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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.5 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Em tempos de pós-modernidade: vivendo a vida saudável e sem paixões

 

Post modernity times: living the "healthy life"

 

 

Ana Maria Szapiro*

Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência.

 

 


RESUMO

Este trabalho discute o surgimento das biossociabilidades do ponto de vista da problemática do sujeito pós-moderno. Considerando que a pós-modernidade produz a idéia de uma sociedade sem ideologias, onde as decisões a serem tomadas se revestem de um caráter de inevitabilidade estas parecem emanar diretamente do “real”. Identificam-se processos de dessimbolização do sujeito, como descritos por Dany Dufour, processos que funcionam como mecanismos de des-subjetivação. Aprisionados na sua liberdade, no lugar do desamparo, o sujeito da pós-modernidade tenta encontrar como saída a adesão aos preceitos de uma “ vida saudável” e “sem risco”, um projeto de controle sobre uma vida sem paixões.

Palavras-chave: Sujeito, Pós-modernidade, Dessimbolização, Biossociabilidades.


ABSTRACT

This paper discusses about the emerging of the biosociabilities seeing by the perspective of post modern subject issue. Considering that post modernity produces the idea of the society without ideologies, where taking decisions is marked by an unavoidable feature of the “real” The processes identified by the subject’s dissymbolization described by Dany Dufour are defined as mechanism of dissubjectivation. These subjects imprisoned in their freedom, in their distress trying in some way finding out a solution to this precept adhering the idea of “healthy life” and “without risk” what means a controlled project of life without passion.

Keywords: Subject, Post modernity, Dissymbolozation, Biosociabilities.


 

 

Ser imortal é insignificante; com exceção do homem,
todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino,
o terrível, o incompreensível é saber-se imortal.
Borges, O Aleph

 

No livro intitulado “Big Mother”, Michel Schneider (2002) examina a problemática da vida política na sociedade contemporânea, propondo uma interpretação bastante interessante a respeito dos efeitos sobre o lugar da política nas sociedades ocidentais a partir da experiência dos Estados democráticos. Já no seu título, Schneider enuncia claramente por que vias irá conduzir sua análise. O título do livro e também o capítulo inicial que ele denominou “L’Etat sans pères ni repères” nos colocam muito rapidamente frente à tese do autor. Segundo ele vivemos num mundo assimbólico. Assistimos à dissolução da política que hoje adquiriu o sentido de uma segurança contra as perturbações do pensamento e contra as dores da vida, como temia Tocqueville (op. cit. p.11). O Estado tornou-se o lugar que deve nos assegurar tudo. A particularidade deste Estado é que ele não mais se inscreve propriamente no registro do representante e guardião da lei, mas sim no lugar de uma ação de “maternagem”, de onde se espera compreensão, como os filhos esperam da mãe que os compreenda. Vemos com freqüência serem colocadas no debate público, como questões públicas, a natureza das emoções, as propriedades de bondade e, mais recentemente, as confissões religiosas de um governante.

Deste modo, argumenta Schneider não só o estado se “maternaliza” mas a sociedade também. Que conseqüências advêm do Estado Big Mother? O autor nos oferece uma boa pista: pensemos em que consiste hoje, verdadeiramente, a coisa pública.

A experiência da vida privada é distinta da experiência da vida pública. Esta última pertence ao mundo da coletividade, e se constitui contra a vida privada. Foi exatamente a perda das fronteiras precisas entre a vida pública e a vida privada que tornou possível o Estado que Schneider nomeia Big Mother. Este Estado se construiu às expensas de um processo de desregulamentação da sociedade, ao estilo do ideário neo-liberal. Esta desregulamentação social produziu uma outra desregulamentação, agora no próprio sujeito. A privatização da vida pública, e a publicização da vida privada são próprias à condição deste sujeito, para sublinhar o que Lyotard (2002) tão apropriadamente denominou como a condição pós-moderna. Há um rebatimento do funcionamento do espaço privado sobre o espaço público. Assim, o conflito entre o sujeito e o outro é negado, remetendo-se a um conflito do sujeito consigo mesmo. Quer dizer, o espaço do exercício da política e do conflito da ordem do coletivo é privatizado atribuindo-se sempre âmbito do sujeito os problemas e as dificuldades encontradas, como analisou Ehrenberg (1998).

Desta maneira, seguindo o argumento de Schneider, os conflitos coletivos são transformados em crises pessoais, dando origem à procura de manuais de orientação de “como administrar conflitos” que fazem sucesso nas prateleiras das livrarias sob o título popular de “auto-ajuda”. Através da negação do mal-estar próprio à condição humana, a dessimbolização destitui o sujeito da sua dimensão de finitude. No seu lugar emerge um sujeito cuja vida é regulada e administrada, na sua dimensão biológica. A vida fica assim contida entre as recomendações e prescrições que anunciam o que pode estar ao alcance de todos: corpo e saúde perfeitos, ausência do sofrimento e da dor, negação da morte.

A política sofre do que Schneider diagnostica como “perda do simbólico” na sociedade. Lembrando o atentado terrorista de 11 de setembro em Nova York, diz ele, não só foi colocada em questão a onipotência da América, como se ofereceu ao chamado “mundo livre”, como evidência assustadora, a mensagem de que a morte aí está de volta. Esta evidência é tão mais assustadora na medida em que ela operou um curto-circuito na tendência pós-moderna de negação da morte. Sendo a relação com a morte estruturante da ordem simbólica ao preço da qual se constitui o sujeito, a negação da morte implica inexoravelmente em um processo de dessimbolização. Certamente a dimensão de estranhamento e de invasão que experimentamos diante das imagens do atentado transmitidas, são devidas à este processo de dessimbolização, pelo qual o real do acontecimento, do não previsto nem previsível, portanto não calculável nem “administrável” produziu nossa perplexidade.

Da dissolução da política como exercício na Polis, desta perda do simbólico, passamos a uma arte peculiar, a de “administrar” a vida minimizando riscos. De algum modo tornamo-nos submetidos à idéia de que há que vencer ou vencer. A derrota incomoda mais porque, da mesma forma que os conflitos sociais são hoje reduzidos a crises pessoais, somos, individualmente, responsáveis pelos nossos eventuais fracassos. O individualismo da sociedade democrática faz pesar sobre o sujeito e apenas sobre ele o ônus da derrota, não pela sua culpabilização, mas sim pela sua responsabilidade (EHRENBERG, 1998). Na medida em que se trata de um sujeito de si mesmo, ele estará definitivamente destituído da dimensão social de sua humanidade, e será, desta forma, o único responsável pela sua vitória ou pelo seu fracasso.

Retornemos a Schneider. A perda do simbólico na sociedade, compara ele, é como a perda na atmosfera da camada de ozônio que preserva a vida no planeta. A perda do simbólico forma “buracos” na camada do simbólico que protege a vida da mente” (op. cit. pag.11). Cabe aqui ressaltar os efeitos devastadores que se instituem através da perda do simbólico, da dessimbolização. Lembremos com a Psicanálise que a função simbólica é o que permite aceder à experiência de sujeito da Cultura. É o que possibilita constituir um sujeito na radicalidade própria à experiência da alteridade, experiência inevitável na medida em que a criança humana... “desde antes do seu nascimento, haja vista o nome que lhe é dado, ... já é colocada como referente da história contada por aqueles que a cercam. (LYOTARD, 2002, p.29).

Há que destacar que a dissolução do campo da política como campo de exercício na e da polis (SZAPIRO, A. 2004) fez emergir tanto a psicologização das relações sociais como aquilo que Castel (1987) denomina “retorno ao objetivismo médico” no qual a noção de pessoa, diz ele, desaparece. Podemos dizer então com Castel que a inflação do psicológico assim como a biologização do sentido da vida são, na realidade, o resultado da transformação das estruturas sociais (CASTEL, 1987, p.157) que, no vazio deixado pela ausência de exercício da política, possibilitou o surgimento de novas formas de sociabilidade cujo estatuto merece ser questionado. Ainda citando Castel estas novas sociabilidades constituem-se mais precisamente em “a-social-sociabilidades”, próprias à pós-modernidade ao colocar o sujeito em ruptura com toda a condição de intersubjetividade, postulando a existência de um “sujeito causa de si mesmo” (DUFOUR, 2003, p.108).

Na pós-modernidade, como sublinha Le Goff (2003) toda relação de dependência é rejeitada como ameaça à autonomia. O sentimento de dívida e de dever em relação às gerações passadas bem como as exigências inerentes à vida em sociedade são considerados, em bloco, tentativas de invasão à “soberaneidade individual” (LE GOFF, 2003, p.97). Este discurso ao romper com uma continuidade histórica, produz um sujeito desestabilizado psiquicamente, na medida em que lhe faltam as referências que possam ajudá-lo a construir a sua própria ficção, condição de ser um sujeito. Assim, nos processos de subjetivação contemporâneos constitui-se um sujeito que se pretende “liberado”, e que, portanto, julga poder prescindir de ancoragens históricas. Mesmo nas suas relações afetivas, o sujeito não suporta qualquer sinal de dominação, ainda que estes sinais digam respeito aos seus sentimentos vividos nas suas experiências mais íntimas.

O projeto moderno efetuou um estreitamento das diversas formas de sociabilidade, valorizando, sobretudo, a sociabilidade familiar. Este processo de estreitamento de sociabilidades pode ser melhor compreendido se atentarmos para o crescente valor de positividade que foi dado à esfera privada no projeto moderno, como examinamos acima. Le Goff acrescenta que o esgotamento do exercício da política (que Schneider nomeia como “dissolução”) introduziu pouco a pouco e, mais acentuadamente, após os anos sessenta, uma falta de legitimidade da política, enquanto atividade de intervenção necessária sobre os assuntos da polis.

O privilégio dado à sociabilidade familiar se sustentou numa crença: a de que a intimidade seria, por excelência, o lugar onde aconteceriam as relações verdadeiras, autênticas. Assim, esta ideologia legitimou e deu credibilidade aos comportamentos de transparência e de visibilidade, sugerindo que há um processo de permanente construção do novo. Portanto, nada tem permanência, característica aliás importante na experiência atual na “rede”, onde não se faz necessário qualquer gênese histórica para que se possa entrar ou estar. A única permanência é o imperativo da novidade.

Pela ideologia da novidade, faz-se hoje comum e freqüente o recurso às sondagens de opinião que nos situam, de modo ilusório, no interior de um mundo onde nada precisa ser ocultado, onde inclusive o Poder também se põe a comprovar a autenticidade de suas intenções e objetivos. Através das sondagens somos todos chamados a participar e a dar nossas opiniões sobre os mais diversos temas, todos ou quase todos, entretanto, apresentando problemas que deveriam remeter à decisões da esfera da governabilidade. As sociedades de massa democráticas promovem uma espécie de talk-show com o poder. Passamos então a acreditar que é este o lugar e a forma do exercício da política, lugar onde se “decide” sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo, onde se dá continuação à lógica de apagamento das fronteiras entre a vida pública e a vida privada.

Estas consultas se revestem de uma característica muito interessante. Segundo Lefort (apud LE GOFF, 2003, p.25) “tudo se passa como se um poder tivesse a capacidade de exibir a obra social comum, ou como se, ... a sociedade se exibisse diante dela mesma”1. A consulta se insinua como um fórum político, na medida em que o poder a utiliza para reforçar a idéia de que as escolhas emanam sempre da sociedade. Esta é uma característica peculiar ao modo de pensar neo-liberal. O discurso pós-moderno apresenta suas “escolhas” como consensos sucessivos, como as únicas e naturais possibilidades de conduzir a sociedade diante de questões colocadas. Mas, e acima de tudo, o mecanismo de consulta permanente dá a todos a sensação de que desfrutamos de uma relação íntima, não formal com o poder e, portanto, verdadeira. E este é o ponto.

Assim, o discurso neoliberal apresenta suas decisões não mais como opções legítimas do governante. Ao contrário, o caráter intrinsecamente hierárquico das tomadas de decisões é substituído pela consulta informal à coletividade, produz-se a idéia de que a decisão política reflete tão somente uma necessidade que já estava inscrita no “real”( LE GOFF, 2003). O discurso do poder na pós-modernidade se aproxima da “franqueza” da intimidade, transforma o fazer política em uma prática “isenta” de conteúdo ideológico onde procura aparecer apenas como um lugar de respostas às demandas da própria sociedade. Apresentando-se como se estivesse no mesmo plano da sociedade, faz crer que as decisões emanam todas das exigências da sociedade e se impõem como simples decorrência da realidade.

 

A VERDADE DA INTIMIDADE

Sennett (1995) descreveu as transformações da intimidade nos três últimos séculos. Sua tese é a de que os “sinais gritantes de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pública esvaziada ficaram por muito tempo incubados. São resultantes de uma mudança que começou com a queda do Antigo regime e com a formação de uma nova cultura urbana, secular e capitalista”.(op. cit. p. 30)

A valorização do espaço e da experiência da intimidade, analisa Sennett (1979) é resultado das longas transformações das concepções do que é público e do que é privado. De toda maneira, a experiência segundo a qual o sentimento do outro é desvendável, porque está para além do controle e da vontade da própria pessoa, é uma experiência que, mais explicitamente vivida a partir do século XIX, resultou na descoberta de que a fronteira entre o público e o privado independia de um ato de vontade humana. Quer dizer, algo de secreto em cada um está sempre sob ameaça de ser descoberto apesar dos comportamentos de dissimulação, dos discursos, dos gestos do corpo ou das máscaras. Não é sem razão, argumenta Sennett (op.cit.1995), que a política moderna passou a incorporar, no julgamento da credibilidade do homem público, valores como a autenticidade, “resultado da superposição do imaginário privado sobre o imaginário público”. (Sennett op.cit.p. 41).

A autenticidade está investida de um valor exatamente na medida em que advém da afirmação de uma autonomia de um sujeito de si mesmo. Lembremos que “sujeito” no sentido filosófico, é o subjectus, aquele que, por definição, está submetido. Como então compreender um sujeito autônomo e livre?

A idéia de autonomia ganhou grande impulso a partir dos anos sessenta e setenta, décadas marcadas, nas sociedades ocidentais, pelas lutas contra todas as formas de repressão. Liberação do desejo, movimento das minorias, feministas lutando pela igualdade de direitos frente aos homens, luta contra todas as formas de discriminação, enfim, considerava-se que o poder se exercia através de agenciamentos diversos de opressão, seja sexual, seja do saber, seja pelas diferentes e inúmeras formas de exclusão existentes na sociedade.

A reivindicação por autonomia e por liberdade sem restrições e, ao mesmo tempo, o investimento na necessidade de expressão dos sentimentos como lugar da verdade do sujeito, marcaram o discurso político nestas duas décadas. Como efeito deste discurso, a vida pública e a vida privada deixaram, em definitivo, de serem separadas. Desta maneira, argumenta Le Goff, passou-se a “fazer política” a partir dos sentimentos, a viver a vida “privada” autenticamente, a tudo falar, em qualquer lugar, em nome da autenticidade... A experiência do vivido deveria ser partilhada na sua visibilidade a tal ponto que, como bem observa o autor, “não foi apenas a separação entre o político e o privado que foi colocada em questão ... a intimidade perde também sua razão de ser (2003, p.97).

A intimidade como forma privilegiada de experiência social determinou mudanças importantes nos processos de subjetivação. Na problemática da sexualidade, como modo de contrapor-se à repressão, o tudo falar, nomeado como autenticidade, colocou o sujeito diante de uma nova servidão, a de nada esconder. Mandato impossível de ser cumprido, evidentemente, quando nos colocamos na perspectiva do discurso freudiano onde o sujeito não sabe.

O modelo da experiência de autenticidade como exercício de uma sociabilidade psicológica entrou em esgotamento. A meu ver, este esgotamento deve-se à condição subjetiva do sujeito na pós-modernidade. Citando Dufour (2003), há “uma lógica impossível na subjetivação pós-moderna”: o sujeito causa de si mesmo seria aquele que se apoiaria em si mesmo para tornar-se sujeito de si mesmo, o que se revela impossível, porque lhe falta o primeiro apoio! A busca da autenticidade, seja lá o que isto signifique, remete, portanto, a um exercício de saída impossibilitado dado o desenraizamento do sujeito da problemática da intersubjetividade. Resta então, como lembra Castel acima, a construção de uma sociabilidade a partir do retorno ao objetivismo médico. A nova ordem pós-disciplinar, que Castel descreve como uma nova modalidade de intervenção que privilegia as tecnologias de gestão apresenta a “...simultaneidade de uma volta ao objetivismo médico e de uma fuga para a frente na cultura psicológica”.

No curso de 1976, “Em Defesa da Sociedade”, Foucault descreveu o processo através do qual ao poder do soberano de fazer morrer ou deixar viver se instala um novo direito, o “direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no como viver” ( op. Cit. p.295). Às tecnologias colocadas a serviço desta nova modalidade de poder Foucault denominou tecnologias da bio-política.

Deste novo poder que começa a tomar forma na segunda metade do século XVIII, e que irá intervir para fazer aumentar a vida e controlar suas condições, vou destacar duas questões, ambas de central importância para esta discussão e ambas observadas por Foucault. A primeira se refere ao que ele descreve como a “a assunção da vida pelo poder, ... tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico”. A segunda questão diz respeito ao lugar da morte no novo discurso do poder sobre a vida, qual seja, a morte, diz Foucault, está do lado de fora, fora do domínio do poder.

Este novo poder moderno que regulamenta a vida e faz viver a ilusão da negação da morte emerge na atualidade com características precisas, não só controlando, prevendo e prevenindo riscos, como também intervindo e fazendo surgir uma nova forma de subjetivação e de sociabilidade que Rabinow (1999) denominou biossociabilidade. Os processos de bio-ascese (?) (ORTEGA, 2002), que guardam uma concepção da vida reduzida ao biológico instauram e agenciam as novas biossociabilidades.

Para tentar compreender a emergência da biossociabilidade é preciso retomar a problemática da autonomia onde está, a meu ver, o processo de produção desta forma de sociabilidade. Considero, pois, que a biossociabilidade se enraíza, se alimenta, e ao mesmo tempo que alimenta a sociedade de mercado. A biossociabilidade constitui a saúde como uma mercadoria que, como todas as outras pode ser comprada. Ainda, se observarmos que o pensamento neoliberal opera pela desregulamentação do Estado, que a sociedade neoliberal de mercado transforma as decisões políticas em fatalidades inexoráveis, como analisamos acima através do texto de Le Goff, e que, como observou Schneider em sua análise sobre a Estado Big Mother a dissolução da política decorre de uma perda simbólica, não será difícil compreender como se constituiu a biossociabilidade. Como bem o termo indica, assim se nomeia, na verdade, a ausência de qualquer sociabilidade que implique na convivência com um outro, ou com a experiência da alteridade.

A experiência da autonomia no sentido de independência ilimitada construiu uma cultura descrita por Sennett (1979) e Lasch (1979) como a cultura do narcisismo. Vejamos o que nos disse Freud (1969) em Psicologia das Massas e Análise do Ego, texto de 1921.Alí ele descreveu um sujeito que traz em si uma situação de conflito representado, psiquicamente, pelas instâncias do eu ideal, narcísico, do ideal do eu e super-eu. Este conflito é causado pela permanência das exigências pulsionais que se defrontam com as instâncias psíquicas que representam os interditos culturais, de tal forma que, na vida mental do indivíduo, o outro conta, seja como modelo, como objeto, como auxiliar e até mesmo como inimigo. (FREUD, op. cit).

Portanto, tomando o ponto de vista de Freud, o sujeito, ao tentar solucionar este conflito eliminando o pólo representado pela aceitação do outro constituirá um mundo que nada mais será que um espelho de si mesmo. Este sentido de investimento narcísico, está claramente presente na concepção do sujeito autônomo e livre.

Voltando a Sennett (1979) encontramos no seu texto sobre a experiência da intimidade na cultura do narcisismo, a observação de que, nesta cultura, a relação com o outro será tanto melhor na medida em que for mais auto-reveladora do ser de cada um. Ou seja, a relação com o outro será tanto melhor quanto ele deixe de ser outro, perca sua condição de alteridade. O ideal de um estado de perfeito entendimento e de “compreensão” irrestrita seria, assim, o encontro com o mesmo, onde o outro perde sua condição de alteridade.

Biossociabilidades: a nova via de dessimbolização

A reflexão sobre a pós-modernidade não se restringe às transformações técnológicas que, poder-se-ia supor, explicariam as mudanças nas subjetividades. Tomando como referência Dufour ( 2003) prosseguiremos na tentativa de compreender de que forma articulamos a sociedade do capitalismo de mercado com o advento da biossociabilidade. Ou seja, qual será mesmo o sentido desta nova sociabilidade? Melhor dizendo, é possível considerar a emergência do biológico como definidor e regulador da vida uma forma de sociabilidade?

Pensar a sociedade é pensar a sociedade política, com suas contradições, sua referência à lei, e à toda simbólica social. De outro lado, há que pensar também na idéia de que o indivíduo só existe numa relação, o que nos introduz, de imediato, na problemática da diferença, na medida em que só existe relação onde existe diferença. A questão que perpassa atualmente o debate sobre a sociedade e sobre o exercício da democracia tem sido colocada inúmeras vezes nos termos de que existe hoje uma ausência de um projeto social propriamente político. Isto se revela no crescente desinteresse pela política, ou ainda, colocando o problema de outra maneira, o reconhecimento de que o indivíduo não participa das questões da Cidade.

Este desinteresse pela política não se apresenta como um fato em si. Está relacionado a todo um conjunto de transformações que fazem parte do que podemos denominar de verdadeira mutação antropológica da atualidade. Esta mutação revela um esgotamento do sujeito da modernidade, como analisado por Dufour em “L” Art de réduire les têtes” (DUFOUR, 2003).

Dentre as questões apontadas por Dufour sobre os impasses da pós-modernidade do ponto de vista do sujeito, destaco sua hipótese central:

Eu faço, em suma, a hipótese que este novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito esquizóide, este da pós-modernidade. Na tendência à dessimbolização que nós vivemos presentemente, não é mais o sujeito crítico colocando à sua frente uma deliberação conduzida em nome do imperativo moral da liberdade, o sujeito que convém, não é mais também o sujeito neurótico tomado numa culpabilidade compulsiva, é um sujeito precário, a-crítico e psicotisante, que é, daqui em diante requerido – eu compreendo por “psicotizante” um sujeito aberto à todas as flutuações identitárias e, por via de conseqüência, pronto para todas as ramificações do mercado. O vivo do sujeito dá progressivamente lugar ao vazio do sujeito, um vazio aberto a todos os ventos” (op.cit. p.24, tradução livre da autora)

Assim colocada a questão, não é difícil compreendermos a adesão deste sujeito vazio, aberto a todos os ventos, ao novo discurso da “saúde perfeita”, a dedicação e/ou os sacrifícios a que nos sujeitamos, de bom grado, para alcançar uma vida saudável. Certamente não colocamos em dúvida os benefícios, em termos de qualidade de vida, que hoje estão ao alcance pelo menos de um certo número de pessoas que, de outro modo, estariam submetidas a sofrimentos ou nem mesmo teriam sobrevivido.

Entretanto, a discussão sobre a biossociabilidade se inscreve em outra problemática. Por um lado, e na modalidade de um novo culto, o culto à saúde, antecedido que foi pelo culto ao corpo, pensamos na exacerbação das dietas, na produção de comportamentos de anorexia, na patologização de tipos de corpos e de comportamentos. Mas por outro lado ela também diz respeito à afirmação de Rabinow (1999) segundo a qual:

No futuro, a nova genética deixará de ser uma metáfora biológica para a sociedade moderna, e se tornará uma rede de circulação de termos de identidade e lugares de restrição, em torno da qual e através da qual surgirá um tipo verdadeiramente novo de autoprodução: vamos chamá-lo de biossociabilidade ( op. Cit. p.143).

Mais adiante, o autor faz uma conjectura segundo a qual “na biossociabilidade a natureza será modelada na cultura compreendida como prática... a natureza finalmente se tornará artificial, exatamente como a cultura se tornou natural” (1999, p.144). E ainda: “um passo decisivo para superar a separação entre natureza e cultura será a dissolução da categoria do social” (1999, p.144). O contexto de dissolução da política é evidente. A política possível nas biossociabilidades é, na verdade, a substituição da política pelo que Castel (1987) já havia descrito como próprio à ordem pós-disciplinar: a determinação dos fatores de risco através das tecnologias de prevenção seguidas da capacidade de administração dos riscos e dos dispositivos de responsabilização de cada um diante de seus males. Tal como o Estado na sociedade pós-moderna do Mercado, o sujeito da biossociabilidade é, por sua vez, objeto de desregulamentação. A cada um é oferecida a “liberdade” plena de escolher, no cardápio das experiências da vida, os riscos que quer ou não correr! Neste sentido, toma-se a vida como projeto medido pelo rigor, pelo cuidado com o excesso, com tudo o que é da ordem do excesso, portanto, com tudo o que é da ordem das paixões.

Interrogamos com Foucault (1976): como o poder cujo objetivo é fazer viver pode deixar morrer? Neste momento, alerta Foucault, intervém o racismo que, segundo ele, foi inserido nos mecanismos do Estado pelo biopoder.

Discordando da perspectiva apresentada por Rabinow (1999), prefiro propor que pensemos com Hannah Arendt (1972) que é no interior da História, e não na biossociabilidade, onde se encontra a dimensão da imortalidade humana. Ou, como observa Dufour, o sujeito que se apresenta hoje não é o mesmo que se apresentava há uma geração atrás. Dentre as condições que me parecem mais importantes a serem consideradas na discussão sobre a biologização da vida na atualidade, uma me parece ser fundamental. É a condição histórica, condição constitutiva do sujeito. Como argumenta ainda o autor, quando falamos da perda de referências entre os jovens, o que aparece como problema, o que não funciona é exatamente a moral, e isto porque “a moral só pode se fazer em nome de ...”(Dufour, op.cit, p.31). E é exatamente este contexto de autonomização no qual nos encontramos. Nós não sabemos mais em nome do que ou de quem falamos. Para o autor, esta situação nova é característica da ausência de um enunciador coletivo com legitimidade e credibilidade para tornar possível ao sujeito encontrar-se na situação necessária à condição subjetiva que é a de ser interpelado e de responder.

Desamparo, desafiliação e ausência de referências, numa espécie de estado permanentemente provisório, “fora de lugar”, na biossociabilidade o sujeito se encontra submetido ao mesmo processo de dessimbolização, que Dufour descreve como “ um processo que visa a livrar a troca concreta daquilo que a excede e a institui: seu fundamento”. (DUFOUR; BERTHIER, 2003, p.168).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SZAPIRO, A. O Indivíduo Fora da Cidade. In: Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia. Ano 3 v.1. Rio de Janeiro, UERJ, Instituto de Psicologia, 2004.

 

Endereço para correspondência
aszapiro@vetor.com.br

Recebido em: 03/06/04.
Aceito para publicação em: 15/04/05.

 

 

NOTAS

* Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica/ PUC-Rio. Pós-Doutora pela Universidade de Vincennes, Paris 8. Professora Adjunta no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1 Termo introduzido por Ortega (2002), que se refere a “uma forma de sociabilidade apolítica constituída por grupos de interesses privados, não mais reunidos segundo critérios de agrupamento tradicional como raça, classe, estamento, orientação política, como acontecia na biopolítica clássica, mas segundo critérios de saúde, performance corporais, doenças específicas, longevidade, etc...” (2002, p.153)

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