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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.4 n.2 Rio de Janeiro dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Trabalho infantil e ideologia nas falas de mães de crianças trabalhadoras

 

Infantile work and ideology in speak of mothers of children workers

 

 

Izabel Christina do N. FeitosaI, *; Magda DimensteinII, **

I Universidade Federal do Rio Grande do Norte
II Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho infantil é proibido por lei, mas estudos mostram o crescente número de crianças trabalhando no mundo. Acreditamos que os discursos acerca do trabalho infantil vêm sendo historicamente reproduzidos pelas instituições socializadoras da criança como a família. Esse estudo objetiva discutir o que mães pensam sobre o trabalho de seus filhos. Realizamos grupos focais com mães de crianças que estudam e trabalham no cultivo das hortas em Gramorezinho (Natal-RN). Percebemos o quanto a ideologia do trabalho está imersa nas práticas discursivas dos sujeitos. As mães possuem uma história de uma infância de trabalho e reproduzem uma vivência de trabalho para seus filhos. O trabalho aparece como uma alternativa importante para a não permanência das crianças nas ruas. Percebemos, portanto, que quando se trata da criança pobre, o trabalho infantil apresenta-se como uma prática que vem sendo reforçada historicamente pela família.

Palavras-chave: Trabalho infantil, Infância, Família, Ideologia.


ABSTRACT

Child labor is prohibited by law, but studies reveal a growing number of children working in the world. We found that the discussion about child labor has been historically reproduced by children´s socializing institutions, like the family. This study has as its objective to discuss what mothers think about the work of their children. We created focused groups with the mothers whose children are students and work in the cultivation of vegetables in Gramorezinho (Natal, RN). We perceived how much work ideology is immersed in the discursive practices of the participants. The mothers themselves come from a background of child labor and reproduce the experience of work in their own children. Work appears as an important alternative for keeping the children off the streets. We perceived, therefore, that when one refers to  poor children,  child labor presents itself as a practice that has been reinforced historically by the family. 

Keywords: Child labor, Children, Family, Ideology.


 

 

INTRODUÇÃO

Atualmente, o trabalho infantil tem sido palco de grandes discussões nos mais diversos setores da sociedade. Pretendemos neste artigo tratar dessa temática, tendo como base algumas reflexões surgidas a partir das falas das mães de crianças trabalhadoras. Essas reflexões são frutos da dissertação de Mestrado elaborada por Feitosa (2003) sobre o Trabalho infantil na agricultura: sentidos produzidos pelas mães e pelos professores.

Um primeiro aspecto importante a ser considerado é a definição de trabalho infantil que orienta nossa abordagem. Utilizamos a definição elaborada por Fukui et al (1985) e pela Organização Internacional do Trabalho - OIT. Trabalho infantil refere-se ao conjunto de atividades que pessoas menores de 15 anos realizam, estejam ou não recebendo remuneração pelo mesmo, segundo a convenção 138/OIT, e que possibilitam a sua sobrevivência e a de outros. Entretanto, não são todas as formas de trabalhos realizados que se quer abolir. Há situações em que a realização de certas atividades é legítima, pois além de estarem adequadas à maturidade física e emocional, à idade, possibilita a socialização e a tomada de responsabilidade por crianças e adolescentes. Segundo a convenção 182/OIT, referida por Silva, Neves Júnior e Antunes (2002), busca-se combater

(...) o trabalho realizado por pessoas abaixo da idade mínima especificada pela legislação nacional (de acordo com as normas internacionais) para o tipo de tarefas a serem desenvolvidas e que, portanto, provavelmente prejudique a educação ou o desenvolvimento pleno da criança ou adolescente; o trabalho perigoso, que ponha em risco bem estar físico, mental ou moral da criança; e as formas inquestionavelmente piores de trabalho infantil, ou seja, escravidão, prostituição, conflitos armados, pornografia e outras atividades ilícitas (p. 21).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) proíbem qualquer trabalho aos menores de 16 anos e, atualmente, existem políticas e programas de combate e erradicação do trabalho infantil, especialmente dessas formas mais exploradas que implicam em sérios prejuízos, sejam de saúde e/ou educacionais. O PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) é uma dessas iniciativas, juntamente com os programas de renda mínima, geração de emprego e renda, complementação da renda familiar, dentre outros.

Todavia, Campos e Alverga constatam que

toda a proibição e evidência das conseqüências nefastas do trabalho precoce não têm sido suficientes para fazer estancar o crescimento dos índices das novas vítimas flagradas no trabalho doméstico, na agricultura, nas atividades terceirizadas e domiciliares etc. (2001, p. 228).

Os autores apontam para as renovadas formas de inserção de crianças no trabalho e o crescente número de crianças trabalhando no setor produtivo e de famílias, evidenciando o apoio familiar à inserção precoce no trabalho. Ou seja, apesar de todas as ações de sensibilização e fiscalização em torno da erradicação do trabalho infantil, ainda é grande o número de crianças e adolescentes que começam a trabalhar precocemente.

De acordo com Silva et al (2002), as estimativas da OIT no ano de 2000 eram de que haveria no mundo mais de 351 milhões de crianças entre 05 e 17 anos economicamente ativas, das quais 245 milhões efetivamente trabalhavam, sendo que, dessas, 178 milhões estavam inseridas na categoria piores formas de trabalho e 170 milhões realizavam trabalhos perigosos. Apesar da maior parte dessas crianças estarem concentradas em países pobres da Ásia e Pacífico (60%), África (23%) e América Latina e Caribe (8%), o fenômeno também está presente em países desenvolvidos. A maior parte dessas crianças, cerca de 70%, segundo os autores acima citados, trabalha em atividades rurais e extrativistas, em plantações familiares, com uso de agrotóxicos sem utilização de equipamentos adequados e em grandes jornadas de trabalho.

No Brasil, em 2001, existiam 32,8 milhões de trabalhadores entre 05 e 14 anos de idade, sendo que 49,2% tinham entre 5 e 9 anos e 50,8% entre 10 e 14 anos. Desse total, 39,4% viviam na região sudeste e 32,6% na região nordeste. É importante ressaltar que as atividades desenvolvidas por essa população se diferenciam dentro dos setores rurais com predomínio da agricultura, e urbanos, com ênfase na indústria e comércio, bem como em relação ao sexo: 65% de meninos e 35% de meninas trabalhando, tanto no campo quanto na cidade (IBGE, 2002).

O relatório do Ministério do Trabalho (2000), baseado nos dados do IBGE de 1999, aponta que dentre os estados nordestinos, a Bahia responde pelo maior número das ocupações de pessoas de 05 a 15 anos (27,52%), e o Rio Grande do Norte pelo menor com 2,48%. Nesse estado, a agropecuária é o tipo de ocupação que mais se destaca, corroborando dados nacionais e mundiais, seguidos do turismo, da produção de farinha, sal e da pesca. Acrescenta-se o fato de que, nacionalmente, a grande maioria desses trabalhadores (74,27%) não é remunerada e tem longa jornada de trabalho, fato que também se aplica à realidade local (LIMA, 2001).

 Nota-se, dessa forma, que o trabalho agrícola abrange grande parte da mão de obra infantil. Conforme Filho e Francis (1997), o trabalho infantil é visto como parte integrante do trabalho na agricultura familiar. Estes autores utilizam uma definição de agricultura familiar que destaca dois aspectos: o uso do trabalho e a tomada de decisões. Portanto, é considerada agricultura familiar unidades trabalhadas pelos membros de uma família, os quais tomam as decisões sobre produção, consumo, comercialização e investimentos. Estas unidades podem estar organizadas sob a forma de propriedades e/ou sob a forma de arrendamento, produzindo bens de subsistência e/ou para o mercado.

Essa definição de agricultura familiar, na qual está incorporado o trabalho infantil, caracteriza a nossa população investigada em Gramorezinho, Zona Norte da cidade do Natal/RN. As mães que participaram da nossa investigação são as proprietárias das unidades de trabalho e produzem hortaliças para subsistência e mercado. Estas mulheres são as que iniciam suas crianças no processo de produção dessas hortaliças. Levam seus filhos para as hortas desde bebês, uma vez que não têm com quem deixá-los em casa, de forma que as crianças crescem em meio ao trabalho de suas mães. As atividades se iniciam junto às brincadeiras, o que começa por volta de 4 a 7 anos de idade. Depois, já com 8 ou 9 anos, as atividades vão tomando o caráter de obrigatoriedade para as crianças.

As crianças participam de quase todo o processo de trabalho das horticulturas realizado pelos adultos. A única atividade que elas não realizam é a aplicação do agrotóxico, pois a população investigada atribui aos adultos a responsabilidade dessa tarefa, por sua alta periculosidade. As atividades realizadas pelas crianças consistem em adubar a terra, limpar a leira, fazer a rega (aguação) das hortaliças, arrancar e amarrar os molhos (coentro, alface, etc.). A rega é uma atividade realizada manualmente com mangueiras ligadas a bombas elétricas. Em média, possuem uma carga de trabalho que vai de 3 a 6 horas por dia e não são remuneradas.

Além do trabalho, essas crianças estudam na escola local, cujo ensino é da educação infantil ao 2º ciclo. Dividem o tempo entre a escola e o trabalho, sendo este realizado em horários que não coincidem com o da escola. Vale salientar que essas crianças estão inseridas no Programa Bolsa Escola, um programa de renda mínima que busca eliminar o trabalho infantil.  É importante ressaltar que o programa ajudou a diminuir as faltas devidas ao trabalho, o que ocorria principalmente nas sextas-feiras, quando as famílias se preparavam para vender as hortaliças nas feiras de final de semana. No entanto, não eliminou a existência do trabalho infantil.

Algumas dessas crianças, no final de semana, trabalham em hortas de terceiros, realizando as mesmas atividades anteriormente descritas. Recebem uma remuneração variando entre 10 a 20 reais por uma jornada que pode variar de 4 a 7 horas de trabalho. Para as mães, essa é uma atividade importante para os filhos, pois, além de ser remunerada, ajuda a ocupar o tempo ocioso de suas crianças.

Em relação à situação encontrada em Gramorezinho, algumas questões nortearam nossa investigação: o que faz com que tais famílias, mesmo tendo suas crianças inscritas em programas de atendimento, continue mantendo o uso da mão-de-obra infantil, ainda que tal prática seja proibida e impeditiva de recebimento de complementação de renda?

Quando se investiga na literatura do campo as determinações para a ocorrência do trabalho infantil, a pobreza, geralmente, se apresenta como a principal causa do fenômeno. Campos (2001), na sua tese intitulada “Pobreza e Trabalho Infantil sob o Capitalismo”, conduz sua explicação para o mecanismo intrínseco ao capitalismo, o qual gera pobreza e cria as condições para a reprodução do fenômeno da inserção precoce de crianças no trabalho. Portanto, para o autor, a mão-de-obra infantil é um fenômeno decorrente da pobreza, tendo como seu gerador o modo de produção capitalista.

Não negligenciamos o aspecto econômico, pois reconhecemos que são famílias em situação de pobreza, imersas no modo de produção capitalista, cujo trabalho das crianças se apresenta como algo necessário. Entretanto, embora inseridos nesse contexto, que constrói e alimenta as condições para a reprodução do trabalho infantil, precisamos considerar que nem todas as crianças pertencentes ao universo da pobreza estão submetidas ao mundo do trabalho. Convivemos com crianças, por exemplo, que se tornam pedintes ou criminosas.

Para aprofundar nossa reflexão sobre o fenômeno, fomos para além do aspecto econômico e pensamos em outros aspectos que pudessem estar presentes na manutenção da inserção precoce das crianças no mundo do trabalho. Supomos que os discursos e práticas produzidos no Brasil, no final do século XIX, em relação ao trabalho, continuam arraigados nas instituições responsáveis pela socialização das crianças trabalhadoras como a família e a escola.

Nesse trabalho, focamos a família, representada pelas mães que participaram do nosso estudo. Essa representação se dá pelo único fato de que foram elas que responderam ao convite feito pela pesquisadora para a discussão da temática. Nenhum pai ou outro familiar se prontificou a isso, indicando o lugar de destaque ocupado por essas mulheres no cuidado e educação da prole. Nosso objetivo, portanto, consistiu em investigar o que as mães das crianças trabalhadoras pensam acerca do trabalho infantil, tentando articular as falas dos sujeitos com a noção de ideologia.

É importante indicar que partimos da idéia de que a família é uma instituição, um aparelho da cultura. Este termo é utilizado por Souza Filho (1995), ao fazer uma revisão do que Althusser chamou de aparelhos ideológicos do Estado - família, escola e religião. O autor considera esses aparelhos, não do Estado, mas da cultura, constituindo “uma malha de espaços de socialização em cujo interior a ideologia circula, atua” (p. 55; grifos do autor). Nesse sentido, entendemos que as falas (práticas discursivas) das mães são polissêmicas, atravessadas por várias vozes, articulando diferentes tempos: o histórico, dos conteúdos culturais e do imaginário social onde estão inseridas; o tempo vivido, das vozes “situadas” na história pessoal de cada uma e o tempo curto da interação face a face com o pesquisador, onde esses tempos de mesclam (SPINK; MEDRADO, 2000).

Assim, optamos por uma vertente qualitativa em pesquisa e adotamos a perspectiva construcionista dos fenômenos. De acordo com Spink e Menegon (op.cit), nessa perspectiva a relação sujeito-objeto é ressignificada de modo que tanto o sujeito quanto o objeto são construções sócio-históricas e colaboradores na produção do conhecimento. A pesquisa é vista como uma prática social e nela proporcionamos a visibilidade dos procedimentos de coleta e análise dos dados.

 

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Sujeitos da pesquisa: mães das crianças que trabalham no cultivo de hortas em Gramorezinho, Zona Norte de Natal/RN. Constituíram nossos sujeitos, 08 mulheres com idade entre 27 e 47 anos, todas são casadas no civil e uma delas é viúva. Possuem, em média, 04 filhos. Apenas uma tem 02 filhos. São mulheres que cuidam do lar, dos filhos e da horta.

Trabalho de campo: iniciamos o trabalho de campo através de contatos com a escola local. Realizamos um levantamento inicial do número de crianças que ali estudavam e trabalhavam nas hortas. Registramos 50 crianças: 29 meninos e 21 meninas, cuja faixa etária variava de 05 a 11 anos. Em seguida, procuramos as famílias dessas crianças. Algumas famílias não confirmaram o trabalho das crianças, que se identificaram na escola como ajudantes ou trabalhadoras. Então, de 50 crianças, ficaram 35 (24 meninos e 11 meninas, com idades variam entre 5 a 11 anos), cujos pais reconheceram o seu trabalho ou ajuda. Na seqüência, nos dirigimos a essas famílias e fizemos um convite para participarem de alguns encontros pra discutir sobre o trabalho das crianças. Somente 08 mães responderam ao convite e foi com elas que conduzimos a pesquisa. Somando suas crianças, temos um total de 19. São 14 meninos e meninas, cujas idades variam entre 8 e 11 anos. Essa diferença entre meninos e meninas se dá somente pelo fato dessas famílias possuírem um número maior de filhos do sexo masculino.

Instrumento de pesquisa: utilizamos o grupo focal, o qual foi utilizado para que, mediante a circulação dos discursos dos sujeitos, pudéssemos identificar as práticas discursivas. A experiência de Judith Green é citada por Menegon (2000) para falar da pertinência desse instrumento. Para Judith, o grupo focal apresenta “uma situação mais próxima dos contextos interacionais do dia-a-dia”, favorecendo “uma interanimação dialógica povoada por um contingente mais rico de vozes, em que a negociação de versões e posicionamentos é mais viável” (p. 223). 

Em relação à condução dos grupos, seguimos algumas orientações para um melhor aproveitamento das sessões. Minayo (1999) cita Schrimshaw, para o qual o pesquisador introduz o tema e mantém acesa a discussão no grupo; enfatiza para o grupo que não há respostas certas nem erradas; encoraja a palavra de cada um; busca as “deixas” de continuidade da própria discussão e fala dos participantes; aprofunda respostas e comentários considerados relevantes pelo grupo ou pelo pesquisador e observa as comunicações não-verbais e o ritmo próprio dos participantes. Rizzini et al (1999), ao tratar da direção das sessões para que os temas e os debates sejam aprofundados, lembra que cabe ao pesquisador tentar garantir a manutenção da discussão em torno do assunto original e evitar que alguma pessoa domine a discussão. Sugere, ainda, que seja ressaltada para cada pessoa a importância de sua contribuição em participar das discussões.

O grupo focal foi composto pelas 08 mães e, durante o período de dois meses, realizamos 05 encontros, cada um com duração de uma hora, no salão paroquial da igreja local. Este instrumento foi escolhido porque se buscava proporcionar uma maior circulação da palavra entre as mães, dando uma abertura para que elas compartilhassem e refletissem sobre suas experiências. Além disso, esse espaço coletivo de trocas poderia possibilitar a emergência de discursos ideológicos, bem como a recriação de sentidos e conseqüentemente do cotidiano. As sessões dos grupos foram gravadas com o consentimento de todas e posteriormente transcritas para a análise das práticas discursivas. Utilizamos, ainda, um outro instrumento, o diário de campo, que consiste, de acordo com Minayo (1999), em um caderno em que constam as falas, as informações que não sejam do registro formal, ou seja, são as conversas informais que acontecem no contexto da pesquisa.

Análise das práticas discursivas: apoiamo-nos na abordagem teórico-metodológica da produção de sentidos no cotidiano, segundo a qual o sentido é uma construção social, um empreendimento interativo, datado historicamente e localizado culturalmente (SPINK; MEDRADO, 2000).

Os homens, nas relações sociais cotidianas, produzem discursos para dar sentido à realidade que os cercam e é nesse processo que os discursos ideológicos se apresentam. As práticas discursivas se apresentam como eminentemente culturais, sendo, portanto, o veículo sobre o qual a ideologia se ancora. O alvo da nossa investigação consistiu na produção de sentidos a partir das práticas discursivas, articulando-as à noção de ideologia, enriquecendo assim a nossa análise. Interessou-nos, sobretudo, identificar nas falas dos nossos sujeitos os momentos em que se “materializava” a ideologia acerca do trabalho infantil.

Quanto ao procedimento de analise do material de pesquisa, iniciamos com uma imersão nas falas produzidas pelos sujeitos nas discussões de grupos, procurando deixar aflorar os sentidos, sem prender os dados em categorias, classificações ou tematizações definidas a priori. Fizemos um confronto possível entre sentidos construídos no processo de pesquisa, de interpretação e aqueles referentes à noção de ideologia. Desse confronto, analisamos o nosso material. A seguir, apresentaremos as nossas reflexões.

 

O TRABALHO INFANTIL E A IDEOLOGIA

O conceito de ideologia que utilizamos está fundamentado nas reflexões de Souza Filho (1995). Enquanto a concepção tradicional restringe a análise da ideologia ao campo da luta de classes, este autor a lança num campo de discussão mais amplo, ao entender por dominação a submissão do indivíduo a toda Ordem Social. Essa dominação não é exclusivamente a de classe ou de Estado, mas ela se alarga como submissão à cultura, padrões, convenções, etc.

Conforme Souza Filho (1995), a ideologia se inscreve no sujeito a partir dos modos de operar da linguagem e da cultura, que, ao ocultarem o caráter de convenção humana e social, tornam invisível a dominação. Se por um lado a linguagem e a cultura são condições para a existência humana, por outro, seus modos de operar fazem com que a realidade social seja vivida como algo natural e não como algo construído pela ação dos homens, impedindo que eles se dêem conta do processo sócio-histórico resultado das práticas sociais humanas.

Para compreender o lugar da ideologia na cultura, torna-se importante remetermo-nos ao simbólico e ao imaginário, pois, pela ação deles, o mundo social é dotado de sentido. Eles estão na raiz da ideologia, construindo, em cada sociedade e época histórica, explicações para que os homens se situem como sujeitos sociais na realidade que os cerca.

Conforme Castoriadis (1982), “tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele” (p.142). Este autor em muito contribui para a nossa reflexão na esfera do imaginário e do simbólico. O sistema simbólico consiste em ligar símbolos (significantes) a significados (representações, significações). O simbólico está numa estreita relação com o imaginário, pois o símbolo possui um componente imaginário e este, por sua vez, para passar de imagem para outra existência, deve utilizar-se do simbólico. O que ocorre é que, se por um lado, há uma função simbólica no imaginário, por outro, o simbolismo pressupõe a capacidade imaginária.

O simbólico e o imaginário estão presentes no campo dos discursos que a sociedade constrói sobre si mesma e a ideologia se constitui nesse campo, incutindo valores, normas etc, de modo que os sujeitos não desobedeçam, mas aceitem a Ordem Social estabelecida. A ideologia, portanto, vai prover explicações para que os sujeitos se situem numa determinada Ordem Social, justificando-a e fornecendo os fundamentos da existência dessa Ordem. A ideologia serve a legitimação da Ordem Social, e, por isso, é o discurso da dominação. Essa dominação é entendida como sujeição do indivíduo à cultura, enquanto engendrada de sistemas sociais que aparecem como obras da natureza divina ou do acaso. Assim, a ideologia, como um conjunto de representações/significações, oculta a natureza sócio-histórica da realidade, tornando invisível à dominação.

Nosso interesse recai sobre as significações simbólicas e imaginárias acerca do trabalho infantil. Enfocamos, sobretudo, os discursos construídos sócio-historicamente na nossa sociedade acerca deste tema, buscando perceber o que há de ideológico nesses discursos, como essa modalidade de trabalho tem sido justificada e explicada, fornecendo os fundamentos para a manutenção da sua prática.

Vejamos o momento em que se engendra, na sociedade burguesa, um discurso que encaminhará a massa dos miseráveis com suas crianças ao mundo do trabalho. Foucault (1972) aponta para o século XVII, a idade clássica, momento em que surge “uma nova sensibilidade à miséria [...] uma nova ética do trabalho” (p. 55). Havia o interesse em manter a ordem geral e é posto no miserável, ao mesmo tempo, um efeito da desordem e um obstáculo à ordem. Segundo este autor, a miséria, antes considerada mais num sentido místico, de uma glorificação da dor e de uma salvação comum à pobreza, passa a ser encerrada numa culpabilidade, numa certa relação entre a ordem e a desordem. Essa nova sensibilidade, não mais religiosa, é encarada no horizonte moral. Tem-se aqui a distinção entre os bons e maus pobres. Os primeiros são aqueles que fazem parte da pobreza submissa e conforme a ordem que lhe é imposta; já os segundos pertencem à pobreza insubmissa: são os que escapam, desviam da ordem.

O trabalho passa a ser percebido “como solução geral, panacéia infalível, remédio para todas as formas de miséria” (FOUCAULT, 1972, p.71). O trabalho que antes era visto, num sentido religioso, como punição, castigo devido à “queda” do homem, ou seja, a sua expulsão do paraíso por causa da desobediência a Deus, transcende para uma nova ética, recebendo um valor de penitência e resgate. Aderir ao trabalho, agora, é aderir ao grande pacto ético da existência humana.

No mundo clássico, temos uma linha de partilha entre o trabalho e a ociosidade, sendo esta considerada como maldita e condenada, como um dos mais degradantes males da sociedade. Manter a ordem, portanto, implica encaminhar o mundo da pobreza (incluindo as suas crianças) ao mundo do trabalho. Com essa nova forma de encarar o mundo da pobreza, no imaginário social, o trabalho e a ociosidade assumiram novos lugares e discursos. Conforme Castoriadis (1982), o papel das significações imaginárias é o de fornecer “respostas” a “perguntas”:

não se trata de perguntas e de respostas colocadas explicitamente e as definições não são dadas na linguagem. As perguntas não são nem mesmo feitas previamente às respostas. A sociedade se constitui fazendo emergir uma resposta de fato a essas perguntas em sua vida, em sua atividade. É no fazer de cada coletividade que surge como sentido encarnado a resposta a essas perguntas, é esse fazer social que só se deixa compreender como resposta a perguntas que ele próprio coloca implicitamente (p. 177).

O trabalho aparece no imaginário social como algo que vem dar uma “resposta” para as questões vividas na sociedade, de modo que ela pudesse se organizar simbolicamente como coerente, homogênea e harmoniosa. Quanto ao nosso estudo, o trabalho infantil é uma prática que vem também “responder” algo aos sujeitos, no sentido de se apresentar como uma solução para as questões vividas naquela realidade:

 [...] Outra coisa: pra você ter uma criança, você bota na escola pública, quando a gente pode botar. Aí eles estudam até meio-dia. E meio-dia a gente vai deixar eles fazendo o quê, solto na rua? A gente tem que botar eles pra trabalhar. [...] A gente que vê a realidade, todo dia, o dia a dia (pausa) aí o jeito que tem é botar pra trabalhar (Relato Carla).

Mas o horário vago, a gente vai fazer o que com os menino? A gente tem que levar eles (Relato Catarina).

Percebemos nas falas das mães uma preocupação com o tempo vago de seus filhos, tempo em que não estão na escola. Há falta de condições de oferecer outras possibilidades às crianças como colocar o filho em um esporte, ou um curso de computação ou ainda um curso de línguas, restando como alternativa preencher o tempo ocioso do filho com o trabalho. O que nos chama atenção é que, no imaginário dessa população, o horário vago aparece como uma ameaça. Tomamos o que uma outra mãe lembra: “mente vazia oficina do diabo”. Essa “mente vazia” implica não ter com o que se ocupar e isto nas falas das mães aparece como a condição para desembocar num mau caminho, sendo o trabalho visto como a solução para elas.

Apesar do discurso das mães acima indicar um reconhecimento de uma realidade social profundamente desigual, que faz com que somente certas famílias tenham acesso a equipamentos sociais de lazer e profissionalização dos filhos, entendemos que em nenhum momento houve uma reflexão entre as mães a respeito, por exemplo, de como o trabalho precoce é um forte reprodutor da pobreza. Ou seja, não é porque visualizam essa diferença social no seu cotidiano que podemos dizer que a ideologia foi desvelada. Ela permanece profundamente viva, à medida que seus mecanismos de funcionamento são naturalizados, reinventados, reproduzidos e sustentados subjetivamente. Isso se dá, inclusive, quando justificamos que o trabalho tem sido uma das poucas estratégias ainda possíveis para evitar os riscos que a falta de políticas sociais igualitárias proporcionam a essa parcela da população. Não escapamos nem da valorização do trabalho nem da legitimação e naturalização da iniqüidade social.

Essa discussão, portanto, está bem próxima do pensamento de Souza Filho (1995), quando aponta para a ideologia enquanto conjunto de representações/significações que oculta a natureza sócio-histórica da realidade, tornando invisível a dominação, a qual consiste na submissão aos sistemas sociais que são vistos como obras de natureza divina ou do acaso.

No Brasil, a partir do século XIX, é que se produz um novo discurso sobre o trabalho. A nova ética do trabalho que se alastrou pela Europa na era clássica, conforme Rizzini (1998), foi transposta para o Brasil, tomando corpo no final do século XIX, num momento em que o país vivia uma série de mudanças como a abolição da escravatura, a constituição de uma nação, o processo de industrialização. Ao trabalho que, até então, era considerado algo degradante, humilhante, associado à escravidão, passa a ser impressa uma nova concepção: a do trabalho dignificante e enobrecedor. Era preciso atribuir ao trabalho um novo valor, pois na sociedade com todas essas mudanças havia a percepção de um perigo iminente. É posto no trabalho a “salvação” (termo utilizado na época) e os que insistiam em escapar a essa nova visão, chamados “avessos ao trabalho”, eram discriminados e coagidos a trabalhar.

A pobreza passa por um processo de moralização. Na virada do século XIX para o XX, Rizzini (1998) aponta uma escala fictícia de valores, na qual as virtudes estariam na sua extremidade superior e os vícios, na inferior. Dentro dessa “escala de moralidade” era o cultivo ou não do hábito de trabalhar que determinava a virtude ou o vício e estabelecia uma divisão entre o que era moral e imoral, digno e indigno. Os pobres trabalhadores se situavam mais acima na escala de moralidade. Os que permaneciam no ócio, os avessos ao trabalho, eram os viciosos, os imorais, os que faziam parte da pobreza indigna e, por se mostrarem insubmissos, eram vistos como uma ameaça em potencial, associada à criminalidade.

As falas das mães trazem essa visão moralizadora do trabalho infantil, bem como a oposição à ociosidade que é encarada como um mal a ser evitado e combatido. Esse trabalho possui uma função moralizadora, a qual vem servindo também de justificativa para a condução das crianças ao mundo do trabalho. Observemos este diálogo no grupo das mães:

Carla: [...] Porque no caso que era um tio meu, que o pai dele mimava ele demais. Ele um rapaizão com 17 anos. Ele morava com a gente, aí eu trabalhava, aí quando papai dizia: ‘bota fulano pra trabalhar!’. Aí o pai dele: ‘Não, meu filho num vai trabalhar, não porque é muito novo, nunca pegou em enxada, num sei o quê’. Quando pensou que não, ele já vivia na marginalidade e quando matou gente, foi preso. Num foi pior pra ele? Num era melhor ter ensinado pra ele a trabalhar?

-Você acha que o trabalho ajuda nessas coisas?

Carla: Ajuda! [...] A gente tem que botar eles pra fazer alguma coisa, porque se a gente deixar, vai ser desse jeito. Porque tem exemplo que a gente vê, aí pronto. Tem que botar pra trabalhar, porque pelo menos eles tão ocupando a cabeça em alguma coisa. (...).

Há um medo por parte das mães de que seus filhos se tornem criminosos, vagabundos, que se envolvam com drogas e o trabalho vem como a alternativa de que elas dispõem para evitar que essas coisas se sucedam na vida dos seus filhos. Em conversas informais, escutamos frases como estas: “Aqui tem um dilema: criança não fica na rua. Aqui não tem criança envolvida com droga, não se vê ninguém pegando o que é do outro”; “Estando no trabalho, não estão na rua pegando coisa alheia”; “A rua só serve para aprender palavrão, aprender o que não presta”. O trabalho aparece como uma forma de evitar que a criança permaneça na rua, sendo esta vista pelos sujeitos como um espaço privilegiado para acontecer tudo aquilo que elas temem.

Conforme Rizzini (1998), no final do século XIX e início do século XX, as famílias trabalhadoras educavam seus filhos de modo a afastá-los dos “ambientes viciosos” e “evitavam, acima de qualquer outra coisa, a escola perniciosa da rua” (p. 91). Segundo Osterne (1999), nesse período, no discurso médico a rua era vista como a “escola do mal”. Em nosso campo de estudo, escutamos muitas falas referentes à rua, cujo sentido de “escola” nociva estava presente. A rua entrou no imaginário da nossa sociedade como um espaço nocivo, devendo ser evitado.

Da Matta (1997) considera “casa” e “rua” categorias sociológicas, conceitos que tentam dar conta do que uma sociedade pensa, institui em seu código de valores e constitui seu sistema de ação. A rua é vista como um espaço movimentado, propício às desgraças e roubos, portanto, um local perigoso. Ariés (1981) nos oferece uma visão do momento em que a rua perde a sua função antiga de espaço de socialização e torna-se um lugar proibido para a infância. Isto se dá com as mudanças ocorridas na sociedade moderna, a partir do século XVII, com a privatização da família e a instituição de outros espaços, como a família e a escola, para socializar e educar a criança.

Como o espaço da rua torna-se proibido, Osterne (1999) aponta que a criança, não estando na escola, deve permanecer em casa. Surge, então, uma preocupação dos especialistas em retirar da rua as crianças pobres, os órfãos, os mendigos e os vagabundos, os quais, na visão deles, não passavam de futuros delinqüentes e criminosos. Portanto, a criança na rua constituía uma ameaça, enquanto que no trabalho era considerada enquadrada e em segurança. Esta é uma preocupação que aparece em quase todos os momentos nos quais tivemos contato com o nosso campo de estudo. A rua e a ociosidade são consideradas o ponto de partida para a vagabundagem, a criminalidade, o uso de drogas.

É claro que esse medo não é infundado. Sabemos que, entre os jovens brasileiros, a violência é o maior problema enfrentado atualmente. As taxas de mortalidade por causas violentas (homicídios, suicídios e acidentes de transporte) entre jovens de 15 a 24 anos alcançam cifras muito altas, sendo predominante entre homens, pretos, pobres e com baixo nível de escolaridade (WAISELFEISZ, 2004). Ou seja, a falta de suporte social e de alternativas, para a maioria dessas famílias, constitui fontes de vulnerabilidade reais para suas crianças e jovens. Elas têm buscado enfrentar tais condições utilizando recursos ainda disponíveis, como é o caso do trabalho, que tem funcionado tanto como uma forma de proteção, quanto de reprodução de capital humano.

 

A FAMÍLIA COMO APARELHO DA CULTURA E TRANSMISSORA DA IDEOLOGIA

As mães participantes do nosso estudo ocupam, dentro das suas famílias, um lugar de destaque. São elas que assumem a responsabilidade de conduzir suas crianças ao espaço da horta e de afastá-las dos perigos da rua e da ociosidade. Tal lugar, construído socialmente, está relacionado à influência que os higienistas tiveram aqui no Brasil no início do século passado, criando uma nova organização doméstica, redefinindo os papéis da família e da infância, dando à mulher um papel de destaque no cuidado dos filhos (COSTA,1983). Vejamos o que as mães falam:

A mãe vai trabalhar, deixa eles em casa. Eles vão pra rua, né? A gente vai trabalhar, leva eles (Relato Júlia).

...Aí eles, às vezes, ia mais o pai, mas se eles quiser fazer faz, se num quiser, também, num tá nem aí. Ninguém é obrigado a fazer (pausa). [...] Só vão se eu obrigar mesmo e mandar eles ir. É porque não gostam mesmo.[...] O meu (o marido) diz assim: ‘Oh, manda eles vim fazer’, porque sabe que se eu mandar eles vem (Relato Priscila).

Os meus se eu mandar fazer eles fazem. O pai também é assim, [...] ele não obriga ninguém a fazer nada, não. [...] Mas eu, não. Eu fico em casa, mas eu passo a ordem: ‘Olhe, vá embora, você vá trabalhar porque tem que ir’ (Relato Ana).

Conforme Donzelot (1986), a estratégia de familiarização nas classes populares, na segunda metade do século XIX, tem como suporte principal a mulher, a quem cabia a função de tirar o homem do cabaré e as crianças da rua. Como aparelho da cultura, a família é um campo privilegiado da ideologia. Por isso, enfatizamos essa instituição como portadora e propagadora da ideologia, daquilo que constitui dominação da Ordem Social. No processo da ação socializadora, educativa, essa instituição atua como agência da ideologia.

Lembrando Durkheim, essas crenças e práticas que nos são transmitidas pelas gerações anteriores, nós adotamo-las “porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obra secular estão investidas de uma autoridade que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar” (1978, p. 91). Nessa afirmação, o autor aponta  algumas características da ideologia: uma obra coletiva e quando temos uma crença que nos é cara nos confrontamos com o caráter da sacralidade, da unidade, do consenso. Para este autor, os pais e os professores estão como os representantes e intermediários da educação, de uma coação que a criança recebe para se constituir como um ser social. É uma coação permanente, pois todos estão obrigados a ser, a estar na lei.

A partir do pensamento de Durkheim, gostaríamos de enfocar um aspecto do nosso estudo que diz respeito a uma educação das crianças voltada para o trabalho, ou seja, a uma infância que desde cedo é coagida ao trabalho. A inserção da mão-de-obra infantil conta com o “consentimento” da própria família. A ideologia tem uma força imensa pelo simples fato de tornar os seus dominados cúmplices da sua própria dominação. Falamos de um consentimento por parte dos sujeitos implicados, “sem perceber a trama na qual estão enredados” (SOUZA FILHO, 1995, p.76). É no seu consentimento que a dominação encontra base e condições para o seu exercício.

As mães do nosso estudo demonstram uma preocupação em conduzir suas crianças desde cedo para o trabalho nas hortas e todas tiveram uma infância de trabalho, iniciando com a idade entre 05 a 07 anos. Falam de uma época de trabalho intenso, de uma dupla jornada, uma vez que trabalhavam na horta e em casa. Para algumas, a infância de trabalho foi uma vivência triste e sofrida, que faz com que não desejem o mesmo para seus filhos. Todavia, o que se mantém é uma educação que conduz ao trabalho, pois, para essas mães, o trabalho na horta é o capital cultural de que elas dispõem para transmitir aos filhos. Ou seja, independente das condições e contextos onde se fez presente o trabalho na vida dessas mulheres, ele funciona como um elemento importante e definidor de suas identidades, de sua história pessoal, constituindo-se no elemento a ser transmitido a outras gerações. Todas as vivências de sofrimento atreladas à pobreza e à necessidade do trabalho em suas vidas parecem ser minimizadas ou até esquecidas, frente a esse jogo de forças da reprodução das desigualdades sociais. É como se dissessem: apesar de todo sofrimento, aprendemos algo que podemos transmitir aos filhos. É dessa forma que pensamos o consentimento da família. Pelbart (2003), discutindo aquilo que Foucault chamou por biopoder (poder sobre a vida) aponta: “nunca o capital penetrou tão fundo e tão longe no corpo e na alma das pessoas, nos seus gens e na sua inteligência, no seu psiquismo e no seu imaginário, no núcleo de sua vitalidade” (p.13). Ou seja, é algo da ordem de uma produção subjetiva que sustenta também a sua própria dominação.

O trabalho, pois, é uma prática que vem sendo transmitida de geração a geração a um tipo muito singular de infância. Estamos falando de uma infância pertencente a uma determinada classe social, que vem reproduzindo, através de gerações, a ideologia do trabalho. Isso não quer dizer que outros segmentos sociais não reproduzam a mesma ideologia. Reproduzem sim, mas só que de lugares bastante distintos. Não é incomum segmentos médios e altos da sociedade defenderam o trabalho de crianças como forma de educação e de controle contra a marginalização. Não é raro esses mesmos segmentos explorarem o trabalho de crianças e adolescentes com a justificativa de que estão contribuindo para a diminuição da pobreza, da violência etc. Entretanto, para seus filhos, valorizam apenas certos tipos de atividades, delimitam a idade adequada para começarem a trabalhar, isto é, o trabalho é diferentemente vivido nas diversas classes sociais. Consideramos, pois, que as famílias estudadas nesse contexto específico vêm reproduzindo os sistemas de valores e as tradições, as práticas historicamente construídas em relação ao trabalho infantil na classe social a qual pertencem.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, durante décadas, a criança pertencente ao universo da pobreza foi encaminhada ao trabalho, encontrando respaldo em todo o corpo social. A partir dos anos noventa, surgem as políticas para combater o trabalho infantil com estratégias de prevenção e erradicação. No entanto, há uma distância enorme entre o que é pensado e decidido em termos de políticas e as realidades vividas pelas famílias, que não só apóiam, mas, muitas vezes, impõem a entrada das crianças no trabalho. Nossa preocupação não foi com o fato de que essas famílias, na sua maioria, necessitam do trabalho dos filhos. Sabemos disso, bem como entendemos que esse trabalho possibilita, muito precariamente, um certo compartilhamento de bens sociais e a aceitação por parte da sociedade. Nosso intento era apontar as malhas invisíveis que sustentam a reprodução dessa ideologia, seja por ocultação, seja por falta de estratégias socialmente compartilhadas capazes de alterar esse jogo de poder.

Ao lançarmos uma escuta às mães, tentando apreender os sentidos que atribuem ao trabalho infantil, encontramos sutilezas importantes vividas no cotidiano daquela realidade, que se tornam obstáculos nas ações de combate e que precisam ser conhecidas e enfrentadas. A articulação das falas dos sujeitos com o campo da ideologia possibilitou uma análise mais aprofundada do fenômeno e, assim, produzimos algumas reflexões sobre a questão que permeia o nosso estudo: “O que faz com que as famílias, inseridas nos programas de combate ao trabalho infantil, continuem a encaminhar suas crianças ao trabalho?”.

Estar no trabalho impede a circulação dessas crianças no espaço da rua, o qual aparece imbuído de uma ameaça, um medo. Entramos no campo do imaginário dessa população em relação à rua e ao trabalho. O trabalho é o que livra as crianças dos perigos que a rua e a ociosidade podem trazer, tais como a criminalidade, a vagabundagem, o uso de drogas e outras mazelas sociais. Os sujeitos aqui em questão respondem à nova ética do trabalho, aderindo a essa ideologia. É como se para essas crianças, que vivem no universo da pobreza, não houvesse outra possibilidade na vida, a não ser um encaminhamento ao mundo do trabalho. Essas crianças continuam sendo percebidas no imaginário da nossa sociedade como um problema social, como seres que estão em vias de tornarem-se delinqüentes ou criminosos, sendo encaminhados ao trabalho como forma de prevenção. Essa percepção é a que encontramos nos discursos dos participantes da nossa pesquisa. Em relação ao nosso campo de investigação, constatamos, portanto, que os discursos e práticas produzidos no Brasil, no final do século XIX, sobre o trabalho infantil, permanecem presentes nas mães responsáveis pela socialização das crianças.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: izabelsec21@yahoo.com.br / magdad@uol.com.br.

Recebido em: 20/07/2004
Aceito para publicação em: 06/01/2005

 

 

* Professora substituta do curso de Graduação de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em Psicologia.
** Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Dra.em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

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