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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.5 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Do topo de uma montanha temos um ótimo ângulo de visão das coisas... mas será que podemos ver tudo? Uma reflexão sobre as políticas públicas para a educação da infância

 

From the top of a moutain we can see things from a great angle, but we can see everything? A reflection on public policies for children education

 

 

Solange Martins de Oliveira Magalhães*; Ivone Garcia Barbosa**

Universidade Federal de Goiás

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O atendimento à criança de 0 a 6 anos, no Brasil, existe há mais de um século e com ele acompanharam-se as transformações do conceito de infância, instituídas pelos discursos científicos e institucionais, que acabaram por transformar a criança em um sujeito/objeto cultural, inserido em um amplo projeto de constituição do sujeito moderno. Compreender as políticas públicas para a educação da infância implica refletir sobre o “que é ser criança”, hoje, em nossa sociedade, e ver o modo como as alterações nesse conceito passam a definir, orientar e ressignificar práticas de atenção, criação, socialização e educação, para que aquela corresponda ao desenvolvimento do “projeto da sociedade moderna”. Com essa análise tentamos clarear as intenções que nortearam as tomadas de decisões em relação à educação infantil, destacando sobretudo a perspectiva neoliberal, discernindo a lógica, a dinâmica viva e até contraditória das políticas públicas para a educação da infância brasileira.

Palavras-chave: Políticas Públicas, Educação Infantil, Infância.


ABSTRACT

Brazilian government has provided assistance for children of 0 to 6 years of age for over one hundred years now – this happened alongside many changes in the concept of childhood. Scientific and institutional thoughts and mass means of communication to transform childhood into a cultural subject/object of modernity have influenced such changes. To comprehend public policies is also to reflect on “what it is to be a child” today in our society, and how changes in the concept of childhood have defined educational practices as well as socialization of children for modern society. Through this analysis we have tried to clarify some of the intentions that influenced children education – especially neo-liberal thoughts. We have also proposed to discern the logic, living dynamic and even the contradiction of public policies of the education of the Brazilian childhood.

Keywords: Public Policies, Children Education, Childhood.


 

 

O presente estudo traz no seu conjunto memórias de quem viveu, em um tempo e espaço, experiências que refletiram as várias lutas nos contextos social, político, econômico e cultural dos movimentos, grupos e pessoas que voltaram à militância no campo da educação, quer seja por profissão, confissão ou compromisso. Tais grupos estabeleceram-se como movimentos mais ou menos organizados, pontuando marcos importantes de reorganização institucional e legal, que se iniciou com a redemocratização do país, na década de 1970, e que estabeleceu decisivas mudanças na educação. Entre essas mudanças está a educação infantil, talvez a mais relevante.

Como educadoras preocupadas com a especificidade das ações docentes na educação infantil, acreditamos que seja importante repensá-la nas tramas e teias em que suas políticas foram sendo produzidas, principalmente até a década de 1990, período de grandes proposições para a educação, que questionavam seus objetivos e interesses.

A década de 1990 representou um momento histórico importante para a educação infantil. Reconheceu-se legalmente sua necessidade e sua importância conforme o que está escrito, por exemplo, na Constituição Brasileira de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA/90 –, LDB/96, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, no Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil (1994). É necessário destacar que todo esse processo só pode ser compreendido ao considerarmos o conjunto de ações e reações provocadas pela implementação de políticas de natureza neoliberal, o que já foi bastante discutido por autores brasileiros (FRIGOTTO, 1999; SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2002; DOURADO, 2002; DOURADO, CATANI e OLIVEIRA, 2003).

Neste estudo, importa-nos refletir, entre outros aspectos, acerca das concepções que perpassam as propostas de políticas de educação para a infância. Para isso, resgatamos a idéia tradicional, oficial e hegemônica de infância que, modificando-se ao longo dos anos, vem definindo novas práticas educativas. Pelas ações políticas que se expressam, por exemplo, em documento e produções oficiais, parece que se busca efetivar a passagem de uma educação da infância, pautada na filantropia, para uma educação “cidadã”. Por certo, podemos adiantar que essa reflexão nos levará a um ponto em comum: a intencionalidade pedagógica e a qualificação da relação entre o “cuidar” e o “educar”, propostas pelo nosso modelo de sociedade.

De uma maneira geral, o conceito de infância tal qual o conhecemos hoje revelou-se a partir da segunda metade do século XX. Ele determinou uma nova maneira de agir para com a infância e criou novas variáveis a serem assimiladas por nós: pais, mães, professores, pesquisadores da infância, dentre tantos outros. (FARIA FILHO, 2004; KRAMER e BAZÍLIO, 2003; BARBOSA & MAGALHÃES, 2003; BUJES, 2002; GONDRA, 2002; FARIA, DEMARTINI e PRADO, 2002; KUHLMANN, 2001; DEL PRIORE, 2000).

A afirmação que a infância é uma construção social constitui um lugar comum em abordagens sociológicas, psicológicas e antropológicas. Nela se condensa a idéia de que sempre houve fases de vida entre os seres humanos e de que na infância se observa a diferenciação diante do mundo adulto. Isso pode ser constatado nos papéis sociais que são atribuídos a este grupo geracional: eles mudam conforme as variações sociais – classe social, grupo étnico, religioso, gênero, idade etc – e são historicamente produzidos no interior de uma mesma sociedade (SARMENTO, 2001).

A definição de infância tende a estabelecer-se de forma universal e dominante, em conseqüência da produção e disseminação dos discursos científicos, de imagens, de políticas públicas e de ações da sociedade civil. Assim, o modo como compreendemos a infância, hoje, nasce junto com um novo conceito de homem, caracterizado por Bujes (2002, p.16) como o sujeito educacional moderno, um sujeito autônomo, empreendedor e competitivo, fabricado pelos discursos institucionais, pelas formulações científicas, pelos meios de comunicação de massa. Para a autora, como a constituição do conceito de infância nunca está concluída, constitui o ponto de intersecção de inúmeros e conflitantes interesses.

Para Bujes (2002), a constituição do conceito de infância, tal qual o compreendemos, se insere num amplo projeto de constituição do sujeito moderno: um sujeito entendido como uma unidade indivisível – que tem um ‘eu profundo’ a sua essência sujeito – quanto como uma unidade que é única, singular, e que o diferencia de qualquer outro sujeito.

De fato, a infância, tal qual a conhecemos, tem sido discutida por vários autores (ARIÈS, 1981; CHARLOT, 1986; GHIRALDELI JR, 1997; FREITAS, 1997; BARBOSA, 1998; GÉLIS, 1991; FARIA, 1999; DEL PRIORE, 2000; GONDRA, 2002; 2004; BRANDÃO, 2002; KOHAN, 2003; KRAMER, 2003; VEIGA, 2004). O trabalho do historiador Ariès (1981) resgata o conceito de infância na história do Ocidente. Ele explicita que já houve uma época em que a infância era um tempo sem valor, sem condições afetivas, sem imagens, sem recordações, que se transmutou em um tempo de intensidades, de emoções, de envolvimento, havendo reconhecimento de seu espaço e de sua importância social, apesar de, antagonicamente, isso não se concretizar na vida de todas as crianças (MAGALHÃES, 2004).

Um contraponto às proposições de Ariès (1981) é dado por Kohan (2003) e Faria (1999). Para estes autores, entre os gregos já existia um sentimento de infância. Contudo, não pretendemos discutir aqui o trabalho de Ariès (1981). Pensamos que a singular polêmica surgida a propósito do seu trabalho leva a moderar suas teses, mas de forma alguma a ignorá-las. O que podemos destacar é que a ausência do reconhecimento das especificidades da infância não significava, entretanto, a ausência de afeição para com as crianças, pois, durante o curto período de duração dessa etapa de vida, os adultos tinham com elas uma relação de muitos mimos. Quanto ao reconhecimento da infância propriamente dito, este manifestou-se a partir do Renascimento, consolidando-se na Modernidade.

Esse fato expressa um momento muito importante na história do sentimento em relação à criança, marcando a sua saída do anonimato. Ampliando essa discussão, Gondra (2002, 2004) afirma que os séculos XV e XVI trouxeram, além da gradativa valorização da criança em si mesma, o reordenamento familiar e a constituição de novas relações afetivas entre os familiares. Mas não era porque a criança representava toda a família, e sim devido a uma preocupação com a higiene e a saúde física da criança, buscando evitar a sua morte.

Com o início do século XVII, concretiza-se então o nascimento do sentimento da infância, tal qual o conhecemos e com ele observam-se mudanças consideráveis, como por exemplo, a criança passa a ser o centro das atenções na família que, gradualmente, se vai organizando em torno dela. A percepção da particularidade infantil e o aparecimento da caracterização do sentimento infantil culminaram numa nova forma de tratar e educar as crianças. Ademais, o Estado também passa a demonstrar interesse cada vez maior em formar o caráter infantil dentro e fora da família, constituindo uma série de instituições com o objetivo de separar e isolar a criança do mundo adulto, dentre elas, a escola.

Gélis (1991, p.311) contribui com uma outra proposta para refletir a concepção de infância. Segundo ele, na Idade Média, houve uma “individualização da criança”, gestando uma nova discussão sobre a relação público e privado. O autor faz essa discussão sobre a imagem do corpo, que era muito diversa da nossa. Tal imagem era ambivalente, cada pessoa tinha o seu corpo e, no entanto, existia uma dependência em relação à linhagem e à solidariedade de sangue, tal que o indivíduo não podia sentir seu corpo de forma autônoma ou privada:

esse corpo era seu, mas também era um pouco os ‘outros’, os da grande família dos vivos e dos ancestrais. Nesse imaginário, a criança era considerada um rebento do tronco comunitário, uma parte do grande corpo coletivo que, pelo engaste das gerações, transcendia o tempo, pertencendo, assim, à linhagem tanto quanto aos pais: a criança era uma criança pública (GÉLIS, 1991, p. 312).

Público e privado eram interdependentes; a situação da criança dependia tanto de um como de outro espaço. Se o seu nascimento ocorria num local privado (quarto dos pais), não ocorria de forma reservada. Ao contrário, acontecia na presença de um grupo de parentes e vizinhas que transformavam o nascimento em ato público.

A educação da criança na perspectiva de Gélis (1991) deveria direcioná-la à obediência a uma hierarquia familiar e social, reforçando uma forma de educação em comum, um conjunto de influências que faziam de cada ser um produto da coletividade, preparando cada indivíduo para o papel que dele se esperava. Sob o prisma da necessidade de continuação da linhagem familiar, constatamos nas reflexões do autor a presença de certo sentimento de infância na Idade Média, apesar de Ariès (1981) não o ter reconhecido.

Uma outra perspectiva interessante são as concepções de infância presentes no pensamento pedagógico contemporâneo. Para Charlot (1986), elas trazem um significado ideológico que conteria concepções contraditórias, o que nos levou a entender a natureza da infância contraditória em si mesma.

Segundo Charlot (1986), são quatro os modelos das concepções: 1) a criança é inocente e má – idéia da criança como ser espontâneo, franco e que exprime seus sentimentos e emoções sem as preocupações com o mundo adulto; 2) a criança é perfeita e imperfeita – tem características positivas de comportamento e de caráter, mas apresenta, ao mesmo tempo, imperfeição atual e promessa de perfeição; 3) a criança é dependente e independente – ela é totalmente dependente do adulto, no entanto, também pode vir a ser independente; 4) a criança é herdeira e inovadora –continua a obra do adulto e lhe dá certa forma de perpetuidade; paradoxalmente, ela é a perpetuação de nossa vida e o anúncio da nossa morte.

Estes aspectos do sentimento de infância, que se traduzem em parte na proposta de Ariès (1981), como paparicação e moralização, são aparentemente contraditórios. Mas, na verdade, e de acordo com Kramer (1999), eles completam-se na concepção de infância enquanto essência infantil. Para a autora brasileira, a visão da criança baseada numa concepção de natureza infantil, e não na análise da sua condição, mascara a significação social da infância. Neste sentido, as intervenções do adulto e da sociedade quanto aos meios, às técnicas, à puericultura, possuem um simples caráter instrumental, e colocam o adulto como um “tipo de prótese” que atenua provisoriamente a imaturidade infantil sem modificar, de fato, a condição dela. Conclui-se daí que “a dimensão sócio-afetiva da relação entre a criança e o adulto é, assim, ocultada por sua dimensão instrumental” (CHARLOT, 1986, p.106).

Ainda hoje a criança é vista de maneira paradoxal: por um lado, é tratada como símbolo de pureza, livre ainda das implicações trazidas pelo mundo do trabalho; por outro, é associada à idéia de futuro e passa a ser considerada a partir daquilo que ainda não é, mas que, supostamente, se tornará, se orientada pela lógica do trabalho e da produção (FARIA, 1999; MAGALHÃES, 2004).

A par de um conceito de infância, tomaram forma outros conceitos como o de família, escola e educação, e todos têm algo em comum: convergem para um investimento numa nova sociedade em formação (BUJES, 2002).Vemos, então, uma educação que começa a apresentar os rituais de iniciação à vida adulta e, com eles, diferenciados sistemas de “coerção física” e “material”, entendidos como ensinamentos necessários à formação daqueles que estavam entrando no mundo da vida industrial. Ramos (2002) discute esta mesma idéia. Para ela, o ensino levado a cabo pelas escolas tinha o objetivo de formar trabalhadores, já não tinha como meta somente o ato de disciplinar, mas conferir ao trabalhador o domínio de um ofício. A escola tornou-se, então, o espaço específico de adaptação às regras e aos valores sociais de transmissão dos saberes, necessários para as novas gerações serem inseridas na sociedade. Assim, ela normatizou e homogeneizou os sujeitos (BUJES, 2002).

Como um ser incompleto, que ainda vai desenvolver suas habilidades, a criança é perfeita e imperfeita, dependente e independente, herdeira e inovadora. É submissa e não pode decidir por si mesma; antagonicamente, anseia-se por sua autonomia e independência em um quadro social determinado (CHARLOT, 1986; MAGALHÃES, 2004).

O pressuposto de uma natureza infantil, então, opaciza o caráter social e histórico da infância e a noção que se faz dela, pois dissimula a relação da criança com o adulto e com a sociedade. As tais carências infantis e familiares relacionam-se com o discurso que historicamente serviu para justificar e manter as propostas de educação infantil aparentemente excludentes. Ora denominadas assistencialistas, ora educacionais, de qualquer forma essas idéias tomam as crianças apenas nos seus limites “privilegiando uma idéia de infância abstrata, sem preocupar-se com o marco da existência concreta de cada criança” (BARBOSA, 1999a, p.3).

Nessa lógica não há espaço para a infância de direitos, visto que ela se torna alvo de assistencialismos diversos, que de modo contraditório negam a possibilidade de cidadania e dissimulam a exclusão e o antagonismo das relações sociais (KRAMER, BAZÍLIO, 2003). A cidadania está limitada à condição de ser consumidora, erotizada pela mídia, mimetizada. A criança passa a ser um “corpo-que-consome-corpo”, isto é, um sujeito que se reduz ao corpo e ao consumidor que ele pode vir a ser (GHIRALDELLI JR., 1996, p. 37).

A criança é transformada em mercadorias de uma época e passa a transitar erraticamente entre adultos que não sabem mais o que fazer com ela. Esse quadro contemporâneo produz uma época de desencontros, que se reflete na educação infantil. Afinal, não há tempo para brincar, trocar afetos, aprender valores. Não há tempo para atividades que não sejam consideradas como trabalho, que não estejam voltadas para o imperativo da produção. E as políticas educacionais contribuem para alimentar o processo de exclusão e reprodução das desigualdades sociais que o sistema impõe. Nesse caso, podemos afirmar que a educação moderna busca assegurar a governabilidade das crianças (RAMOS, 2002).

A normatividade que estará presente no centro dos processos educativos das crianças é discutida por Bujes (2002). Para a autora, a individualização dos sujeitos infantis envolveu processos de repartição disciplinar, enquanto operações sobre os corpos, a fim de assegurar seu ajuste como adultos. Essas idéias permitem explicar o surgimento das instituições de Educação Infantil, mostram que carregam em si a idéia de uma intervenção científica e passam pelo estabelecimento de uma aliança entre diversas instâncias e instituições sociais. A infância, segundo esse entendimento, passa a ser um campo privilegiado de intervenção social, de controle e regulação e, segundo Bujes (2002, p. 42), “de exercício de poder e de saber”.

Não é de se estranhar que a grande expansão de instituições de Educação Infantil, no século XIX, na Europa, especialmente aquelas destinadas aos extratos pobres, fosse considerada como prova de civilização e estivesse alicerçada na concepção assistencialista científica a essas populações (KHULMANN JR, 1998; BUJES, 2002). Esse fato repete-se no Brasil, marcado pela influência da classe médica nos movimentos de assistência à infância, especialmente naqueles associados com a implantação de creches e outras iniciativas de proteção à criança.

De acordo com Bujes (2002, p.42), essa idéia, a Educação Infantil, tal como a conhecemos, é fruto de uma aliança estratégica entre aparelhos administrativo, médico, jurídico e educacional, incluindo-se aqui a família e a escola, devidamente assessorados por um saber científico. “Ainda que tal aliança não exista a partir de uma intencionalidade prévia, ela tem por finalidade o governo da infância, a fabricação do sujeito infantil”.

Na década de 1980, na Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pelas Nações Unidas (1989), consagrou-se, de forma objetiva e extensa, um conjunto de direitos fundamentais relativos à infância e sua educação. Muito embora quase todos os países do mundo assinassem essa Convenção, não foi efetivamente garantida a melhoria nas suas condições de vida. O que temos é uma infância que passou a ser objeto de políticas educacionais, de controle e de disciplina, ao invés de políticas de proteção, como seria o esperado, desejado e propagado (GONDRA, 1980; KHULMANN JR, 1998; FARIA, 1999; BUJES, 2002; RAMOS, 2002; KRAMER e BAZÍLIO, 2003).

Na lógica das terras brasileiras, as políticas para a educação da infância modificam uma série de atitudes em relação às crianças. Elas passaram a ocupar um novo espaço social, mas um espaço controlado, administrado. Como diz Faria (1999, p. 68), “o educar só vê uma forma possível de atuação: levar em consideração o binômio atenção/controle”.

Podemos observar que, nas décadas de 1970 e 1980, com o processo conhecido como Abertura Política, houve uma intensificação de um rico debate entre educadores brasileiros sobre a função social da educação, especialmente da escola. Lembramos que as famílias e suas práticas educativas não estavam fora deste contexto. A produção teórica resultante contribuiu no sentido de repensar a visão reprodutivista da educação, que vinha sendo dominante nos meios mais progressistas da intelectualidade brasileira (BARBOSA, 1998). As crianças, por sua vez, foram colocadas no centro das reflexões de grupos que integravam movimentos sociais e sindicais, entre outras questões, e que procuravam promover uma reflexão mais crítica sobre as questões sociais, aprofundando a dimensão política que se esboçava naquela época.

Autores de renome, como Saviani (1982), retomando de certa forma uma tradição entre alguns educadores brasileiros, como Anísio Teixeira (1978) por exemplo, defendem a escola como lócus privilegiado para se educarem as classes trabalhadoras, porém, defendendo apenas o ensino básico e acusando o uso da pré-escola como arma de mero assistencialismo e de compensação. Essa proposta, segundo Barbosa (1997),

acabou condicionando a análise da teoria da privação à negação da expansão da pré-escola, demonstrando uma incompreensão, até por parte de educadores progressistas, configurando-se uma discussão intrusa e sem sentido, enfim, um problema de "segundo plano". Essa idéia, certamente, acaba fortalecendo a concepção de que a criança pequena deveria ser educada pela própria família, sempre que isso fosse possível, como já se via a defesa existente desde o início do século XX no Brasil (BARBOSA, 1998, p. 02).

Não foi por acaso que a análise dos temas relacionados à infância e à educação revestia-se também de forte significado sociológico, político e ideológico. Questões relativas à exploração social, à dominação política e econômica e ao papel da educação na (re)produção da desigualdade social ou na transformação estavam em pauta. Contraditoriamente, a definição, pela Unesco, de que 1979 seria o Ano Internacional da Criança forneceu um pretexto para o mergulho no trabalho teórico com o objetivo de compreender a visão da infância presente no senso comum e na pedagogia.

Naquela época, uma versão marginalizada e preconceituosa das crianças das classes populares tendia a tornar-se hegemônica, de tal modo que a infância pobre e o fracasso escolar apareciam como um insuperável problema social (PATTO, 1996). Mas por que essas crianças não aprendiam ou falhavam?

Se antes e no decorrer da Segunda Guerra a origem da diversidade era localizada em aspectos de natureza genética, ou seja, no determinismo biológico de cunho racista, num quadro desumano de discriminação e eliminação da diferença, na década de 1970, desviou-se o curso da análise para a abordagem da privação cultural1. Observou-se, também que, nessa mesma época, vários estudos apontaram suas preocupações para com a infância, decorrentes do novo modelo de família, caracterizado pelo ideal de liberdade associado ao de consumo, sucesso associado ao trabalho que, de alguma maneira, relacionava-se com o ideal de escolarização dos filhos.

As disparidades sociais continuaram, contudo, a existir. Se pensarmos na educação das crianças negras, filhos de imigrantes, indígenas, pobres, concluímos que o centro da idéia da privação cultural propunha uma educação compensatória de carências e esta era pautada num conceito abstrato de criança, delineado com base em padrões fixos de desenvolvimento, de linguagem e de socialização. Enfim, como afirma Faria (1999), uma infância definida pela falta; por aquilo que ela não é, não tem, não conhece. A criança era compreendida pela negação da sua humanidade e precisava ser moldada para tornar-se alguém no futuro, quando deixasse de ser criança. Afinal, para que as famílias desfavorecidas alcançassem um futuro melhor, os pais deveriam prover esforços diários de trabalho e esforço pela escolarização dos filhos.

Essa seria uma proposta emancipatória? Provavelmente não. Não é para as famílias e, muito menos, para a infância. Pensamos diferentemente a emancipação da infância. Na medida em que se trata de gerar relações mais livres em nossa própria subjetividade, parece-nos que toda emancipação real é uma emancipação que cada um constrói, pois ninguém emancipa ninguém. Para Foucault (2001), o caso da infância é exemplar. Em nossa sociedade, ela é uma figura do tutelado, do campo no qual se exerce o pátrio poder, que não é dono de si nem daquilo que precisa. A infância tem sido um dos símbolos mais fortes da ausência de liberdade. Talvez também por isso seja uma figura interessante para pensar a emancipação.

Por isso o Estado vinculou-se definitivamente às crianças, organizado para cuidar e interferir em vários aspectos da socialização da infância, como na educação, na proteção e assistência às crianças. Se algo desse errado, tratava-se de culpabilizar as famílias e os grupos sociais, desviando-se das políticas públicas e de seus efeitos e designando a pré-escola como solução redentora, mágica e imediata da situação.

Em função disso, dentre outras razões, intensificava-se o debate político-educacional nas décadas de 1980 e 1990, ocorrendo uma mudança qualitativa no discurso oficial sobre a criança e a sua educação. Firma-se, a partir de então, um consolidado marco teórico, militante, de clara visão política em defesa da infância, que passa a ser considerada, na sua dimensão, cidadã de direitos (JOBIM e SOUZA, 1994; BARBOSA, 1999; FARIA, 1999; KRAMER e BAZÍLIO, 2003). Neste sentido, as crianças passam a ser encaradas como pessoas, como cidadãs do ponto de vista constitucional. Mas sabemos que isto está longe de se tornar uma conquista de fato.

Neste sentido, a concepção de infância foi acompanhada por uma nova proposta educacional que passou a ocupar um lugar central na agenda política, mobilizando parte da intelectualidade brasileira no âmbito de um processo mais amplo de discussão na sociedade. A modelação da infância situava-se como elemento de importância essencial e a criança somente adquiria importância como futuro adulto, e o indivíduo apenas encontraria lugar como membro da coletividade social, sendo esse adulto esperado (BUJES, 2002).

Se prestarmos atenção, mesmo correndo o risco de uma simplificação, veremos que o atendimento à infância brasileira pode ser sistematizado como uma categorização que expressa discursos sobre a infância, sua vida cotidiana, sobre o modo como a criança é educada e sobre as políticas educacionais que vão sendo propostas para atender suas necessidades.

Identificamos cinco diferentes modelos: A primeira categoria, que está presente desde o descobrimento e existe até os dias atuais, pode ser descrita como Filantropia ou Assistencialismo. Esse modelo foi proposto para resolver ou minimizar os problemas sociais e morais atribuídos à pobreza. Sempre esteve, em suas origens, associado a uma visão pejorativa das classes populares, vistas como ameaçadoras do equilíbrio social. Sob o véu de uma moralidade religiosa, centralizada na idéia de salvar a alma da criança e torná-la temente a Deus, valoriza em extremo a obediência. A criança é vista como um ser passivo nas mãos dos adultos e da religião. Essa categoria ainda está presente nos nossos dias e caracteriza a criança como objeto de caridade, distante do sujeito de direitos. É interessante observar que, como mostra Barbosa (1999a, 1999b), essa idéia de uma infância, cuja natureza manifesta carências naturais, relaciona-se com o discurso que historicamente serviu para justificação e manutenção às propostas de educação infantil, aparentemente excludentes. Ora são denominadas assistenciais, ora educacionais, manifestando uma lógica que não abre espaços para a infância de direitos, pois se torna alvo de assistencialismos diversos, que negam a possibilidade de cidadania e dissimulam a exclusão e o antagonismo das relações sociais. (OLIVEIRA, 2002; MACHADO, 2002).

O atendimento à infância, dessa ótica, estava longe de preocupar-se com o bem estar da criança. Muitas vezes, o que gestava a movimentação do setor privado era a idéia de tomar posse dos recursos públicos. Observa-se que a assistência à infância sempre se situou como resultado de uma articulação de forças jurídicas, empresariais, políticas, médicas, pedagógicas e religiosas em torno de interesses sustentados por três influências básicas: a médico-higienista, a jurídico-policial e a religiosa (KUHLMANN JR., 1998; BUJES, 2002; KUHLMANN JR e FERNANDES, 2004; GONDRA, 2004).

A proposta higienista, segunda categoria que identificamos, desenvolve ações profiláticas, voltadas para a constituição de uma sociedade saudável. Esta proposta não busca mais a alma pura da criança, mas a sobrevivência e um corpo sadio, aliado a um caráter igualmente são. As crianças são agora submetidas a um treinamento intensivo, para, por meio da regularidade de hábito e da total ausência de satisfação das suas “vontades”, aprenderem a ser autodisciplinadas. Portanto, a criança ideal ainda é aquela que segue rigorosamente as regras que o mundo adulto impõe, que não levanta a voz para questionar as ordens que recebe, que é limpa, correta e rigidamente preparada para enfrentar a juventude. A proposta pretende produzir sujeitos higiênicos, higienizados e higienizadores, preconizando, assim, a emergência de uma arte de dirigir a sociedade (FERREIRA, 2002; GONDRA, 2002; 2004).

A intervenção de natureza educativa sobre a criança deveria ser conduzida, num primeiro momento, pelas famílias, mas essas apresentavam seus limites no exercício de sua função educativa, e a proposta higienista apelava para as intervenções de apoio público. Logo, o Estado passou a responder a essa solicitação, pois não se podia responsabilizar unicamente a família pelas condições de desenvolvimento da criança, o que deu origem às novas políticas, acompanhadas de novas perspectivas de atuação (BUJES, 2001; CRAIDY e KAERCHER, 2001; OLIVEIRA, 2002; FARIA FILHO, 2004).

O Estado e a Medicina unem-se. Para o Estado, a educação da criança assumiu um cunho nitidamente social e ele tomou para si a incumbência do educar; na perspectiva médica, a criança passou a ser vista do ponto de vista da higiene social. Ao lado da idéia de defesa da infância, em relação às crianças abandonadas, defendida pela proposta assistencialista e filantrópica, a proposta higienista icluia a proteção de todas as crianças.

No movimento educacional renovador, um dos documentos mais importante do período em foco, no decorrer dos anos 1930, foi o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova (1932), ou simplesmente Manifesto dos Educadores. Trazia um quadro compreensivo das relações entre a organização familiar e a escola, mas, em suas entrelinhas, percebia-se a diretriz política para a consolidação da nossa futura sociedade (FREITAS e KUHLMANN JR, 2002; CARVALHO, 2002; VEIGA e FONSECA, 2003; FONTANA, 2003).

O Manifesto dizia que o Estado, ao reconhecer e proclamar o direito de todos os indivíduos à educação, assumia o dever de efetivar este direito e tinha que tratar a educação como uma função social e eminentemente pública. Incorporar a educação às funções essenciais e primordiais do Estado significava reconhecer que a família já não dava conta integralmente de suas tarefas neste terreno. Embora continuasse sendo o ambiente natural de sustentação da criança, conforme a proposta higienista, em que se formam as inclinações morais e os ideais de vida, a família perdera, em proveito da sociedade política, uma série de atribuições diante da concorrência de grupos profissionais orientados para a satisfação de interesses especializados.

Novas influências, a mesma época e o pensamento psicológico ajudam a alterar radicalmente os fundamentos da educação infantil. A vontade da criança deve ser respeitada, ela passa a ter voz e voto, pode e deve dizer o que pensa e de que gosta. Quanto mais cedo opinar e questionar, mais inteligente e de maior personalidade será considerada2.

O Estado, que por dever assumia então a tarefa de educar as crianças, não podia (e ele sabia) afastar-se da família, justamente por ser este o ambiente capaz de dar a base moral para as pessoas. A família, que perdera sua função de educadora, em seguida foi chamada de volta ao processo para auxiliar o Estado Educador.

Ao Estado competia normatizar a vida dos menores de idade, e o legislador não hesitava em entrar no âmbito do pátrio poder. Esta iniciativa do Estado não era simplesmente caridade, mas também um grande negócio para livrar-se, futuramente, dos males da criminalidade e da manutenção parasitária do delinqüente, do doente, do mendigo, de todos os valores sociais negativos (GONDRA, 2002).

Novamente temos o discurso que priorizava a educação de um sujeito em sintonia com as inclinações da ordem social. Ao assumir a incumbência de educar, o Estado tornou-se o fiscalizador que mantinha - e ainda mantém - a ordem pública e que policiava - e ainda policia - a infância das crianças pobres. Em vez de uma suposta mão amiga do professor, o Estado passou a utilizar-se da força que a lei impõe (SANTOS, 2000; DEL PRIORE, 2000; WESTPHAL, 2002; FARIA FILHO, 2004).

O quarto modelo caracteriza-se pela criação, pelo Estado Brasileiro, de um enorme corpo jurídico/institucional para o atendimento da infância. Lado a lado com o argumento econômico (melhorar a sociedade) e do modelo médico que assume a razão eugênica (aperfeiçoar a espécie) e adverte que depende do poder e da vontade do homem apurar os defeitos, temos o discurso jurídico, que preconizava a defesa da sociedade. A inobservância dos deveres sociais, morais e raciais conduziria a males profundos e graves perigos para os povos (brasileiros) que os desprezavam. Este processo teve início na década de 1920 e seguiu até os anos 1980 (DEL PRIORE, 2000; FREITAS e KUHLMANN JR, 2002; VEIGA e FONSECA, 2003).

A quinta categorização se refere à criança cidadã, concepção que se sobressaiu nas décadas de 1980 a 1990, e se caracterizou pela ênfase dada ao trabalho das Organizações Não-Governamentais (ONGs), pelo desmonte que o Estado Brasileiro efetiva em suas instituições de atendimento e pela participação da sociedade civil na elaboração de diversos documentos.

A comissão Criança Constituinte atuou no reconhecimento da educação de zero a seis anos como direito da criança. Conseguiu que a Constituição destacasse (art. 205) que a educação é direito de todos, princípio reafirmado no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA –, de 1990. Ainda quanto à participação popular e institucional em reconhecer direitos da criança, durante a elaboração da nova Constituição, foi redigido o primeiro projeto da LDB, figurando nela a educação infantil. Segundo o Projeto de Lei no. 1.258-B, de 1988, aprovado na Câmara Federal, no dia 13 de maio de 1993, que viria a dar origem à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), a Educação Infantil é entendida como a primeira etapa da Educação Básica, adquirindo legalmente especificidade (KRAMER e BAZÍLIO, 2003; FREITAS e KUHLMANN JR, 2002; MACHADO, 2002)

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), nº. 9.394, aprovada em dezembro de 1996, incorpora a Educação Infantil ao sistema de ensino, que passa a fazer parte da educação básica, destinada às crianças de 0 a 6 anos, em estabelecimentos como creches, pré-escolas ou similares, conforme artigo 208, inciso IV da Constituição.

É interessante notar que os textos da lei foram elaborados com participação de setores organizados da sociedade, preocupados com o descaso manifestado na esfera dos executivos federais, estaduais e municipais. Um exemplo claro de tal descaso foi a promulgação do ECA, enquanto, simultaneamente, se retirou a possibilidade de sua efetiva implantação. Autores como Souza e Rizzini (2001), Souza (2001) e Westphal (2002) têm denunciado essa e outras contradições: se na lei está reconhecido o direito da criança à educação infantil, não se vêem políticas sociais amplas para a sua efetiva implantação, sobretudo, quando se trata de crianças de baixa renda.

Esse tema expressa bem o momento em que vivemos: uma enorme distância entre as intenções inscritas na lei e a realidade vivida pela maioria dos brasileiros. Vários autores concordam que há um divórcio entre a legislação e a realidade brasileira, e isso não acontece só recentemente. Nossa tradição cultural e política sempre foi marcada por essa distância e até mesmo pela oposição entre aquilo que foi posto no papel e o que se faz. Acrescente-se a isso um complicador: a falta de mecanismos operacionais para a aplicação das leis. A educação infantil não escapa dessa situação.

Esses aspectos vão caracterizando as políticas educacionais para a infância. As propostas educacionais são vinculadas aos sistemas sociais e produtivos, fundamentados em concepções politicamente dominantes. Com a globalização da economia e com a reestruturação produtiva, componentes macroestratégicos da acumulação flexível, modelo de desenvolvimento econômico hegemônico nas últimas duas décadas, passou a exigir novas configurações de proposta educacional, ainda que a concepção de criança moldável persistisse em sua amplitude.

Aqui a educação infantil se evidencia: quanto mais se exige de conhecimento do trabalhador, mais se amplia a necessidade de sua escolarização. Assim, a relação entre educação e trabalho, mediada no taylorista/fordista por modos de fazer ou mediada pela força física, passou a ser também mediada pelo conhecimento, compreendido como domínio de conteúdos e de habilidades cognitivas superiores (ALVES, 2002).

De acordo com Barbosa (1999), há uma mudança significativa dos procedimentos rígidos para os flexíveis, que atinge todos os setores da vida social e produtiva nas últimas décadas, passando a exigir o desenvolvimento de habilidades cognitivas comportamentais, tais como criatividade, comunicação clara e precisa, interpretação e uso de diferentes usos da linguagem, capacidade para trabalhar em grupo, gerenciar, criticar, avaliar, resistir a pressões, enfrentar mudanças permanentes, aliar raciocínio lógico-formal à intuição criadora, estudar continuamente. Poderíamos ainda continuar uma lista exaustiva de necessidades.

Essas exigências do mundo do trabalho demandam um novo modelo de educação, sistematizado e intencional, que é o da ampliação dos processos escolares, com base em uma determinada concepção de sociedade. Esse contexto, por demais conhecido por nós, reflete o que está acontecendo na área da educação infantil.

O modelo de educação proposto é cruelmente elitista, mas perfeitamente orgânico às novas demandas do mundo do trabalho flexível na sociedade globalizada.

A educação passa a ser encarada como uma política social e se atribui a ela uma importância vital e indispensável, na medida em que a mesma é responsável pela formação do homem neoliberal competitivo, capaz de passar pelas provas que o mercado impõe, e capaz de adaptar-se às suas flexibilidade. Por isso o mercado investe no “Capital Humano”, no indivíduo (ARCE, 2001; FRIGOTTO, 1999). A educação deixa de ser encarada como direito e se torna uma mercadoria escrava dos princípios do mercado, atrelada a um reducionismo economicista de sua função.

Soma-se a essa receita as normas ditadas pelo Banco Mundial, pela Unesco e pela Unicef, delimitando as políticas educacionais. Na Conferência Mundial de Educação para Todos de 1990, realizada em Jomtien, estas instituições delimitaram as diretrizes a serem seguidas para a educação e que têm como seu eixo articulador as necessidades básicas de aprendizagem (NEBA), “entendidas como conhecimentos, capacidades, atitudes e valores necessários para que as pessoas sobrevivam, melhorem sua qualidade de vida e sigam aprendendo” (ARCE, 2001, p. 260).

O relatório da Unesco, de Jacques Delors, intitulado “Educação: um tesouro a descobrir”, concluído em 1996, reforça esta proposta, assinalando que à educação cabe a descoberta de talentos e potencialidades criativas. Quatro novos pilares erguem a educação, fundamentados no prazer, no utilitarismo e no individualismo, encarados como investimento em Capital Humano competitivo no mercado de trabalho, tornando clara a nova tônica da educação e seus novos princípios: “aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos, a ser” (UNESCO, 1998, p.101).

Os quatro pilares aparecem impregnados de subjetividades, enfatizando as diferenças individuais como saudáveis, necessárias e como chave para o indivíduo achar seu lugar na sociedade. Estes pilares dedicam-se ao indivíduo e a toda sua vida. As necessidades básicas de aprendizagens devem ser trabalhadas com afinco, e a educação básica deve ser oferecida a todos, garantida pelo poder público, o qual deve minimizar os custos com parcerias, como garantia de eqüidade e qualidade. Isso servirá de base para que o indivíduo fique pronto para sua educação no trabalho (ARCE, 2001).

Entre as controvérsias hoje existentes, em relação a tendência da educação infantil, podemos destacar a dubiedade: quanto à segmentação (tanto entre os níveis creche e pré escola, quanto no nível social); quanto à lógica do atendimento (atendimento diferenciado X atendimento a todas as crianças); quanto à formação de professores (não fica claro o perfil do professor da educação infantil nem da LDB) e quanto ao financiamento (não há recursos destinados para a educação infantil).

O que estamos resgatando aqui não é novo, porém ainda é válido discutirmos a forma estratificada de como se vê e de como se educa a criança hoje, em pleno século XXI. A criança continua sendo tratada como problema ou formada para o “futuro do mercado de trabalho”, não existindo clareza quanto à dialeticidade dos vários aspectos do seu aprendizado, do seu desenvolvimento e sobre a importância da sua educação, enquanto parte de um projeto transformador da realidade desigual brasileira (OFFE, 1984, p.71).

Essa lógica autoriza-nos a dizer que nunca se gostou tanto das crianças e, ao mesmo tempo, que se“produz” cada vez menos crianças e cada vez mais se dispõe de menos tempo e espaço para elas. Concordamos com o posicionamento, de Barbosa (1999, p.10), quando afirma:

não houve na nossa história uma preocupação afetiva em formá-los para assumir a postura de independência e autonomia intelectual frente à criação de propostas curriculares, que lhe exigem ter segurança de ações e percepção de projetos para a criança de até seis anos de idade.

Bastava que se cuidasse do seu espaço, tornando-o menos perigoso, mais higiênico e o mais aconchegante possível.

O momento atual indica a necessidade de resistência e embate contra-hegemônico na educação, tão necessário para a superação de toda a forma de desigualdade e exclusão. O combate ao neoliberalismo na educação, lembrando Frigotto (1999), é uma das tarefas nessa luta contra-hegemônica, acenando possibilidades de atingirmos novos patamares no processo de transformação da realidade. Observamos que se faz necessário priorizar o ensino de valores e princípios fundamentais na educação infantil, afirmar a liberdade, a autonomia e a qualidade, os princípios de democracia e solidariedade, mas não como fazem os neoliberais, com a regulação do mercado ou da lei do mais forte. Mesmo que não haja, como dissemos, o empenho político para a lei tornar-se realidade, o direito é posto e a sua reivindicação é certa. E, talvez, um dia, em breve, nossas crianças deixem de ser cidadãs de quinta categoria.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Solange Martins de Oliveira Magalhães
E-mail: smom@terra.com.br

Ivone Garcia Barbosa
E-mail: garciasoares@cultura.com.br

Recebido em: 20/07/2004
Aceito para publicação em: 09/09/2005

 

 

NOTAS

* Doutoranda e Mestre em Educação pela Universidade federal de Goiás/UFG. Docente da Faculdade de Educação da UFG.
** Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo/USP Docente da Faculdade de Educação da UFG.
Resgatamos nas discussões de Offe (1984) as idéias sobre os modos de interação dominantes. Estes, para o autor, favorecem uma categoria de agentes e resultam na exploração de outros, ocasionando uma dispersão do poder social. Então, se na fase atual o lema mais adequado no mercado de trabalho talvez seja “formar para explorar mais e melhor”, a infância tem que ser inserida nesta lógica de mercado.
1 Essa discussão é apresentada, detalhadamente, na obra de Maria Helena Patto (1996) e Sônia Kramer (2003).
2 Gondra (2002) afirma que os séculos XV e XVI trouxeram, além da gradativa valorização da criança em si mesma, o reordenamento familiar e a constituição de novas relações afetivas entre os familiares. Veja também em Lopes, E. M. T. (2002). A Psicanálise aplicada às crianças do Brasil. In: Freitas, M. C. de; Kuhlmann Jr., M. (orgs.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002.

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