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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.4 n.2 Rio de Janeiro dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Método dialético: uma construção possível na pesquisa em educação da infância?

 

Dialetic method: a possible construction for research into education in the childhood.

 

 

Ivone Garcia Barbosa*; Solange Martins Oliveira Magalhães**

Faculdade de Educação. Universidade Federal de Goiás

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho objetiva enunciar algumas reflexões pontuais no campo da pesquisa sobre as práticas educativas utilizadas na educação da infância, enfatizando questões pertinentes ao método de pesquisa. Toma, então, como objeto de sua análise, estudos e investigações já concluídos ou em andamento procurando apreender a constituição de possibilidades de orientação dialética. Têm-se em vista a construção de novos olhares sobre o processo investigativo, a partir dos quais seja possível redimensionar não somente as análises como os próprios objetos pesquisados. Considera-se que a reflexão metodológica é uma condição necessária para a (re)criação de paradigmas teórico-epistemológicos que possibilitem interpretar o dinamismo do movimento e das interconexões que compõem aqueles objetos. A superação da pesquisa assentada em processos fossilizados que não consegue apreender a inversão da realidade – estabelecida no processo de representação sobre as relações de produção, as relações sociais e o próprio conhecimento – apresenta-se como um grande desafio para que a educação da infância seja, cada vez mais, objeto de múltiplos olhares, configurando um trabalho em zonas fronteiriças do conhecimento. Tal perspectiva é uma exigência do próprio método dialético.

Palavras-chave: Educação da infância, Práticas educativas, Pesquisa, Método dialético.


ABSTRACT

The current work intends to enunciate some valuable reflections concerning researches into educational practices used in the education in the childhood, emphasizing research method issues. It takes ongoing or concluded studies and investigations as the object of analysis for new possibilities of dialect orientation. It looks for a renew in the investigative process to redefine not only the analysis, but also the subjects of research. It is considered that methodologic reflections are essential to re(create) theorical epistemological paradigms that make possible the understanding of the dinamic of movments and interconections that compose that object. The challenge is now to overcome researches which were set in fossilized process that can’t apprehend reverse reality – established in the process of representation over productionrelations, social relation and knowledge itself – and this is in order to bring multiple sights onto education in the childhood, and then comprise a work made in frontiers of knowledge. Such a perspective is a requirement of the dialect method itself.

Keywords: Education in the childhood, Educational practices, Research, Dialect method.


 

 

O debate sobre a qualidade educativa nas propostas de atendimento de crianças menores de sete anos tem se intensificado no Brasil, sobretudo após a década de 80. Além de ressoar na luta por reformas educacionais que assegurem a premissa da qualidade, o debate reflete e se expressa em novos aportes teóricos e metodológicos, tanto no campo das práticas pedagógicas como no da pesquisa.

É sobre o segundo campo que o presente trabalho pretende tratar, configurando algumas reflexões sobre as possibilidades de orientar nossas pesquisas sobre a infância e sua educação de uma perspectiva mais dialética. Nesse sentido, o grande desafio é a construção de novos olhares sobre o processo educativo e a infância, de modo a constituir categorias de análise que permitam compreender o movimento de constituição e de manifestação aparente dos processos individuais e coletivos, explicitando a totalidade e provisoriedade das relações e práticas sociais.

Evidenciar a contradição entre a aparência e a essência dos fenômenos e da realidade é princípio e condição essencial para superarmos a pesquisa que se assenta em processos fossilizados e que não consegue apreender a inversão da realidade que se estabelece no processo de representação sobre as relações de produção, as relações sociais e o próprio conhecimento.

Tomando como base leituras de Marx (1983; 1989) e de outros autores como Wallon (1975), Vygotsky (1998, 2000, 1996) e Moscovici (1961), entre outros, consideramos que o método dialético trata de explicar e não apenas descrever. A ciência, que está sempre em construção, não é uma simples réplica da realidade. Podemos afirmar que a explicação sobre as condições de existência e sobre os processos intrapsíquicos e culturais não deve ser reduzida a um princípio explicativo único. Ou seja, apesar de, ao longo da atitude metodológica, buscarmos algo comum nos objetos de pesquisa ou suas manifestações e determinantes, é preciso não reduzir as contradições e diferenças, ainda que para um certo “ajuste” ilusório de linguagem. A natureza dos fenômenos pode ser bem diferente, apesar das semelhanças em sua aparência. Ademais, no caso dos processos psíquicos, estes não podem ser relacionados apenas a um processo do próprio sujeito e, simultaneamente, só às condições de sua existência material. O enfoque que toma esses processos de uma perspectiva meramente individual caracteriza uma postura positivista da pesquisa.

Para Vygotsky (1998, p. 77),

qualquer abordagem fundamentalmente nova de um problema científico leva, inevitavelmente, a novos métodos de investigação e análise. A criação de novos métodos, adequados às novas maneiras de se colocar os problemas, requer muito mais do que uma simples modificação dos métodos previamente aceitos.

De fato, os fenômenos concretos são inesgotáveis, se considerarmos em separado cada um de seus traços. Por essa razão é que precisamos buscar aquilo que os convertem em objetos científicos e não apenas objetos de simples curiosidade comum. Isto é, não basta olhar para elementos que chamam nossa atenção de modo imediato, mas para o que realmente nos fará compreender as especificidades do objeto de investigação. É com esse intuito que em nossas pesquisas temos buscado alguns aspectos e características que situem a educação da infância no substrato sócio-cultural de cada época, compreendendo, então, sua historicidade, algumas leis e condições gerais do conhecimento e as exigências objetivas do campo da educação e, em especial, da educação infantil.

Ao constituir o olhar sobre a educação da infância referida às relações parentais, Por exemplo, temos resgatado teórica e empiricamente a produção sobre as condições históricas de transformação das relações familiares, seus reflexos nas expectativas, representações e ações dirigidas à educação das crianças e as formas como se manifestam as relações cotidianas. Para tanto, tomamos como foco principal o processo de socialização e a possível manifestação da violência doméstica contra a criança (MAGALHÃES; BARBOSA, 2003).

Os estudos mostram que os princípios e as práticas educativas diferem profundamente nas diferentes épocas e grupos. Na referida pesquisa, e em outras que estamos desenvolvendo, os dados permitem afirmar que essas práticas educativas e o processo de socialização vão sintetizar crenças, ideais, conceitos, valores e regras sócio-culturais, permitindo às crianças a estruturação da sua identidade e de sua individuação. Esse processo se vincula às formas como cada grupo define a criança.

As variações histórico-culturais das representações sobre a criança e a infância levam-nos a reconhecer a centralidade das dinâmicas de transformação social e das modificações pelas quais passa a própria criança. A socialização das crianças, a formação de sua auto-imagem, seu auto-conceito, são processos que se imbricam na complexidade das sociedades e dos grupos e dos diferentes locus educacionais em que aquelas estão inseridas.

Captar esse movimento sob uma perspectiva dialética tem envolvido  não apenas uma reflexão teórica, mas a busca por um método investigativo que nos aproxime da  complexa dinâmica dos fenômenos. Não são raras as vezes em que temos nos deparado com limitações das próprias pesquisadoras e dos instrumentos mediadores ao longo das investigações.

Assim, desenvolvemos uma pesquisa no período de 2000-2001 sobre as práticas docentes em instituições públicas de educação infantil e a forma como as professoras-pedagogas manifestam o pensamento sobre as práticas, apreendendo significados e sentidos constitutivos da identidade profissional (ALVES, 2002). Consideramos a contradição como categoria de análise, já que os significados não apenas representam identicamente os processos da atividade humana e as dinâmicas de sua realização cotidiana; eles também são constitutivos daqueles processos, podendo mesmo se apresentar como uma representação invertida da realidade. Observações nesse sentido foram apontadas por Marx (1983, 1989), bem como nos estudos de Badinter (1985) sobre o mito do amor materno, podendo-se de antemão concluir que tal inversão é colocada no plano da ideologia.

Outros aspectos mostraram-se relevantes no desenvolvimento da pesquisa: as modificações do processo de trabalho docente, as raízes e os efeitos da proletarização do ato de ensinar, bem como a questão de gênero e profissão. Consideramos a alienação como categoria fundamental na análise das informações apreendidas sobre algumas formas de constituição e manifestação nos significados e sentidos da docência, bem como possibilidades de superação, sem negar os limites impostos pela relação entre as concepções de trabalho docente e a forma capitalista de organização do trabalho em geral no Brasil. A discussão sobre a natureza do processo educativo e, mais especificamente, do trabalho docente e a identificação destes com um processo tipicamente capitalista, apesar de ainda apresentar algumas polêmicas, precisa ser por nós enfrentada.

O empenho investigativo sobre a docência na educação infantil considerou a importância dessa temática na atual conjuntura político-educacional brasileira, além, obviamente, dos estudos internacionais. A estreita relação entre a qualidade educativa e a formação geral e específica dos educadores de instituições de educação infantil vem sendo apresentada enfaticamente na literatura da área, indicando um vínculo direto entre a atuação docente e a implementação de um projeto pedagógico inovador, no qual se possam superar as propostas de caráter assistencialista, compensatório, recreacionista ou preparatório (antecipador) que marcaram a trajetória das instituições. Assim, foi essencial a interpretação da historicidade, buscando situar a educação infantil no próprio movimento social, de modo a compreendê-la não a partir de si mesma nem da consciência que as professoras têm dela, mas, como afirma Marx (1983), é preciso explicar essa consciência a partir das contradições da vida material. Recorreu-se, para tanto, ao inventário do recente panorama legal da educação infantil, em âmbito nacional e local, como uma das formas de manifestação desse campo de trabalho docente.

A pesquisa confirmou que a constituição da identidade profissional é um processo  fundamentalmente social. O contexto de atuação, os grupos nos quais se inserem os sujeitos, veiculam concepções e práticas portadoras de significados que vão se imbricando na construção dos sentidos pessoais. Assim, a identidade profissional é perpassada por um conjunto de idéias e concepções que delimitam a área de atuação do professor de educação infantil.

Por se tratar de um campo vinculado a um órgão público, percebemos que a regulamentação e as propostas oficiais para a educação infantil passam a se inserir como parte do contexto mais amplo no qual se realiza o trabalho docente e se configura a identidade da profissão. No contexto da política neoliberal assumida no Brasil, que estabelece a minimização dos investimentos públicos na garantia dos direitos proclamados e a privatização da educação, face à imprecisão de quais recursos e fontes de financiamentos destinam-se à educação infantil, observou-se que os argumentos contrários a designação de professores para a atuação na educação infantil acabam contribuindo para a permanência de profissionais leigos, com custo menor. O conjunto da investigação, no entanto, não possibilitou identificar, com precisão, a influência de elementos do projeto institucional, nem mesmo no que se refere às concepções das coordenações pedagógicas.

Nos diferentes posicionamentos, pudemos apreender uma hierarquização das atividades educativas e a constituição de relações de trabalhos conflituosas entre os agentes do processo. O parcelamento das tarefas, diretamente relacionado a essa hierarquia no trabalho, leva a uma perda do elo com os motivos – fins e objetivos – do projeto educativo e, conseqüentemente, do próprio trabalho docente.

Destacamos, por outro lado, a presença de um processo de naturalização da noção de infância e a apresentação da afetividade como elemento central das relações educativas e de trabalho. A profissionalização, no sentido de fundamentar e ampliar as práticas cotidianas estaria, portanto, vinculada a elementos de ordem pessoal. Desse prisma, as professoras alinham-se com as concepções de “mulher-mãe-educadora nata” que antagonizam com uma defesa de qualificação e profissionalização da educação infantil. Privilegiam atributos pessoais – carinho, paciência, amor, dedicação – como características suficientes para ser educadora de crianças pequenas. Concluindo, podemos afirmar que as concepções manifestadas pelas professoras acabam por naturalizar a docência que, segundo elas, é vista como vocação e dom natural. Não percebem, então, o seu caráter de atividade social ideologicamente condicionada, o que dificulta a discussão sobre mecanismos de transformação.

De modo paradoxal, as mesmas professoras apresentaram alguns indicativos de um posicionamento mais crítico como, por exemplo, a valorização do estudo e da formação reivindicada por elas para obtenção de uma qualificação específica para a educação infantil. Os dados identificaram que a constituição da docência e dos sentidos a ela atribuídos é um processo complexo, não linear, isto é, caracteriza-se como uma totalidade em movimento.

Apesar dos resultados obtidos na pesquisa mostrarem-se extremamente reveladores, destacamos a importância do debate sobre o exercício metodológico em andamento: as informações que foram utilizadas para serem transformadas em dados da pesquisa decorreram de várias observações e diálogos abertos entre pesquisadora e professoras, mas também, muitas vezes, das pontuações feitas pelas professoras nos questionários que haviam sido propostos. Isso apresentou-se como um entrave, na medida em que, para se compreenderem os mecanismos sociais e a forma como esses se articulam nas representações e significados atribuídos pelos indivíduos à docência e ao trabalho, assim como em outras categorias, seria necessário a junção de outros instrumentos, inclusive a observação mais constante e sistemática no processo de atuação cotidiana dos sujeitos da pesquisa.

Essa análise sobre o método também se faz importante na pesquisa sobre as práticas educativas no contexto familiar, que vem sendo desenvolvida desde o ano de 2001. Nesse caso, o objeto abrange relações extremamente importantes e complexas, exigindo uma perspectiva dialógica por parte do pesquisador, na tentativa de identificar e traçar argumentos explicativos sobre os fenômenos cotidianos na família e, ao mesmo tempo, a tradução desses no aspecto do desenvolvimento da criança, obstaculizado pela violência expressa de diferentes formas e intensidades, mas que nem sempre é um fenômeno aparente. O que é violência, afinal? Como ela pode ser identificada nas relações concretas que se estabelecem e que nem sempre se condicionam e se identificam com aquilo que está posto na legislação? Até que ponto se pode compreender a violência, processo muitas vezes velado, que exige apreensão de nuances específicas e pontuais? Em que medida seria possível, no processo de análise, evidenciar as relações com a história e a cultura?

Os procedimentos de investigação dessa problemática têm abrangido entrevistas com pais-professores de classe média, de diferentes gerações, com idades variando entre 18 e 70 anos, que criaram os filhos em diferentes épocas. Além disso, a partir de estudo-piloto, foram construídos questionários com o objetivo de identificar as práticas educativas utilizadas pelos pais-professores no processo de socialização das crianças e as formas pelas quais acreditam “corrigir” seus filhos, os valores priorizados na formação do caráter da criança e suas posições quanto à idade ou época do desenvolvimento infantil para o início da educação. Os resultados obtidos serviram de referência para a elaboração de roteiro de entrevistas aprofundadas sobre o objeto de estudo.

Os dados demonstraram uma modificação no papel disciplinador, antes assumido pelo pai, enquanto detentor de um poder nas relações parentais. Agora, são as mães que demonstram uma postura mais disciplinadora e rígida, investindo em atitudes de castigos físicos para correção de comportamentos que consideram inadequados. Segundo seus depoimentos, quando o diálogo não consegue persuadir a criança, acabam batendo, como forma alternativa de educar. Contraditoriamente, isso é explicado por elas como uma atitude positiva e de afeto, isto é, batem para mantê-las “no caminho do bem”. Por intermédio das entrevistas, tem sido possível captar outras nuances da violência, os questionários não se mostraram suficientes para perceber e explicar o fenômeno. Nas entrevistas, os pais-professores se envolvem em temáticas que resgatam a memória da própria infância, quando muitos deles vivenciaram atos de violência de seus pais. Porém, acreditam que a intensidade do ato que cometem com seus filhos é menor e, portanto, não representa um ato violento, mas sim uma forma necessária de impor limites.

Na pesquisa a que ora nos referimos, é possível afirmar que o aporte teórico que vem sendo utilizado não tem permitido classificar, sem que isso tivesse um tom de juízo de valores dos próprios pesquisadores e da esfera jurídica, as atitudes dos pais em relação às crianças. Obviamente, aqui não podemos defender, de uma perspectiva dialética, uma neutralidade do pesquisador e dos próprios instrumentos. Porém, para fugir da estereotipia, pensamos ser ainda necessário elaborar novos instrumentos e formas de aproximação dos sujeitos da pesquisa, a fim de que estes possam se posicionar de modo consciente e articulado, exprimir e até expandir os significados e sentidos pessoais sobre suas práticas educativas, inclusive sobre a suposta violência. Trata-se, pois, de assumir uma postura crítica frente à violência e, desse modo, objetivar projetos de intervenção provocadores e constituintes do processo de pesquisa. Empreendemos esforços no sentido de enfrentar um dos desafios que se coloca a partir da premissa de que o pesquisador, como intelectual, deve não somente explicar a realidade mas também indicar caminhos e pistas para a sua transformação, inserindo-se ativamente na vida prática como construtor e organizador, indicando possíveis caminhos para a transformação da realidade (GRAMSCI, 2001). 

Investigando algumas concepções de professores sobre o papel da socialização e o modo como se posicionam frente ao processo de formação de conceitos e valores pelos seus alunos, cinqüenta (50) professoras de ensino fundamental, escolas particulares, nível sócio-econômico médio, responderam a um questionário com perguntas abertas sobre os valores priorizados em suas práticas educativas cotidianas. A segunda etapa da pesquisa, em desenvolvimento, abrange professores da rede pública, pais e alunos. Uma análise qualitativa permitiu identificar os valores priorizados conforme ordem de importância atribuída pelos sujeitos: amizade; respeito ao próximo; amor; verdade; ação-correta. As mães-professoras ainda advogam o diálogo, o bom exemplo, a paciência e o equilíbrio em suas ações; outras citam a religiosidade. Contraditoriamente, os dados revelam que as práticas educativas tendem a manifestar o exercício da autoridade através de uma postura disciplinadora, o que pode significar uma ação no campo ideológico, desfavorável à tomada de consciência, à visão crítica e à constituição de “quase-necessidades” (VYGOTSKY, 1998). Interpretar dados dessa natureza não é uma tarefa simples, já que, paradoxalmente, a socialização pode significar adoção de posturas domesticadoras-disicplinadoras e, também, abranger aspectos ativos e construtivos, motivando a criança a agir criativa e criticamente.

Outra pesquisa (PINHEIRO, 2000) também identificou uma postura disciplinadora nas práticas educativas de uma pré-escola pública. Como estratégia de levantamento de informações sobre as crianças e os procedimentos pedagógicos em sala de aula utilizou-se da observação participativa. Vários instrumentos foram construídos e utilizados para facilitar a interação com as crianças, bem como possibilitar-lhes a manifestação sobre a auto-percepção e a concepção sobre as funções da pré-escola. Questionários de identificação, desenhos, histórias, brincadeiras estruturadas e livres, entrevistas individuais e em grupo, foram utilizados para compreender as representações do corpo da criança na pré-escola.

Ao final das investigações, uma frase anunciada por uma das crianças denunciou sinteticamente a totalidade do processo de transformação da visão da criança sobre si mesma e o papel da escola: a criança se considerava bom aluno porque ficava “quietinho e sentado, obedecendo a professora”. É interessante observar que a afirmativa reproduziu literalmente uma frase de uma das educadoras no início da pesquisa.

Como é possível notar, nossa tentativa metodológica é a de iniciar pelo real e pelo concreto, considerado como “síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da diversidade” (MARX, 1983, p. 218). Isso não significa, no entanto, que se encontrem separados como antinomias o concreto e o abstrato, já que, como bem mostra Kopnin  (1978), o sensorial e o racional estão presentes em todo o processo de conhecimento e em todas as formas e etapas do desenvolvimento. Esta “racionalidade” ou teorização aparece através dos discursos, das proposições, e, em última instância, no interior das relações e necessidades sociais cotidianas, a partir do que o homem vai construindo sua consciência.

Importa lembrarmos nesse momento que o pensamento teórico tem suas particularidades, constituindo-se a partir de idealizações de aspectos fundamentais da prática-objetiva. Ao refletir essa prática, as experiências sensório-objetivas vão cada vez mais incorporando um caráter cognoscitivo, permitindo daí certas interações “mentais”, interiorizadas com os próprios objetos e situações e, assim, determinando-lhes novas formas de movimento. Podemos afirmar, utilizando análises de Rozov (apud DAVYDOV, 1982, p. 302), que a abstração científica consiste em elucidar a independência do estado ou situação de qualquer objeto considerado com respeito a certos fatores. Como resultado da abstração obtém-se um novo objeto idealizado, que pode ser conhecido sob novas condições, que não eram permitidas muitas vezes com o objeto inicial.

Portanto, no processo de assimilação do concreto e sua reprodução como algo espiritualmente concreto, supõe-se uma ascensão do abstrato ao concreto. Ou seja, se inicialmente o real pode aparecer ao homem como um sensorial “dado”, no processo de conhecimento, ocorre, devido à atividade humana, uma transformação da visão sobre o objeto. Desse modo, o pensamento teórico engendra em forma de conceitos e representações, o sistema de interconexões, mediações e determinações fundamentais do fenômeno concreto, podendo revelar sua essência.

Do prisma dialético, a abstração é vista como um processo no qual o interesse recai naquilo que está por trás do aparente, buscando-se descobrir as propriedades, os aspectos e indícios, as relações que constituem a essência do objeto concreto. A tarefa da abstração não é separar uns dos outros, os indícios percebidos, mas através deles descobrir novos aspectos do objeto, que traduzam as relações essenciais. Essa reconstrução teórica do concreto pode ocorrer através de conceitos, que, como resgatou Vygotsky (2000), não é algo morto, apenas uma noção geral ou abstrata, posto que o conceito incorpora uma atividade objetiva do pensamento.

Seguindo essas premissas e preocupadas em resgatar alguns elementos presentes em pesquisas sobre a educação da infância, destacamos o trabalho de Silva (2002) sobre aquela educação entre os trabalhadores rurais sem terra. Investigando o significado da infância e de sua educação no Acampamento Oziel, em Goiânia, a pesquisadora buscou resgatar a categoria infância como algo específico da vida social. Inspirando-se em estudos de Martins (1993),  Faria (1999), entre outros, ouviu adultos e crianças do acampamento, considerando-os como sujeitos históricos.

Martins (1993) realiza uma importante análise sobre a exclusão social, a pobreza, a falta de direitos, a violência e exploração de crianças brasileiras, em várias regiões do país. Resgatando a voz daqueles que, em geral, aparecem como população silenciosa nas investigações, os textos resultantes das pesquisas, organizadas pelo autor, acabam por nos apresentar lugares diversos da infância e as proposições educativas que as contemplam.

Na investigação com os trabalhadores rurais sem terra, a compreensão do processo cotidiano de elaboração e implementação de uma educação das crianças só poderia acontecer caso a dinamicidade das relações e o envolvimento com o próprio movimento pudessem ser desvelados. Para isso, foi necessário superar o conceito de neutralidade científica e política do pesquisador, sendo criadas alternativas de aproximação e registro das crianças e adultos participantes da pesquisa. Presente no campo de modo sistemático e comprometida com o Movimento dos Sem Terra, a pesquisadora participou de inúmeras atividades, inclusive de brincadeiras do grupo de crianças, de seus afazeres domésticos cotidianos, dos momentos de estudo na escola itinerante. Ainda como havia feito com as crianças, entrevistou adultos nos mais diversos espaços do acampamento, ora em grupo, ora individualmente. As interações com os sujeitos foram em muitos momentos estimuladas pelos próprios acampados, que solicitaram em alguns casos participar das entrevistas e atividades, bem como  momentos de registro em vídeo e áudio. Este estudo de natureza etnográfica pôde desvelar alguns conceitos sobre as atividades humanas que são consideradas pelos sujeitos como essenciais no processo educativo da infância da classe trabalhadora: estudar, brincar e trabalhar.

Importa observar que na análise de dados as três categorias aparecem como centrais tanto para os adultos quanto para as crianças. O interessante aqui seria podermos interseccionar todos os dados, de modo a compreender melhor as origens dessa semelhança. Certamente, apesar da aparência de mera socialização “adaptativa”, isto é, reprodutora de valores e de conhecimentos, acreditamos que a dialeticidade posta na realidade pode nos indicar também a construção de questionamento e de expectativa por parte das crianças sobre o universo infantil diante das dificuldades da existência. Esta possibilidade de autonomia de pensamento, porém, ainda que sofra o “contágio” de idéias pré-concebidas e disseminadas pelo grupo social como um todo, deve ser também compreendida na sua especificidade, já que as práticas educativas no acampamento e nas cidades de características rurais, de onde a maioria se origina, permitem que as crianças participem de diferentes atividades com adultos e de movimentos próprios das crianças, como o “Movimento dos Sem-Terrinha”.

Nossas reflexões sobre o campo da pesquisa em educação da infância abrangem alguns aspectos teórico e metodológicos que consideramos pertinentes para fazer avançar e superar a lógica mecanicista e positivista ainda presente em pesquisas educacionais. Demonstram que é necessário romper certas regras e (re)criar nossos métodos investigativos e de exposição, a fim de inaugurar paradigmas e procedimentos capazes de promover a aproximação dialética com o movimento do real em construção. Significa, desse modo, a busca por uma análise qualitativa sobre os processos educacionais e suas relações com os diferentes lugares da infância histórica e culturalmente constituídos. Não se pretende com esse estudo negar toda a produção de nossas pesquisas até o presente momento; ao contrário, reconhecemos que essas são suporte significativo para a constituição do campo da educação infantil. Como afirmou Schaff (1995), é preciso assumir o conhecimento como um processo de construção “verdades parciais”, que tanto pode negar quanto incorporar o “velho” e, quando necessário, reconhecer seu processo de caduquice.

Acreditamos que a educação da infância deve ser, cada vez mais, objeto de investigação de múltiplos olhares, isto é, contando com a análise de profissionais com formação em diferentes áreas acadêmicas, que sejam capazes de trabalhar em zonas de fronteiras do conhecimento, conforme exige o método dialético. 

 

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Endereço para correspondência
E-mail: garciasoares@cultura.com.br / smom@terra.com.br

Recebido em: 20/07/04
Aceito para publicação em: 15/12/04

 

 

NOTAS

* Doutora em Educação pela PUC; Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UFG; professora da Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás.
** Psicóloga, Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação/ UFG; Mestre em Educação pela UFG; professora da Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás.

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