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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.4 n.2 Rio de Janeiro dez. 2004

 

EDITORIAL

 

A questão da cientificidade: novos paradigmas

 

The question of scientific: new paradigms

 

 

Ariane P. Ewald; Deise Mancebo; Anna Paula Uziel; Eleonora T. Prestrelo1

Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 

O meio científico apresenta ainda dificuldades em chegar a um acordo sobre o que é científico e o que não é. As polêmicas em torno de determinadas questões perduram como se tivessem acabado de começar e os argumentos raramente se renovam. O que torna realmente uma pesquisa científica, ainda não encontrou o seu consenso (OLIVA, 2003), apesar das afirmativas contundentes que geralmente costuma-se ouvir das diversas áreas de conhecimento. Será esta uma questão de paradigmas, tal como enunciado por Thomas Kuhn (1978)? Que paradigmas estão servindo de fundamento para a discussão do que é ou não científico? Pode-se perguntar, ainda, se o mesmo paradigma deve ser utilizado pelas ciências, de forma geral, criando com isso o risco de uma generalização uniformizadora para áreas cujos objetos de estudo são tão diferenciados.

Em A estrutura das revoluções científicas, Thomas Kuhn já defendia uma concepção de ciência historicamente orientada (1978, p.15) pois, para ele, é a história que permite  a identificação do que se concebe, num determinado período, por científico. Defende, ainda, que mesmo que trabalhos não sejam compatíveis com as concepções atuais de ciência, não significa que não sejam científicos e que o mesmo pode ser pensado em relação às teorias obsoletas. As conseqüências desta concepção remetem ao desmantelamento de um dos principais pilares da tradicional forma de se fazer ciência: a crença de que os dados empíricos não são afetados pela teoria do observador e de que o avanço da ciência fornece, por acúmulo, uma verdade cada vez maior sobre o mundo. Esta outra forma de conceber a ciência inviabiliza vê-la como um simples processo de acréscimos, e abre a oportunidade de pensarmos o “científico” a partir da relação de concepções num determinado momento histórico, encontrando ali a coerência interna necessária para um outro tipo de concepção de ciência. Abre-se também o caminho para repensarmos o processo de educação da/para a ciência nos meios acadêmicos – lugar em que a “ciência normal” efetivamente acontece – e que, sem sombra de dúvida, partem, na concepção de Kuhn, de um paradigma estabelecido que encaminha o conhecimento científico para uma concepção de “moldura pré-estabelecida”. Assim, a “ciência normal”, que é a atividade na qual a maioria dos cientistas emprega a maior parte do seu tempo, “é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo” e busca, vigorosa e devotadamente, “forçar a natureza a esquemas conceituais fornecidos pela educação profissional” (KUHN, 1978, p. 24). O paradigma fornece, portanto, um modelo de pensamento completo e fechado e ao aceitá-lo, o cientista já se coloca sob um padrão de escolhas e decisões que dizem respeito a técnicas de pesquisa, ao que deve observar, as questões a serem formuladas, problemas, formas de explicação e interpretações aceitáveis ou não (OLIVA, 2003).

Podemos pensar, portanto, que fazer ciência não é simplesmente seguir um caminho previamente estabelecido, nos moldes da história de João e Maria que deixaram um caminho de migalhas de pão para não se perderem no meio da floresta, sem prever que os passarinhos os comeriam. É ir além da “ciência normal”, é refletir sobre o mundo a partir de parâmetros inesperados, desestabilizar este modo normal de fazer ciência e, ainda assim, estar produzindo narrativas e conhecimentos extremamente relevantes para a compreensão das coisas do mundo vivido. Ser um pouco anárquico no pensar e no produzir conhecimento, como defende Paul Feyerabend (1977).

Zigmunt Bauman, em entrevista concedida a Maria Lúcia Pallares-Burke, ao ser inquirido sobre sua formação de sociólogo e se a literatura pode ensinar sobre a sociedade e a condição humana, afirma que as “narrativas sociológicas”, provenientes dos livros e cursos que realizou durante tantos anos, não são superiores a outras narrativas, pois têm sempre de demonstrar e provar seu valor e utilidade pela qualidade de seu produto. “Eu, por exemplo”, afirma Bauman, “me lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muito mais insights sobre a substância das experiências humanas do que de centenas de relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo, aprendi a não perguntar de onde uma determinada idéia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas à sua condição – assunto tanto da sociologia como das belles-lettres” (2004, p.319). É possível, com isto, pensarmos que a dimensão do humano nos impõe outras tarefas, que vão além da “ciência normal” e, ao mesmo tempo, estarmos atentos para não produzirmos o que Peter Burke (2002) chama de “um diálogo de surdos” dentro deste próprio fazer. Este mesmo autor lembra que o hoje clássico e elogiado estudo de Jacob Burchardt, Cultura do Renascimento na Itália, escrito em 1860, que trata do nascimento do conceito de indivíduo – conceito este tão caro às ciências humanas e sociais - teve pouquíssima repercussão porque se baseava muito mais em fontes literárias do que em registros oficiais. Neste sentido, podemos lembrar a importância do surgimento da Escola dos Annales (Burke, 1991) que estabeleceu um novo modo de olhar para a História. A intenção de Marc Bloch e Lucien Febvre era fazer com que a História se tornasse mais ampla e humana e assim estenderam suas reflexões procurando fazer uma interlocução com áreas como Antropologia, Geografia, Lingüística e Psicologia. Essa preocupação também esteve presente no trabalho de Fernand Braudel que era versado em economia e geografia e acreditava firmemente em um mercado comum das ciências sociais (BURKE, 2002, p. 31). A definição de História que o próprio Braudel (1992) usa em seu texto História e Sociologia é bastante singular e ilustra bem esta discussão: “não há uma história, um ofício de historiador, mas, ofícios, histórias, uma soma de curiosidades, de pontos de vista, de possibilidades, soma à qual amanhã outras curiosidades, outros pontos de vista, outras possibilidades se acrescentarão ainda” (p.92, grifos do autor).

Em prefácio ao livro de Iray Carone (2003), que retoma a discussão dos paradigmas na Psicologia, Yves de la Taille relembra a relação entre Psicologia e Epistemologia, já bastante abordada por Japiassu em alguns de seus livros (1975, 1975a, 1988, 1991, 1994). Mas ele lembra a severa crítica feita por Canguilhem, nos anos 50, à Psicologia, e que, oportunamente neste momento, a revista Estudos e Pesquisas em Psicologia ilustra com um artigo sobre a polêmica que ali se iniciou. É ele que abre este número da revista, relatando a polêmica criada em torno do já clássico texto "Qu'est-ce que la psychologie?" de G. Canguilhem. Jean François Braustein, no artigo intitulado “La Critique Canguilhemienne de la Psychologie”, procura, antes de mais nada, situar o leitor no contexto da discussão, pois o texto surgiu de uma conferência pronunciada em 1956 e que foi posteriormente publicada na  Revue de métaphysique et de morale. A história do artigo e as polêmicas que se desdobraram a partir dele são, como diz o próprio autor, “relativamente complexas” pois levam dois autores, Canguilhem e Lagache - cuja afinidade intelectual estava explicitada em seus próprios textos, a exporem diferenças que até então não se colocavam como tão relevantes. Como lembra Braustein, o artigo de Canguilhem começa por uma afirmação bastante dura, defendendo que o estatuto da psicologia é pouco claro e que mistura uma filosofia sem rigor com uma ética sem exigência e uma medicina sem controle, procurando demonstrar, ao longo do seu texto, que a psicologia não possui nenhuma unidade. Com este artigo, Jean François Braustein explicita o percurso que se faz na construção do conhecimento científico que, muitas vezes, é atravessado por pontos de vistas divergentes tanto científica quanto pessoalmente.

No segundo artigo, “O Homem sem Qualidades. História Oral, Memória e Modos de Subjetivação”,Heliana de Barros Conde discute a história oral como ferramenta para a construção da história da Análise Institucional no Brasil. Recorrendo à noção de “memória-composição” de Alistair Thomson, a autora discute as relações entre a prática da história oral, as formas de coleta de lembranças e a criação de possibilidades metodológicas futuras neste processo. Heliana Conde parte da sua própria memória para realizar esta discussão e não hesita, a partir dos estudos que realizou sobre história oral, em colocar em cena as noções que, mesmo vindo de outras áreas, considera importantes para auxiliar neste trabalho de reconstrução da memória da Análise Institucional.

O artigo de Ivone G. Barbosa e Solange M. O. Magalhães, “Método dialético: uma construção possível na pesquisa em educação da infância”, se propõe a refletir, do ponto de vista metodológico, sobre as práticas educativas que são usadas na educação da infância. Procura então, a partir de estudos e investigações já realizadas e sobre eles exercendo uma reflexão crítico-metodológica, perceber a possibilidade de uma orientação dialética para a criação de paradigmas teórico-metodológicos que possam dar conta da dinâmica inerente ao seu objeto de estudo, reforçando as palavras de Adam Schaff (1991) de que é preciso assumir que o conhecimento é um processo infinito de verdades parciais que a humanidade estabelece nas diversas fases do seu desenvolvimento histórico (p. 97).

O artigo “Trabalho Infantil e Ideologia nas Falas de Mães de Crianças Trabalhadoras”, de Izabel Feitosa e Magda Dimenstein, parte de grupos focais de mulheres que são mães de crianças que estudam e trabalham para perceber que a inserção da ideologia do trabalho está imersa nas suas práticas discursivas e analisar como elas atuam como reprodutoras de uma vivência de trabalho para seus filhos. Para as autoras, quando se trata da criança pobre, o trabalho infantil apresenta-se como uma prática que vem sendo reforçada historicamente pela família.

Por fim, o texto de Carla Ribeiro e Denise Leda, “O significado do trabalho em tempos de reestruturação produtiva”, investiga o significado do trabalho na sociedade contemporânea, caracterizado pelo desemprego, pela precarização e pela desvalorização do fazer humano. Destacam o crescente esvaziamento do valor social e psicológico do trabalho e a tendência de mercantilização do mesmo.

Na seção de comunicação de pesquisa, é apresentado o trabalho de Leonardo Cruz da Silva sobre identidade masculina. Sob o curioso título “Playboy, a revista para ser lida com uma só mão: produção ou apropriação de sentido da identidade masculina?”, o autor parte de alguns questionamentos em torno da masculinidade para, através da análise de propagandas publicadas na Revista Playboy nos anos 80, pensar a produção de sentido de uma identidade masculina.

A seção Resenha apresenta, através da escrita de Maria da Graça Gonçalves, o livro de Fernando González-Rey, “Sujeito e Subjetividade: uma aproximação histórico-cultural”, livro em que o autor analisa o curso histórico da construção do conhecimento sobre sujeito e subjetividade, assumindo uma perspectiva dialética e de profundo interesse para as temáticas da Psicologia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAUMAN, Z.; PALLARES-BURKE, M. L. G. Entrevista. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, v. 16, n.1, p. 301-325, jun. 2004.

BRAUDEL. F. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992.

BURKE, A Escola dos Annales, 1929-1989. São Paulo: UNESP, 1991.

_____. História e Teoria Social. São Paulo: UNESP, 2002.

CARONE, I. A Psicologia tem paradigma? São Paulo: Casa do Psicólogo; FAPESP, 2003.

FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

JAPIASSU, H. Introdução à epistemologia da Psicologia. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

_____. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975a.

_____. Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

_____. As paixões da ciência: estudos de história das ciências. São Paulo: Letras & Letras, 1991.

_____. Introdução às ciências humanas: análise de epistemologia histórica. São Paulo: Letras & Letras, 1994.

KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978.

OLIVA, Alberto. Filosofia da ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SCHAFF, A. História e Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

 

1 Professoras e pesquisadoras do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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