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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.5 n.2 Rio de Janeiro dez. 2005

 

EDITORIAL

 

Vozes e ecos da psicologia

 

Psychology: voices and echoes

 

 

Anna Paula Uziel1; Eleonôra T. Prestrelo; Ariane P. Ewald; Deise Mancebo; Leila Torraca de Brito2

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 

Este número da revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, apesar de manter as seções tradicionais da revista, com a diversidade temática que lhe é peculiar, inaugura uma modalidade no formato da publicação: a seção temática. A Seção Temática reúne textos de autores com inserções institucionais variadas, de diversos pontos do Brasil e de outros países, com o objetivo de trabalhar focos diferentes de um mesmo campo teórico ou de atuação da Psicologia.

Três artigos iniciam a revista, autônomos em relação ao tema central do número. O primeiro, “Pode realmente haver uma ciência natural da ação humana?”, de Sergio de Oliveira, critica a posição que defende a descrição universal da ação humana, tendo como norte as ciências naturais, lembrando que é preciso reconstruir a riqueza dos sentidos. Se por um lado, o debate a respeito da cientificidade da Psicologia já teve sua época áurea, por outro, é sempre uma questão atravessada por preocupações mais filosóficas e que tem implicações diretas no exercício da profissão, especialmente as éticas.

O artigo de Elizabeth Maria Aragão, Maria Elizabeth Barros de Barros e Sonia Pinto de Oliveira, “Falando de metodologia de pesquisa”, traz importantes contribuições para as discussões sobre Metodologia de Pesquisa, sobretudo pelo entendimento das autoras de que tratar desse tema é fazer escolhas éticas e políticas.

Em “A influência de estados emocionais positivos e negativos no processamento cognitivo”, Mara Sizino da Victoria, Adriana Benevides e Patrick Barbosa Moratori estudam questões relativas à psicologia da emoção e psicologia cognitiva. Trata-se de uma pesquisa experimental que compara a ativação de nodos emocionais e nodos cognitivos e convida o leitor para novas pesquisas na área.

As duas resenhas têm um eixo comum: a contemporaneidade. Uma discutindo relações amorosas, e a outra, indústria cultural. Em “Os Caminhos Filosóficos do Amor”, título também do livro de Maria de Lourdes Borges, Leandro Castro Oltramari retrata a temática atual de que trata a obra: o amor, “preocupação de gerações, tão banal quando difícil de reflexão e menos ainda conclusão”. Através de uma viagem pela Filosofia, no livro busca-se transparecer a posição e a compreensão de diversos autores a respeito desse “algo” de difícil definição. Tão difícil e desejado que, segundo o autor da resenha, gera uma pergunta inevitável: por que tentar racionalizar isso que não se consegue nominar, mas fascina, dá vida, e ocupa lugar tão fundamental na vida dos sujeitos?

A outra resenha, “Narcisismo e Publicidade: uma Análise Psicossocial dos Ideais do Consumo na Contemporaneidade”, de Maria Cláudia Tardin Pinheiro sobre o livro de Maria de Fátima Vieira Severiano, convida os leitores a debruçarem-se sobre o cruzamento entre publicidade, consumo e processos de individuação. É um trabalho comparativo entre Brasil e Espanha. Pinheiro afirma ainda que se trata de uma discussão teórica sobre os possíveis efeitos psicossociais da unidimensionalização do homem numa cultura narcísica.

A Psicologia Jurídica concentra a seção temática deste número, com artigos e uma comunicação de pesquisa. Nada mais natural, já que a UERJ é pioneira neste campo, possui um curso de especialização na área e diversos pesquisadores debruçados sobre o tema, que conferem à Universidade um reconhecimento consolidado, adquirindo cada vez mais parcerias e interlocuções.

Nos últimos anos tem crescido significativamente o campo da Psicologia Jurídica no Brasil, o que contribui não apenas para a construção de uma especialidade, com a vastidão que essa proposta deve gerar, mas para a articulação de questões em torno da prática do psicólogo, sobretudo quando dialoga com saberes em seus supostos espaços.

É notório o interesse pela área em disciplinas de graduação, no aumento da procura pelos cursos de especialização área que atualmente são oferecidos por algumas instituições universitárias e nas temáticas de dissertações de mestrado e teses de doutorado que versam sobre o campo. O número de publicações, antes escasso, aumenta, em decorrência desse movimento, trazendo para a academia e aqueles que atuam diretamente nos serviços, uma sistematização maior do conhecimento e das reflexões em Psicologia Jurídica.

No Rio de Janeiro, o primeiro concurso para o Tribunal de Justiça contribuiu para despertar o interesse de alunos que sequer tinham tido acesso à disciplina na graduação. Não apenas a possibilidade de ampliação de chances no mercado de trabalho, mas o contato com conteúdos exigidos pelo concurso entusiasmaram um debruçar-se sobre o campo, levando muitas vezes o psicólogo a buscar aprimoramento na área.

Esther Arantes (2004) retoma a crítica de Canguilhem (1973) à Psicologia, saber que ele define como, muitas vezes, “uma mistura de filosofia sem rigor, ética sem exigência e uma medicina sem controle” (p. 104/105). Ela recorre a este autor para falar do incômodo gerado pelo lugar que o psicólogo ocupa quando trabalha junto às instituições do Direito e lança um desafio importante: encontrar um rigor próprio às Ciências Humanas.

A Psicologia Jurídica experimenta diferentes dificuldades no seu exercício e nem sempre são de responsabilidade da hegemonia da justiça, ou das demandas por ela encaminhadas à Psicologia, como muitas vezes é diagnosticado. A “construção da verdade”, tão bem discutida por Michel Foucault, aparece de diferentes formas nesta relação com o Direito e nem sempre os dois campos têm as mesmas preocupações e entendimentos: a respeito do sujeito e da própria verdade.

No entanto, não é possível atribuir a responsabilidade pela normatividade do trabalho do psicólogo ao pedido formulado pelo Direito burocrático, dogmatizado e repressor (VERANI, 1994). O conjunto dos artigos a seguir inspira-se na busca de alternativas de atuação profissional na esperança, como diz Arantes (2004), “de que a Psicologia possa ser exercida de uma outra forma, além de trazer à luz o enorme sofrimento causado pelo encarceramento de adolescentes” (p. 46) e de tantos outros encarceramentos a que estamos submetidos e submetemos.

É bastante diversificada a atuação do psicólogo neste campo, cobrindo desde órgãos governamentais como Tribunal de Justiça, Conselhos de direitos da mulher, sistema prisional, abrigos, até organizações não jurisdicionais como os conselhos tutelares e ONGs parceiras de projetos do Estado ou que desenvolvem suas atividades de forma autônoma na área da infância, por exemplo. Nessa sessão temática, vamos tratar de algumas dessas áreas de discussão e atuação.

“Infância e juventude” é uma das áreas mais ricas e diversificadas da Psicologia Jurídica. Especialmente a infância pobre no Brasil acaba sendo atriz principal das situações que envolvem a criança e o adolescente com a lei. Tanto quando comete o ato, quanto em situações em que é “objeto”. Em ambos os casos, a compreensão e o exercício da legislação atual parecem perpetuar o conceito de “situação irregular” que dava sustentação ao antigo Código de Menores. Com a pobreza cristalizada, o difícil é estranhar o aumento de infrações, de crianças nas ruas, a crise da rede de assistência. Consolida-se, de forma bastante perversa, o binômio pobreza-criminalidade. Embora sejam ambos efeitos da falta de políticas públicas, com muita facilidade se olha para a situação individual de cada criança, perdendo-se a dimensão de produção social do problema.

As chamadas “classes perigosas”, expressão que dá nome ao livro de Cecília Coimbra (2001), produzem e reproduzem essas crianças que circulam no espaço público das cidades, insistindo em demonstrar a desigualdade que a Psicologia não deve iluminar como problema de cada um. O texto de Maria Lívia do Nascimento e Estela Scheinvar, ”Infância: discursos de proteção, práticas de exclusão“, resgata a produção histórica dos equipamentos de proteção à infância, problematizando o contexto em que foram gerados, para tratar de forma cuidadosa o discurso protetivo que exclui.

A adoção é uma das conseqüências da pobreza e da falta de políticas públicas. De tempos em tempos a adoção ganha a mídia, seja através de casos que envolvam violência ou personalidades, seja no formato de política pública, em ações municipais ou estaduais. “A demanda nos processos de habilitação para adoção e a função dos dispositivos judiciais”, texto de José César Coimbra, discute em que medida os procedimentos judiciais podem influenciar na definição de demandas nos casos de adoção. No Rio de Janeiro, segundo o autor, a preferência é por crianças com menos de dois anos de vida, branca e de sexo feminino. Assim, busca-se analisar como as restrições impostas à escolha do perfil do adotando poderiam - dentro de certos limites - criar novos tipos de demanda de adoção.

Ainda sobre infância e juventude, a discussão que envolve os conflitos com a lei é um tema que tem atraído olhares da mídia, dos governantes e da sociedade civil como um todo. Irene Rizzini (2005) diz que

“a despeito da ênfase nas idéias e nas práticas de democracia e direitos humanos, o mundo ainda não conseguiu resolver a contento o que fazer com a população jovem que infringe a lei, para além de submetê-la aos velhos presídios. (...) Os esforços de humanização do passado, buscando sobrepor a educação à punição dos menores de idade, vêm perdendo força diante dos desafios de governabilidade impostos pelo acelerado crescimento das cidades e pela escalada da violência agravada pelo fácil acesso a drogas e armas” (RIZZINI, 2005, p. 9).

Este trecho oferece a dimensão do contexto em que se colocam as questões discutidas por Cláudia Regina Brandão Sampaio Fernandes da Costa, em “É Possível Construir Novos caminhos? Da Necessidade de Ampliação do Olhar na Busca de Experiências Bem-Sucedidas no Contexto Socioeducativo”. O artigo busca refletir acerca das possibilidades das ações efetivas destinadas ao adolescente em conflito com a lei, com o intuito de promover transformações na vida desses jovens que passam pelo sistema. Apesar do quadro não ser muito promissor, há como localizar intervenções bem sucedidas em vários municípios do Brasil. A autora propicia uma reflexão acerca da importância das ferramentas do psicólogo, em especial a escuta, para o atendimento desses meninos, podendo gerar mudanças significativas em suas vidas.

A leitura de “De jóvenes, actos delictivos y responsabilidades”, de Liliana E. Alvarez., reforça a idéia de que a situação dos meninos e meninas pobres que cometem atos delituosos no Brasil não é realidade exclusivamente nacional. Ela trabalha com a idéia de vulnerabilidade social e entende que a violência é, muitas vezes, uma retomada do valor de si e a possibilidade de simbolizar algo que não foi possível para aquele jovem em um momento em que foi vítima dessa violência. O trabalho evidencia a dimensão de solidão desses jovens que se constroem em situações de anonimato. A autora toma para si o desafio de pensar se o jurídico pode ser um dispositivo que propicie a responsabilização subjetiva, não relegando a segundo plano a responsabilidade social.

Luciene Alves Miguez Naiff e Denis Giovani Monteiro Naiff, em “A Favela e Seus Moradores: Culpados ou Vítimas? Representações Sociais em Tempos de Violência”, investigam como cidadãos de classe média baixa percebem a violência atual, a favela e seus moradores. Os autores revelam a construção de uma relação direta entre os moradores da favela e a criminalidade, o que reforça a negação dessa população ao direito ao pertencimento.

“Perícia de danos psicológicos em acidentes de trabalho”, de Roberto Moraes Cruz e Saidy Karolin Maciel, trabalha a partir da idéia de perícia psicológica como uma prova consubstanciada em processos judiciais, adquirindo caráter de vistoria. As solicitações periciais resultam da necessidade de avaliar as condições de trabalho e repercussões no plano da saúde humana no que se refere aos aspectos psicológicos. A avaliação de dano psicológico constitui um desafio por parte dos profissionais psicólogos: no aspecto teórico, no sentido de definir dano psicológico; no metodológico, na caracterização das estratégias de diagnóstico de dano psicológico e no desenvolvimento de competências profissionais.

“PIVETES: uma singular experimentação”, como o próprio nome diz, é um breve relato do ousado e instigante trabalho de Cecilia M. B. Coimbra, Estela Scheinvar, Lygia S. M. Ayres, Maria Lívia do Nascimento, realizado na UFF. O próprio nome do projeto suscita um entendimento sobre seu objeto de cuidado. No entanto, a sigla já provoca um deslocamento necessário que evidencia a postura e o olhar que essas profissionais têm sobre a temática: Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social.

Contemplar uma seção temática sobre Psicologia Jurídica pretende significar um convite, um desafio, uma provocação para que psicólogos, operadores do Direito, assistentes sociais, estudantes, professores, enfim, todos aqueles profissionais que interagem com esses campos se sintam implicados na construção de novos olhares. Pois acreditamos, como diz Suely Rolnik, que “nossas práticas constituem-se num suporte privilegiado, embora não exclusivo, para a viabilização das mudanças que se impõem na atualidade” (ROLNIK, 1992, p. 8).

Este volume convida as leitoras e os leitores a uma reflexão ética sobre saberes que se cruzam e sustentam o cotidiano psi. Inspiradas em Canguilhem, podemos arriscar afirmar que longe de ter um campo pronto de trabalho e reflexão, a Psicologia deve aproveitar seu exercício de escuta para dialogar com o novo e estranhar o familiar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANGUILHEM, G. O que é a Psicologia, Epistemologia, 2. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro n. 30/31, jul./dez. 1973.

COIMBRA, C. Operação Rio: o mito das classes perigosas, um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Niterói: Intertexto/Oficina do Autor, 2001.

ARANTES, E. Pensando a Psicologia aplicada à justiça. In: GONÇALVES, H. S.; BRANDÃO, E. (Orgs.). Psicologia Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora NAU, 2004. p. 15-49.

RIZZINI, I. Prefácio. Caminhos para além das grades de ferro. In: ZAMORA, M.H. (Org.). Para além das grades: elementos para a transformação do sistema socioeducativo. Rio de Janeiro: Editora PUC/Edições Loyola, 2005. p. 9-12.

ROLNIK, S. Cidadania e alteridade. Trabalho apresentado no IV Encontro de Psicologia Social da ABRAPSO, São Paulo, abr. 1992.

VERANI, S.S. Alianças para a liberdade. In: BRITO, L.T. Psicologia e instituições de Direito: a prática em questão. Rio de Janeiro: UERJ/CRP, 1994. p. 5-9.

 

 

NOTAS

1 Professoras do Instituto de Psicologia da UERJ, editoras da revista.
2 Professora do Instituto de Psicologia da UERJ, que participou da organização da sessão temática de Psicologia Jurídica.

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