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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.5 n.2 Rio de Janeiro dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Pode realmente haver uma ciência natural da ação humana?*

 

Is a natural science of human really possible?

 

 

Sérgio Oliveira**

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Procura-se, neste texto, expor, de forma sucinta, a argumentação, com base na perspectiva de Clifford Geertz, segundo a qual a ação humana se torna um objeto falseado à medida que entendida pelas estratégias de investigação típicas das ciências naturais, as quais procuram fornecer alguma descrição universal da mesma. A contrapelo desta tendência, lembra-se aqui o vínculo da ação complexa com sentidos para sempre locais e a necessidade, em se observando tal ponto, de se imaginarem “descrições densas” que procurem reconstruir a riqueza e as particularidades desses mesmos sentidos, como se pertencessem a um texto literário.

Palavras-chave: Descrição densa, Ação humana, Antropologia interpretativa, Psicologia cultural.


ABSTRACT

In a brief way and based upon Clifford Geertz’s texts, this article aims at offering the reasons according to which human action is turned into a phony subject if conceived by the canonical stance of the natural sciences – mainly interested in universal descriptions. Contrariwise, it is reminded that complex action seems constitutively tied to local meanings and, exactly for this point, it is necessary to imagine “thick descriptions” capable of describing richly the particularities of those meanings, as if one were facing a literary text.

Keywords: Thick description, Human action, Interpretive anthropology, Cultural psychology.


 

 

O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é
quase infinitamente mais rico. (Mais ambíguo, dirão seus detratores; mas a
ambigüidade é uma riqueza.)
Jorge Luis Borges. “Pierre Menard, Autor de Quixote”. In: Ficções.

 

Em um ensaio, já tornado um clássico, datado de 1973, “Thick Description: Toward an Interpretive Theory of Culture”, Clifford Geertz afirma, como moral central a esse texto, a impossibilidade de entendermos uma cultura em se adotando a atitude do registro de fatos, típica das ciências naturais. Ao invés disto, sugere Geertz, o antropólogo deve, de maneira dramaticamente diversa, interpretar os fenômenos, tentando apreender o que eles significam para a comunidade em questão. O esforço deste tipo de intelectual, em que pesem todas as técnicas e os procedimentos etnográficos, é o do risco elaborado para compor uma “descrição densa” (1989, p. 15). Desta afirmação aparentemente familiar a qualquer mente ilustrada pelos mais básicos insights fornecidos, nas últimas décadas, pelo construtivismo lingüístico, deveríamos ter extraído conseqüências que, supomos, não fazem ainda parte do repertório tácito de crenças de grande parte de nossa comunidade de pensadores. Lembrar tais conseqüências, a propósito, é o objetivo principal do presente trabalho.

A expressão “descrição densa” é retirada dos escritos do filósofo Gilbert Ryle. Para ilustrar sua tese, Geertz explora o exemplo, oferecido pelo próprio Ryle, de dois meninos que piscam rapidamente o olho direito. O ponto todo é saber se se está, nestes dois casos, sempre e necessariamente, diante do mesmo objeto. Acompanhemos a exposição de Geertz:

Num deles, esse é um tique involuntário; no outro é uma piscadela conspiratória a um amigo. Como movimentos, os dois são idênticos; observando os dois sozinhos, numa observação “fenomenalista”, ninguém poderia dizer qual delas seria um tique nervoso ou uma piscadela ou, na verdade, se ambas eram piscadelas ou tiques nervosos. No entanto, embora não retratável, a diferença entre um tique nervoso e uma piscadela é grande [...]. O piscador está se comunicando e, de fato, se comunicando de uma forma precisa e especial: (1) deliberadamente, (2) a alguém em particular, (3) transmitindo uma mensagem específica, (4) de acordo com um código socialmente estabelecido e (5) sem o conhecimento dos demais companheiros. Conforme salienta Ryle, o piscador executou duas ações – contrair a pálpebra e piscar – enquanto o que tem um tique nervoso apenas executou uma – contraiu a pálpebra. Contrair as pálpebras de propósito, quando existe um código público no qual agir assim significa um sinal conspiratório, é piscar. É tudo que há a respeito: uma partícula de comportamento, um sinal de cultura e – voilà! – um gesto (1989, p. 16).

Ora, a diferença entre “comportamento” e “gesto” (um sinal intencional), traçada aqui por Geertz, a partir do exemplo de Ryle, acabará por se mostrar extraordinariamente fecunda. No momento, basta observar que, com o exposto, quer-se mostrar que uma cultura pode ser imaginada como sendo composta por um número virtualmente infinito desses sinais intencionais. Uma vez que tenhamos concordado com este ponto, uma cultura poderá, portanto, propor-se como um verdadeiro “texto”, o qual o antropólogo terá como tarefa interpretar. Ora, se isto for assim, a interpretação antropológica acabará por se apresentar, a princípio, como tão complexa e ricamente imaginada quanto os nuances de significado às quais podem se mostrar sensíveis os membros da própria cultura analisada.

Aqui, portanto, ao se fazer uso da metáfora do “texto” para imaginar o que é uma cultura, cabe, de imediato, a lembrança de um ponto complicador: os críticos literários, contemporaneamente, tendem a se afastar da tese de que um texto possa receber uma interpretação única, algo como “aquilo que realmente está ali a ser significado”. Um texto é marcado por uma ineludível polissemia, por uma multiplicidade de significações, acentuadas pelo ato da interpretação envolver o caráter ativo do leitor. Sendo assim, a Antígona de Sófocles, o Hamlet de Shakespeare, A Metamorfose de Kafka, a Busca do Tempo Perdido de Proust ou qualquer outra obra tendem a ser vistos, não como enigmas portadores de uma solução fechada, mas muito antes como textos “irônicos”, ou seja, como textos abertos, para os quais não mais se esperará de nenhuma interpretação que se lhe consiga justificar a pretensão de ser definitiva. Mais: onde a própria idéia de uma interpretação definitiva perde o sentido, pois tal processo de interpretação envolverá, sempre e incontornavelmente, como já assinalamos, uma reconstrução do texto examinado. Ora, tais idéias também decorrerão inescapavelmente da tática de procurar-se imaginar, agora, a cultura como um “texto” e parecem ser não só percebidas por Geertz como também francamente assumidas por este autor.

Os antropólogos deveriam, assim, segundo o mesmo autor, remover do horizonte de seus trabalhos a idéia de descobrir alguma verdade absoluta e objetiva. Eles não se comportam, decididamente, como decifradores de códigos, parecendo, antes, suas atividades muito mais, como já dito, com as do crítico literário (1989, p. 19). “A antropologia”, concluirá Geertz, “ou pelo menos a antropologia interpretativa, é uma ciência cujo progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que por um refinamento do debate” (1989, p. 39). Este é o preço aceito por “comprometer-se com um conceito semiótico de cultura e uma abordagem interpretativa de seu estudo” (1989, p. 39): o inescapável envolvimento com a visão de que todo texto antropológico é uma interpretação de segunda ou terceira mão (envolvendo uma inescapável recontextualização) e, como tal, “essencialmente contestável”, expressão feliz que Geertz toma de W. B. Gallie (1989, p. 39). A implicação incontornável aqui é a de que o “Continente do Significado” é inatingível para o investigador estrangeiro à cultura estudada: embora os significados de uma cultura sejam totalmente públicos, só podemos nos aproximar deles através de adivinhações, conjecturas (1989, p. 30-31). De maior importância: a analogia da cultura com o texto literário reside precisamente em podermos dizer que a interpretação de um antropólogo, por mais persuasiva que se mostre, está apenas a reconstruir, refrasear, redescrever, com os recursos de um vocabulário ainda alheio àquela cultura, aspectos entrevistos da exuberância de sentido e de recortes lingüísticos completamente imprevisíveis e inevitavelmente dessemelhantes daqueles com que se organiza nosso ponto de vista. Afinal, uma determinada ação nunca se encontra como item isolado, mas numa rede mais ampla cuja extensão e múltiplas possibilidades de articulação desconhecemos.

Neste sentido, o trabalho de Geertz sobre “a rinha de galos”, que acabou por iluminar aspectos da vida balinesa de imensa importância, não cessa de ganhar novas possibilidades de interpretações para além daquele seu clássico texto (refiro-me a “Deep Play”), o qual nos surpreendia, de forma crescente, a cada parágrafo com que se procurava lançar luz sobre seu objeto. Geertz, a propósito, sequer parece crer que possa mesmo haver um término para a atividade interpretativa. A certa altura deste seu texto, por exemplo, Geertz caracteriza aquela rinha de galos como “uma combinação de explosão emocional, situação de guerra e drama filosófico de grande significação para a sociedade [balinesa]” e, à luz do (con)texto em que aquela se inscreve, um outro conjunto de significados é aventado pelo autor: “É apenas na aparência que os galos brigam ali – na verdade, são os homens que se defrontam” (1989, p. 283). O olhar do antropólogo interpretativo descobre, então, haver ali uma tal relação autoral dos balineses com aquelas rinhas que haverá de transformá-la em algo como o equivalente do Rei Lear ou de Crime e Castigo. A rinha de galos “assume esses temas – morte, masculinidade, raiva, orgulho, perda, beneficência, oportunidade – e [...ordena-os] numa estrutura globalizante”, diz-nos Geertz (1989, p. 311). E, um pouco adiante: “Ela faz um construto desses temas e, para aqueles historicamente posicionados para apreciarem esse construto, torna-os significativos – visíveis, tangíveis, apreensíveis – ‘reais’ num sentido ideacional” (1989, p. 311). Enfim, conclui: “Uma imagem, uma ficção, um modelo, uma metáfora, a briga de galos é um meio de expressão: sua função não é nem aliviar as paixões sociais nem exacerbá-las [...] mas exibi-las em meio às penas, ao sangue, às multidões e ao dinheiro” (1989, p. 311; cf., também, p. 315-316).

Retomando: se somente o nativo pode fazer a interpretação de primeira mão, toda interpretação realizada por algum outro, por este exato motivo, segue sendo uma “ficção”, não no sentido de “algo falso”, mas no sentido original de “algo construído”, diz Geertz (1989, p. 25-26). E, embora seja assim, nada do que foi exposto até aqui deveria obrigar-nos a conclusões fatalistas: da afirmação de que nenhuma narrativa final poderá ser obtida no discurso antropológico não se deveria inferir que nada possamos aprender. E, é claro, uma interpretação construída continua sendo melhor que nenhuma interpretação. Não há por que mergulharmos em uma espécie de niilismo interpretativo. A propósito, em uma entrevista recente, Geertz procura desfazer o equívoco de que assumir, a partir de seu modelo, que o trabalho interpretativo com que o antropólogo está comprometido não conheça um ponto final pudesse implicar, de forma inexorável, a atitude do niilismo.

Eu não vejo qual é o papel do niilismo. Se você fosse niilista, nem começaria a interpretar. Não tentaria ao menos começar a entender os outros. Acho que há uma diferença entre o niilismo e uma simples ausência de certeza. É verdade que quase todas as interpretações antropológicas tenham por fim um resíduo de incerteza, de vagueza, indeterminação, contingência. Mas isso não é niilismo, isso é o modo como o mundo é. Se você for realmente um niilista, não se importará com nada, não tentará buscar compreender nada, não interpretará nada. Não escreveria – ao menos eu não vejo razão para que escrevesse – um longo livro sobre coisa nenhuma (GEERTZ, 2001, p. 6).

O que foi exposto até aqui só deveria servir para nos lembrar, primeiramente, da complexidade imensa que estará implicada em dedicar o tempo a descrever densamente uma cultura que se organiza por um vocabulário em muito incomensurável com o nosso e, depois, do quão longe estamos, com Geertz, da perspectiva (da qual Edward Wilson, o teórico da “consiliência”, é o exemplo prototípico) de que as ciências sociais poderiam finalmente se tornar tão rigorosas quanto a física, se fundamentadas na teoria evolucionista, na genética ou nas ciências cognitivas (WILSON, 1999). O problema com uma tal perspectiva é que ela insiste na crença em descrições de “fatos” comportamentais. No entanto, se atentarmos realmente à razão por que Geertz, baseado em Ryle, procurou distinguir “comportamento” de “gesto”, veremos o absurdo de virmos a pensar que estaríamos, tão-somente por conta da semelhança que podemos observar entre itens de comportamento destacados do contexto em que se inscrevem, diante de “uma mesma coisa”. Para lembrar a epígrafe deste trabalho, embora coincidam, “palavra por palavra e linha por linha”, as duas obras do belo conto de Borges, o Quixote de Cervantes em tudo difere daquele Quixote de Menard.

O ponto é que só conseguiremos obter tal identificação falseadora por conta de nossa obstinada negligência quanto à tarefa de reconstrução dos jogos de linguagem radicalmente diversos (ou seja, cujos termos não encontram qualquer possibilidade de tradução graças a uma metalinguagem comum) em que “aquelas” ações ganham significações completamente distintas. Não reconhecer este ponto simples é insistir numa muito apressada necessidade de encontrar identidades muito antes desejadas que convincentes e converter a sempre arriscada tentativa de compreender o Outro no monótono e estéril encontro do Mesmo pelo Mesmo. Narcísico e improdutivo desejo de eliminação deste Outro, sustentado pela desavisada estratégia da reprodução totalizadora do próprio reflexo. Cabe assinalar que fazê-lo, cremos, equivaleria mesmo a um erro moral, a saber, o do falso testemunho.

Reiteramos o ponto, uma vez mais: podem-se identificar fatos comportamentais (naquele sentido do naturalista) entre os animais, mas transpor esta estratégia metodológica para o entendimento da ação complexa de sujeitos humanos é querer desconhecer que estes se encontram submetidos à linguagem, o que significa dizer que seriam mais proveitosamente compreendidos se tomados como sujeitos constituídos em narrativas para sempre locais e, enfatize-se continuamente, irredutíveis a um vocabulário comum. É querer desconhecer que este sujeito é regido por um acordo lingüístico (para insistir na expressão de Benjamin Lee Whorf) e que exercerá um tipo de ação no mundo que se mostrará ininteligível para quem não leva em conta tal acordo (tácito, mas obrigatório na obediência a seus termos). O mundo dos sujeitos humanos, assim, seria mais interessantemente caracterizado como um mundo narrado – mundo, portanto, absolutamente não cognoscível em se negligenciando as específicas comunidades lingüísticas em que tal sentido é gestado. Poderíamos afirmar com Geertz que, a rigor, não há exatamente “comportamento” humano, mas sempre “gestos” humanos, os quais são indissociáveis do contexto narrativo que os constituem.

Ora, que conseqüências seguem-se desta ligação entre nossos atos intencionais complexos e as descrições que deles fazemos? Parece-me que a mais evidente é a de que uma determinada descrição da ação humana baseada em categorias universalistas, como as normalmente desenvolvidas pelas ciências naturais, torna-se completamente inviável para entendermos o texto particular que governa a ação dos membros de um dado grupo e exclusivamente em função do qual esta ação poderá ser razoavelmente entendida, seja este grupo os gregos do século V, os mandarins da Dinastia Sung ou os balineses estudados pelo próprio Geertz.

Ora, mas se isto é verdade, deveríamos abandonar, no entendimento da ação humana complexa, o desejo de fazer avançar a retórica objetivista dos cientistas naturais, para os quais é mais do que evidente que as metáforas desenvolvidas por seus trabalhos possuem “maior realidade” que as meras “ficções explicativas” elaboradas no interior de saberes meramente tradicionais.

E é neste exato momento que, neste trabalho, procuramos apontar para o ponto mais importante de toda esta questão. A defesa do raciocínio objetivista pode chegar mesmo a afirmar que somente uma posição obscurantista defenderia o valor cognitivo das descrições metafóricas locais que recebem sua força tão somente da tradição. Afinal, o emprego do método quer justamente um corte com as narrativas tradicionais. O biólogo não precisa, assim, para fins de construir conhecimento em biologia, debruçar-se sobre o Tratado da Alma de Aristóteles; o médico, quando de suas investigações, não priorizaria o Atlas de Anatomia de Vesalius e tampouco o geólogo voltado para os problemas de sua disciplina necessitaria de alguma consulta aos Princípios de Lyell.

Da mesma maneira, segue o tal raciocínio objetivista, o estudioso da ação humana poderia (em realidade, deveria), desconhecendo por completo as idéias “folclóricas” com que se vêem os próprios sujeitos estudados e reunidas em suas descrições quotidianas, procurar construir um conhecimento sobre por que tais sujeitos agem como agem. O cientificismo de B. F. Skinner, sem dúvida, foi o exemplo mais radical desta posição, mas nem de longe é o único. Em realidade, este é o senso comum de muitos teóricos da psicologia, disciplina que foi construída sob o ideal de ego das ciências naturais, a despeito das advertências já adiantadas por Wilhelm Wundt, na sua Psicologia dos Povos, sobre a necessidade de se estudarem “os processos espirituais superiores” recorrendo-se à história e a etnografia.

Seja como for, sustentando um discurso com pretensões universalistas, a retórica objetivista apela para que nós nos libertemos dessas narrativas enganadoras que mobilizamos na descrição de nossa conduta, que deixemos esse registro lingüístico aprisionador e folclórico e passemos, então, a narrar nossas ações unicamente pelas metáforas advindas da tradição científica mais bem sucedida. Segundo este ponto de vista pretensamente emancipatório, tais “descrições mais exitosas”, também no caso das explanações da ação humana complexa, seriam as únicas que mereceriam ser literalizadas. A cultura estaria a fazer simplesmente às vezes do gênio maligno cartesiano, alienando-nos com suas descrições ilusórias sobre o que somos, afinal.

Então, temos diante de nós a seguinte situação: no decorrer do funcionamento da ciência, dá-se comumente, por conta do ideal de objetividade, a substituição de várias metáforas por outras que julgamos serem mais úteis. Assim, se o coração já foi imaginado como uma “fornalha” (a saber, com Harvey), passamos a concebê-lo mais utilmente, a partir de Descartes, como uma “bomba”. No domínio das ciências naturais, tal substituição de narrativas sobre como o mundo funciona é comum e esperada. Numa passagem particularmente instrutiva sobre este processo de substituição de algumas metáforas por outras, à medida que se desenvolve a ciência, o biólogo Richard Dawkins fala-nos de como nossa imagem folclórica do fenômeno “vida” veio a se alterar. Assim, somos informados que se, há algum tempo atrás,

[...] perguntássemos a qualquer biólogo o que havia de especial nos seres vivos em contraste com as coisas não vivas, ele falaria de uma substância especial chamada protoplasma. O protoplasma não era uma substância como as outras: era vital, vibrante, palpitante, pulsante, “irritável” [...]. Se cortássemos sucessivamente um corpo vivo em pedaços cada vez menores, chegaríamos a partículas de protoplasma puro. [...] Hoje em dia, ninguém fala nem escreve essa palavra, tão obsoleta quanto o flogisto ou o éter universal. Não há nada de especial nas substâncias de que são feitos os seres vivos. Os seres vivos são coleções de moléculas como tudo o mais. O que há de especial são os padrões de organização dessas moléculas, muito mais complexos que os das moléculas das coisas não vivas; essa organização se faz seguindo programas, isto é, conjuntos de instruções para o desenvolvimento que os seres vivos carregam dentro de si. Talvez todos esses seres vibrem, palpitem e pulsem com sua “irritabilidade” brilhando com sua chama “vívida”, mas todas essas propriedades emergem incidentalmente. O que está no cerne de todo ser vivo não é um fogo, um sopro cálido ou uma “centelha de vida”. São informações, palavras, instruções. Se [...] quiser uma metáfora, não pense em fogo, centelhas ou sopro. Pense em bilhões de caracteres digitais distintos, esculpidos em tabuletas de cristal. Se quiser entender a vida, não pense em nenhum gel ou limo vibrante e palpitante, pense em tecnologia de informação (2001, p. 169-170).

Reiteramos: o processo de eliminação de algumas metáforas por outras no domínio das ciências naturais segue sendo rotina sem maiores dificuldades posteriores. Além do “protoplasma”, ninguém mais fala mesmo, como Dawkins bem observa, durante a passagem acima, em “flogístico”, “calórico”, “vis viva” ou “élan vital”. Não precisamos de uma recolha destas categorias, atualmente tidas como meramente folclóricas, para construir conhecimento útil nestes domínios das ciências físicas. O problema surge, entretanto, quando estendemos esta proposta “eliminativista” para compreender o que se acredita ser “o próprio do homem” ou “sua realidade essencial”. Surge quando o investigador das ações humanas acredita que possamos ignorar as metáforas pelas quais tais ações parecem ser governadas, na esperança de capturarmos a natureza, ela mesma, destas últimas.

Nutrir tal proposta no domínio das ciências físicas não acarreta o tipo de problema para o qual estamos procurando apontar. Afinal, tendo-se chegado a um acordo sobre que objetivos devem ser perseguidos em uma dada disciplina das ciências naturais, algumas metáforas aí construídas talvez possam mesmo se mostrar bons candidatos à literalidade – não evidentemente no sentido de termos alcançado, com este processo, “a verdadeira natureza do objeto estudado”, mas no sentido mais brando de termos alcançado o vocabulário mais adequado aos fins, então, nutridos.

No entanto, no caso da ação humana complexa, substituir a constelação metafórica pela qual esta se vê governada por uma outra descrição cientificista e com a pretensão adicional de literalizá-la, após ter-se, como se acredita, descoberto “o que, realmente, somos”, equivaleria antes a ter destruído aquilo que deveria ter se mantido como o próprio objeto de estudo.

Acerca deste ponto específico, Jerome Bruner em seu Atos de Significação, texto em tudo afim ao espírito deste trabalho, faz uma analogia desta atitude do objetivista tout court quando do estudo da ação humana e uma certa frase de Pablo Picasso a Gertrude Stein, após esta ter sido retratada pelo pintor.

Minha preocupação é também com o que acontece quando o modelo passa a pensar que se parece com seu retrato. Lembrem-se da resposta de Picasso aos amigos de Gertrude Stein, quando lhes contaram que ela pensou que seu retrato, feito por ele, não tinha uma boa semelhança. “Diga-lhe para esperar”, disse Picasso, “ele terá”. (1997, p. 35-36)

Bruner que está, nesse momento, enviando um recado aos psicólogos objetivistas que, infelizmente, de forma muito rara se viram como fazendo parte de uma comunidade de críticos culturais em uma sociedade democrática, “em grande parte porque estão demasiado presos à auto-imagem gerada pela ciência positivista” (1997, p. 36) e que parecem precisar ser informados de que a folk psychology “precisa de explicações, não de desculpas” (1997, p. 36), dá-nos uma outra alternativa para além desta adoção forçada de uma dada imagem a que Picasso, no exemplo, pretendeu submeter Gertrude Stein: “A outra possibilidade, é claro, é que o modelo passe a evitar esse tipo de pintor” (1997, p. 36).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, Autor de Quixote. In: _________. Ficções. [Tradução de Carlos Nejar]. São Paulo: Globo, 2001.        [ Links ]

BRUNER, Jerome. Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.        [ Links ]

DAWKINS, Richard. O relojoeiro cego: a teoria da evolução contra o desígnio divino. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.        [ Links ]

GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: _______. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 13-41.        [ Links ]

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GEERTZ, Clifford. A mitologia de um antropólogo. Entrevista com Victor Aiello Tsu. Folha de São Paulo. Caderno Mais!, 18 de fevereiro de 2001, p. 4-8.        [ Links ]

WILSON, Edward. Consiliência: a unidade do conhecimento. Rio de Janeiro: Campus, 1999        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: sgoliver@uol.com.br

Recebido em: 14/09/2005
Aceito para publicação em: 30/11/2005

 

 

NOTAS

* O presente texto foi aceito para apresentação no módulo temático Epistemologia, do 10° Seminário Nacional de História da Ciência e Tecnologia, realizado em Belo Horizonte (MG), de 17/10/2005 a 19/10/2005.
** Bacharel em Psicologia (UFRJ). Mestre em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando em Filosofia (PUC-Rio) com o trabalho de dissertação, atualmente em curso, Contra a Consiliência: Por uma Concepção Pragmatista do Conhecimento.

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