

Hoje, considerando o que já avançamos nas pesquisas anteriores, temos como proposta a implementação de um Programa de Formação em Saúde e Trabalho nas escolas. O objetivo é criar uma metodologia de intervenção nas condições de trabalho e saúde, contribuindo, assim, para a formação de educadores capazes de analisar o trabalho real que desenvolvem.

 

A pesquisa

No curso das pesquisas que temos realizado, partimos da atividade docente, ou seja, de onde cada um se reconhece e reconhece os outros como produtores de saber. Quando problematizamos a atividade, revela-se o "trabalhar de outras maneiras", o que difere de uma banalização na execução das tarefas. Descobre-se a complexidade do que se acreditava ser "simples". Aí está o campo do "debate de normas", segundo Schwartz (comunicação verbal) isto é, uma reavaliação das tarefas em função de experiências concretas, o que implica uma imersão no mundo dos valores em debate:

[...] os valores, as escolhas de ser dos indivíduos, dos coletivos, dos grupos humanos, exploram segundo esta ou aquela dimensão, neste ou naquele grau, os recursos técnicos, científicos e sociais existentes, os reorganiza desta ou daquela maneira para produzir novas combinações: essas combinações novas ‘fazem história', abrem novos horizontes, colocam novas tarefas ao conhecimento conceitual, que depois deve tentar compreender, desdobrar essas renormalizações operativas. (SCHWARTZ, comunicação verbal)

Dentro dessa ótica, temos ficado atentas à dupla variabilidade sempre presente no trabalho na escola – variabilidade do contexto e das pessoas (inclusive de si mesmo) – e, portanto, para o caráter inédito e singular da atividade e da situação de trabalho. Assim, esse conceito ampliado de atividade com o qual temos trabalhado aponta uma concepção de trabalho que é mais do que a realização da tarefa. O conceito de atividade permite incorporar a "reconcepção" pela qual o educador não só realiza sua tarefa, como também faz a gestão da variabilidade e constrói sua saúde.

A atividade, portanto, não se reduz ao prescrito, ao realizado, envolve, ainda, o que se quer/quis, o possível e o impossível. Consideram-se também as atividades suspensas, contrariadas, impedidas, enfim, as contra-atividades – ou seja, implica reconcepção e redefinição da tarefa pelo sujeito. Para qualquer trabalhador, a tarefa redefinida é sempre um compromisso entre racionalidades múltiplas, de três ordens principais: os objetivos da tarefa, seus próprios alvos subjetivos e o coletivo de trabalho.

Conforme o Prof. Milton Athayde, em aula expositiva no Núcleo de Estudo e Pesquisa em Subjetividade e Política, o trabalho real dos educadores não apenas é uma resposta às prescrições, mas também um diálogo com as atividades de concepção/reconcepção, com vistas aos alunos (neste sentido, atividade "endereçada" e "instrumentada"). A atividade de preparação de aula se dá fora da classe e na presença dos alunos (remetendo para diferentes tempos: planificação, orientação, antecipação das tarefas). Por outro lado, são, também, trabalhos "prescritores" – prescrevem tarefas para os alunos e, em seu cotidiano, colocam à prova as prescrições. O que se prescreve para o educador é, exatamente, prescrever a outros – os alunos – a realização de uma tarefa. Segundo Milton Athayde:

o trabalho com os alunos é o lugar nevrálgico onde se joga a perda ou o restabelecimento de seu poder de agir, provocando sofrimento ou prazer. Pode-se falar em organizar a "turma" como um meio de trabalho que mobiliza um coletivo de alunos (gerir um curso é regular a atividade de trabalho dos alunos, por um lado em direção de uma atividade e da atividade dos outros, sobre a mesma tarefa). Em suma, pode-se dizer que o trabalho dos alunos é um organizador da ação destes trabalhadores (informação verbal)

É importante destacar, ainda, que da mesma forma como se prescreve o trabalho do educador e ele escapa à prescrição, o aluno também foge ao que lhe é prescrito. Mas, ao escapar do que lhe é imposto, é remetido ao lugar da falta, aos problemas de aprendizagem. O que falta ao aluno para que aprenda? Como fazê-lo obedecer às prescrições do professor? O processo de ensino-aprendizagem não deveria ser pautado na afirmação do aspecto criador da "falta à prescrição"? Como administrar esse paradoxo?

A Analise Coletiva do Trabalho (ACT), muito utilizada nas analises ergonômicas de linhagem francesa, tem sido nossa estratégia básica para checar essas questões. A ACT consiste em criar grupos de educadores que explicam sua atividade e o que fazem no trabalho. A descrição das atividades funciona como um fio condutor da análise, uma vez que, ao falar, os profissionais apresentam os diferentes aspectos do trabalho, tanto na dimensão do que o potencializa quanto na do que o enfraquece e os faz sofrer.

Nossa meta? Construir uma Comunidade Ampliada de Pesquisa (3), que teria como objetivo a transformação da situação vivida pelos trabalhadores nas escolas de Vitória/ES. Foi perseguindo a abertura de espaços de análise das situações de trabalho que criamos as seguintes estratégias que constituíram o programa de formação: a) fórum de discussões sobre a problemática saúde/trabalho, que se efetivou em diversos congressos da categoria promovidos pelo Sindicato de Trabalhadores da Educação do Espirito Santo; b) análise das situações de trabalho, que se efetivou através de entrevistas, conversas e vivência institucional em duas escolas da rede municipal de ensino; c) oficinas mensais de produção de conhecimento, tendo como produto um caderno de textos escritos coletivamente, no qual são apresentados temas relevantes para o processo de formação, como o conceito de saúde, trabalho e comunidade ampliada de pesquisa; d) desenvolvimento teórico-metodológico sobre a temática, que implicou na atualização permanente do grupo quanto à produção teórica dos temas da pesquisa; e e) divulgação do trabalho em congressos sobre a temática da pesquisa.

No nosso entendimento, a formação dos trabalhadores para a investigação/intervenção na escola conduz não só a uma melhor compreensão do espaço de trabalho e suas articulações sempre complexas com a produção de saúde/doença, mas, principalmente, à invenção de novos modos-educadores/educação. Colocar em análise a formação dos trabalhadores da educação não se limita, a nosso ver, a discutir as formas instituídas que estabelecem competências e incompetências, lugar de saber e não-saber, segregando, desqualificando e culpabilizando. O objetivo é entrar em sintonia com um plano de análise onde se dá a produção concreta do sujeito e dos objetos, via privilegiada para a continuação de outros estratos de vida.

Consideramos que o processo de pesquisa deu a oportunidade à interrogação das situações vividas na escola onde a pesquisa-intervenção foi realizada, abrindo para a construção de novas formas de organização. Foram instituídas reuniões bimensais para se avaliar o trabalho desenvolvido; quinzenalmente, horários coletivos de planejamento das atividades; e, principalmente, a abertura de um debate sobre o que "adoece" na escola. As discussões abriram as mentes para uma visão de saúde que coloca em análise as situações de trabalho e os trabalhadores como capazes de intervir nessas situações adoecedoras. Os professores elaboraram um questionário que, depois de validado pelo grupo de pesquisadores, passou a ser um valioso instrumento para a avaliação de suas condições de trabalho.

Interrogou-se, ainda, uma divisão do trabalho que tem atribuído à equipe técnica a responsabilidade de planejar e dirigir as práticas pedagógicas. Instituiu-se, assim uma discussão que responsabiliza todos os trabalhadores nesse processo. Todos foram colocados na "Roda" (4).

Conforme depoimento dos educadores, não cabe mais atribuir à Secretaria Municipal de Educação (SEME) ou à equipe técnica a responsabilidade do que vem ocorrendo na escola. Construiu-se um espaço, mesmo que ínfimo, de autonomia. Os professores se sentem mais potentes para interferir no trabalho que desenvolvem, para fazer história. Por outro lado, afirmam que não é possível mudar o trabalho sozinhos. Saem de uma passividade adoecedora para um momento em que consideram que cada um pode fazer alguma coisa para mudar, e chegam ao final da pesquisa afirmando que sozinhos "não vão dar conta".

Destacamos, ainda, o fato de relatarem que é preciso estar mais atentos ao que se fala na escola, do que se fala e como se fala. Conforme depoimento de uma educadora: "Ao ouvir o que estão dizendo... isso pode ajudar. Anotar, fazer diário de campo onde podemos acompanhar o que está ocorrendo pode ser um instrumento muito bom". Uma preocupação ou uma atenção diferenciada com os colegas que parecem "mortos vivos" passa a ter destaque. Perceber que não estão bem, olhar nos olhos e fazer alguma coisa por eles são aspectos fundamentais para a construção de ambientes de trabalho que produzam saúde. A importância de estarem atentos aos sinais da escola – aos barulhos que não só ensurdecem, mas que podem produzir outros sentidos para o trabalho que desenvolvem – pode ser uma pista interessante a ser seguida quando se tem como proposta a construção de ambientes de trabalho saudáveis.

Quanto ao fato de se constituir uma Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP) na escola, os educadores começam a vislumbrar que fazer pesquisa não é coisa apenas de especialista. Eles próprios podem criar instrumentos de investigação e olhar de uma outra forma o que estava banalizado, o que não mais inquietava. Com esses objetivos, criou-se um grupo de trabalho que passa a ter a função de fazer levantamentos periódicos das condições de trabalho na escola, ouvindo todos os setores da mesma. Cabe destacar, ainda, que hoje, em função dos resultados obtidos, vislumbra-se a possibilidade de expansão desse processo para o restante da rede de ensino de Vitória/ES.

A pesquisa relatada sinaliza para a urgência de se criar materiais metodológicos que nos auxiliem na construção de formas de trabalho no campo da Psicologia afinadas com a perspectiva ético-política que apontamos. O desafio está lançado.

 

Referências bibliográficas

ALTHUSSER, L.; BALIBAR, E.; ESTABLET, R. Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico. Ler o Capital, vol. II, Rio de Janeiro, p. 153-267, 1980.

CAMPOS, G. W. de S. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003.

HECKERT, A. L. C. Educação e trabalho: produzindo outros territórios de criação. Relatório de pesquisa realizada no Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 1993.

ODONNE, I. Ambiente de Trabalho. São Paulo: Hucitec, 1985.

 

 

Endereço para correspondência
Maria Elizabeth Barros
Endereço eletrônico: betebarros@uol.com.br
Sonia Pinto de Oliveira
Endereço eletrônico: soniapdo@escelsa.com.br

Recebido em: 24/09/2003
Aceito para publicação em: 01/03/2004

 

 

Notas

* Professora doutora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
** Professora mestra do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
1 Cotidiano, aqui, refere-se ao conjunto de atividades que os humanos desenvolvem, criando todos os dias novas formas de ser/fazer.
2 O conceito de formação aqui expressa refere-se a um processo que visa desmanchar os territórios de saber-poder construídos na prática educativa sobre a crença de um saber "competente", desistoricizado. Ou seja, estamos afirmando um processo que visa "estilhaçar as fôrmas de ação" (HECKERT, 1993, p. 56) e os lugares assépticos dos especialismos, que têm produzido saberes-propriedade apoiados em estratégias homogeneizadoras que excluem a diferença e o múltiplo.
3 Estratégia originalmente criada por Oddone (1985) e sua equipe na Itália, durante a construção do modelo operário italiano de luta pela saúde nos ambientes de trabalho.
4 A idéia de colocar "na roda" vem da proposta de Campos (2003, p. 30), que criou um método o qual denominou de Roda, que visa lidar com os impasses dos processos de gestão no trabalho, propondo a co-gestão das situações de trabalho nas organizações. "A roda é um espaço coletivo: um arranjo onde existia oportunidade de discussão e de tomada de decisão. A Roda é um lugar onde circulam afetos e vínculos são estabelecidos e rompidos durante todo o tempo."

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