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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.2004 n.1 Rio de Janeiro jun. 2004

 

RESENHA

 

“Le temps hypermodernes”

 

“The hipermodern times”

 

 

Marília Antunes Dantas*

Endereço para correspondência

 

 

A obra de um dos mais pertinentes filósofos e sociólogos franceses, Gilles Lipovetsky, 59, marca profundamente a interpretação da modernidade e da pós-modernidade, mais especificamente, a exploração da noção de “indivíduo”, empreendida por uma descrição e por uma arqueologia minuciosa das múltiplas facetas do individualismo contemporâneo: o culto da moda e do luxo, as transformações no plano da ética, as metamorfoses da sociedade de consumo e da economia dos sexos.

Em seu primeiro livro intitulado “L`Ère du Vide” [A Era do Vazio, Ed. Gallimard, 1983], Lipovetsky analisa os efeitos da passagem da modernidade para a pós-modernidade, cuja transição teria se dado entre os anos 60/70, partindo do ponto capital característico da sociedade pós-disciplinar: a autonomia do indivíduo pós-moderno em ruptura com o mundo da tradição e suas estruturas de normalização.

Entretanto, como afirma o autor, essa liberação não engendrou o desaparecimento dos mecanismos de controle; estes foram adaptados de tal modo a se apresentarem de forma menos diretiva e impositiva ao indivíduo. Ao invés da disciplina, entendida como um conjunto de técnicas e de regras particulares cuja finalidade básica era a de submeter os indivíduos a uma padronização de suas condutas, a era pós-moderna opera segundo o processo de personalização, uma nova modalidade de organização da sociedade e do gerenciamento dos comportamentos, “não mais pela tirania dos detalhes, mas com o mínimo constrangimento e a máxima possibilidade de escolhas privadas possíveis, com o mínimo de austeridade e o máximo de desejo possível, com o mínimo de coerção e o máximo de compreensão possível”. (LIPOVETKSY, 1983, p. 2)

Desta forma, a pós-modernidade se apresenta sob a forma de um paradoxo, ao revelar a coexistência nem sempre harmoniosa entre duas lógicas: uma que estimula a autonomia do indivíduo e, outra, que o convida à dependência.

Em seu segundo título “L’Empire de L´Éphémère” [O Império do Efêmero, Gallimard, 1987], Lipovetsky examina o papel crucial da moda na contemporaneidade, pois, com a difusão da lógica da moda - cujas características principais se revelam através do consumo de massa e dos valores por ele veiculados, a todo o conjunto do corpo social, teríamos enveredado da modernidade à pós-modernidade, mutação evidenciada a partir dos anos 60.

A extensão desse princípio aos múltiplos aspectos da vida social conferiu uma reestruturação e uma nova dinâmica à própria sociedade, baseadas nos pilares estruturantes da lógica da moda, isto é, na importância do efêmero, da sedução e da diferenciação marginal.

A apropriação e a difusão da lógica da moda pelo conjunto da vida social possibilitaram uma desqualificação do passado e dos valores tradicionais, através da afirmação do reino do novo, do desejo de novidade, do efêmero sistemático e da vontade de sedução tocando indistintamente o domínio público e o privado.

Em seu mais recente livro, escrito em colaboração com Sébastien Charles, filósofo e professor da Universidade Sherbrooke, Canadá, “Le Temps Hypermodernes” [Os Tempos Hipermodernos, Ed. Grasset, 2004], Lipovetsky nos convida a uma discussão acerca da pertinência do próprio conceito “pós-modernidade”, além de se ater, pela primeira vez, na descrição, em seus traços mais evidentes, daquilo que há de melhor e de pior na hipermodernidade.

O autor defende a idéia de que o uso do termo “pós-modernidade”, para a descrição e análise dos tempos atuais, seria ambíguo, problemático e mesmo incorreto, uma vez que engendra um sentido de um para além da modernidade, marcando uma evidência de ruptura em relação aos modelos que alicerçavam a noção de individualismo moderno. A pós-modernidade foi, segundo o autor, no máximo uma fase de transição ocorrida entre os anos 60/80 que fez entrar em cena uma figura inédita: a do indivíduo autônomo, liberto dos freios institucionais, das ideologias políticas e das normas da tradição, característicos da modernidade.

Tal como descrito em “A Era do Vazio”, o individualismo narcísico pós-moderno seria marcado pelo hedonismo, pelo gosto das novidades, pela promoção do fútil e do frívolo, pela vontade de expressar uma identidade singular, “uma revolução na representação das pessoas e no sentimento de si, tumultuando as mentalidades e os valores tradicionais” (CHARLES, 2004, p. 21), fazendo aparecer, desta forma, Narciso, ícone pós-moderno, encarnado na figura do indivíduo cool, flexível e libertário.

Desde os anos 80, estaríamos ainda submetidos a este mesmo modelo de individualismo narcísico? Esta é a indagação que Lipovetsky nos propõe em “Le Temps Hypermodernes”. Inúmeros indícios nos conduzem a pensar que entramos na era onde tudo se tornou “hiper”, hipercidades, hipermercados, hiperpotências, hiperterrorismo, hipercapitalismo, uma cultura do excesso, cujos pilares se assentam nas noções de hipermodernidade, hiperconsumo e hipernarcisismo.

Após a transição cultural proporcionada pela pós-modernidade, entra em cena a hipermodernidade, uma sociedade marcada pelo signo do excesso, pela cultura da urgência e do sempre mais, pela hiperfuncionalidade, pelo movimento, pela fluidez e pelo declínio das tradicionais estruturas de sentido, onde os grandes sistemas de representação de mundo são tomados como objeto de consumo, sendo cambiáveis de modo tão efêmero como um automóvel ou um apartamento, num processo de permanente reciclagem do passado: “Chegamos ao ponto em que a comercialização dos modos de vida não encontra mais resistências estruturais, culturais ou ideológicas, e onde as esferas da vida social e individual são reorganizadas em função da lógica do consumo”(LIPOVETSKY, 2004, p. 41).

Hiperconsumo, sustentado por uma lógica hedonista e emotiva que produz em cada sujeito o desejo de consumo, muito mais em função do prazer que este pode lhe proporcionar do que propriamente como meio de avaliação e de comparação com os demais indivíduos. O hiperconsumo emocional dita a especificidade das relações que estabelecemos com nossos afetos, com os objetos, com os outros, com a vida. O império do princípio do hiperconsumo se evidencia na busca de emoções e de prazer, no cálculo utilitarista das relações sociais e de trabalho, na superficialidade e frivolidade da expressão dos afetos.

Hipernarcisismo, época de um Narciso que se toma por maduro, responsável, organizado, eficaz, rompendo com o modelo de Narciso típico dos anos pós-modernos.
Mas, como pensarmos em Narciso maduro, se o indivíduo hipermoderno insiste em permanecer como um eterno adolescente, os “adultescentes”, como que se recusando a assumir a idade adulta e revelando o medo de envelhecer.

E o que dizer de Narciso responsável, se a cada dia observamos a consolidação e multiplicação de comportamentos irresponsáveis, evidenciados pelo fato de as declarações de intenção não serem mais seguidas de qualquer efeito? Em outras palavras, progridem as condutas responsáveis ao mesmo tempo em que há a acentuação da irresponsabilidade.

Narciso organizado e eficaz? E o que dizer da ascensão de comportamentos disfuncionais, expressos nas formas de compulsões e adições, de sintomas psicossomáticos, de quadros depressivos, engendrados paradoxalmente particularmente no universo funcional da técnica?

Em recente entrevista publicada em 14 de março de 2004, ao “Caderno Mais!”, da Folha de São Paulo, Lipovetsky afirma ser a sociedade hipermoderna uma

sociedade esquizofrênica em que convivem, de um lado, uma sociedade hiperfuncional, funcionalidade da técnica, da ciência, que trabalha cada vez mais critérios mensuráveis, de eficácia e operacionalidade. Paralelamente, assiste-se à ascensão de comportamentos disfuncionais e os dois existem juntos (...) Logo, tem-se de um lado uma sociedade em que cada vez mais impera a ordem e, de outro, a desordem – no fundo, um quadro de patologia e de caos.

A situação paradoxal da sociedade hipermoderna, dividida entre a apologia do excesso e o elogio à moderação traz como conseqüência uma inquientante desestabilização emocional e fragilização do indivíduo. Face à desestruturação das formas de controle social, tem-se o direito a decidir e fazer escolhas no âmbito de um contexto cada vez mais plural e liberal, mas também nos cabe a capacidade para o exercício do autocontrole e do comportamento individual responsável. Desta forma, o indivíduo hipermoderno revela-se inquieto e amedrontado diante de um futuro incerto e ambivalente: por um lado é estimulado à valorização de princípios como a saúde, o equilíbrio e a prevenção; por outro, levado pela lógica do excesso, revela comportamentos extremamente excessivos, como por exemplo, no âmbito da alimentação, onde podemos observar a proliferação de comportamentos anoréxicos, indicadores de uma patologia no nível do excesso de controle e de comportamentos bulímicos, reveladores de uma patologia do excesso de consumo.

Tudo parece indicar que realmente estamos passando de uma era “pós” à era “hiper”, onde uma das questões mais importantes aponta para a necessidade de se repensar a socialização no contexto hipermoderno, isto é, quais são os desdobramentos éticos engendrados por uma mutação dessa natureza?

A hipermodernidade nos revela, segundo Lipovetsky, mais uma vez um paradoxo: Por um lado, numerosos são aqueles que denunciam o aumento da violência e da barbárie em nossa sociedade. O hedonismo individual, ao minar as instâncias tradicionais de controle social, indica favorecer o relativismo desenfreado dos valores, permitindo o livre curso de toda sorte de elucubrações e de ações possíveis. Reveladas por uma ética e por um espírito de irresponsabilidade e incapaz de resistir tanto aos apelos externos como aos impulsos internos, o indivíduo hipermoderno revela comportamentos e modos de vida irresponsáveis, tais como cinismo generalizado, recusa de empreendimento de esforço e de sacrifício frente às adversidades da existência, comportamentos compulsivos, violência gratuita, tráfico de drogas e toxicomanias. Por outro lado, como efeito da ética da responsabilidade, temos de admitir que os direitos do homem jamais foram vividos de modo tão consensual como hoje e que os valores como a tolerância e respeito às diferenças jamais foram tão vividamente manifestados e defendidos como atualmente.

Ao se repensar a futuro da hipermodernidade, devemos analisar sua capacidade em fazer triunfar a ética da responsabilidade sobre os comportamentos irresponsáveis, e o fato de nossa sociedade ser capaz de produzir tal ou qual efeito depende obviamente da consciência de cada indivíduo sobre a importância de sua responsabilidade neste processo: “Jamais uma sociedade favoreceu uma autonomia e uma liberdade individuais tão amplas em seu exercício, jamais seu destino se encontrou tão estreitamente ligado aos comportamentos daqueles que a compõem”. (CHARLES, 2004, p. 65)

Em “Le Temps Hypermodernes”, Lipovetsky nos aponta a lógica contraditória da sociedade hipermoderna, acentuando o fato de que esta contradição ter sido introjetada pelos indivíduos, que revelam-na através de seus conflitos e de seu medo diante da incerteza, da complexidade e da imprevisibilidade do presente.

Mas sua análise não se atém tão somente à interpretação da hipermodernidade, revelando seus paradoxos. O autor nos convida à reflexão fundamental acerca de nosso papel nesta sociedade, conclamando a todos a se responsabilizarem frente ao futuro. E, fazemos nossas as palavras de seu interlocutor, Sébastien Charles:

Lipovetsky propõe uma interpretação de hipermodernidade que se pretende cada vez mais racionalista e pragmática, e segundo a qual a responsabilização é a pedra angular do futuro de nossas democracias. Sem responsabilidade verdadeira e autêntica, as declarações de intenção virtuosas, mas vazias de efeitos, não serão suficientes. São imperiosas a valorização da inteligência dos homens e a mobilização das instituições, a fim de que sejam preparadas nossas crianças para os problemas do presente e do futuro. A responsabilização deverá ser coletiva e se exercer em todos os domínios do poder e do saber, mas também deve ser individual, pois temos o dever de assumir esta autonomia que a modernidade nos deixou como legado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIPOVETSKY, G. L´Ère du Vide. Gallimard: Paris, 1983.        [ Links ]

LIPOVETSKY, G. L´empire de l´éphémère. La mode et son destin dans les sociétés modernes. Gallimard: Paris, 1987.        [ Links ]

LIPOVETSKY, G. & CHARLES, S. Le Temps Hypermodernes. Paris: Editions Grasset, 2004.        [ Links ]

LIPOVETSKY, G. Entrevista. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 mar. 2004. Caderno Mais!        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: mariliad@compuland.com.br

Recebido em: 06/04/04
Aceito para publicação em: 27/04/04

 

 

NOTAS

* Professora Assistente da Faculdade de Psicologia da Universidade Católica de Petrópolis
Professora Auxiliar da Universidade Estácio de Sá – UNESA
Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-RJ
Mestre em Psicologia Social – Universidade Gama Filho – UGF
Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - PPGPS - UERJ

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