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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.5 n.2 Rio de Janeiro dez. 2005

 

SEÇÃO TEMÁTICA: PSICOLOGIA JURÍDICA

 

A demanda nos processos de habilitação para adoção e a função dos dispositivos judiciais

 

Investigating how restrictions in choice can affect adoption demand

 

 

José César Coimbra*

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em que medida os procedimentos judiciais podem influenciar na definição de demandas nos casos de adoção? Na cidade do Rio de Janeiro é expressivo o número de requerentes nos processos de habilitação para adoção, que buscam uma criança com menos de dois anos de vida, branca e de sexo feminino. Quer-se aqui apreciar a hipótese de que restrições impostas ao grau de liberdade na escolha do perfil do adotando poderiam - dentro de certos limites - criar novos tipos de demanda de adoção.

Palavras-chave: Adoção, Psicologia jurídica, Família, Tecnologia reprodutiva humana.


ABSTRACT

How could legal rules influence adoption demands? In Rio de Janeiro there is a large number of people who want to adopt a white and female child, less than two years old. We would like to verify the hypothesis that restrictions on the possibility of election of adoptions could create new kinds of demand, which could involve characteristics besides sex, color and age.

Keywords: Adoption, Juridical psychology, Family, Human reproductive technology.


 

 

Este trabalho tem por objetivo estabelecer as linhas iniciais de uma análise sobre os efeitos que as regras referentes ao processo de habilitação para adoção podem ter sobre a demanda dos requerentes nesse tipo de processo. Em outras palavras, se restrições impostas ao grau de liberdade na escolha do perfil do adotando poderiam - dentro de certos limites - criar novos tipos de demanda.

O ponto de partida para esse questionamento foi, em primeiro lugar, os pedidos apresentados por requerentes nos processos de habilitação. Pedidos que, em grande medida, têm como alvo uma criança que não só porte características físicas semelhantes a dos requerentes, mas, também, preferencialmente constitua-se como recém-nascida. Em segundo lugar, a portaria 07/2004 da então 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro1, a qual teria um ano de duração e que modificou significativamente as exigências referentes à inscrição para o processo de habilitação para adoção, também motiva o presente estudo. A referida portaria não se encontra mais em vigor.

A título de introdução, deve-se esclarecer que no processo de habilitação para adoção não existe adotando. Há requerentes - sejam casados ou solteiros - pleiteando ao Estado - na figura do juiz - o direito de adotar. No processo de adoção propriamente dito existem não apenas um ou dois requerentes, mas também pelo menos um adotando que virá a ocupar o lugar de filho para aqueles requerentes que, por sua vez, ocuparão o lugar de pais. Depreende-se que é esperado que o processo de habilitação culmine no processo de adoção. Neste trabalho, estaremos abordando basicamente o processo de habilitação, por tratar-se do momento em que a demanda inicial dos requerentes se apresenta à instituição, assim como é o instante em que esses mesmos requerentes deparam-se com as exigências próprias ao processo. Do mesmo modo, nos referiremos em geral aos requerentes que se apresentam como casais, uma vez que constituem a maioria em comparação com os requerentes solteiros.

 

ALGUNS DADOS DA 1ª VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO RIO DE JANEIRO

No primeiro semestre de 2004 houve na 1ª VIJ cerca de 237 processos de habilitação para adoção. Desse universo foram pesquisados 94 referentes a casais, dos quais:

• 53% autodenominavam-se da cor branca;
• 48% situavam-se entre 30 e 40 anos;
• 71% não possuíam filhos;
• 94% não haviam passado pela experiência da adoção;
• 45% referiam-se a requerentes do sexo feminino com dificuldades na concepção ou reprodução;
• 39% possuíam curso superior completo;
• 63% com renda familiar acima de R$ 2.000,00. Desses, 19% estavam na faixa acima de R$ 5.000,00.

Nesse mesmo universo, 49% não apresentavam uma preferência pelo sexo do adotando. Contudo, 33% declararam preferência pelo sexo feminino. Em 2003, cerca de 50% apresentavam a mesma demanda.

Quanto à cor, 25% demandavam um adotando branco; 15% pardo; 4% negro; 10% pardo ou negro; 21% pardo ou branco e sem preferência foram cerca de 25%.

Quanto à idade, 63.6% demandavam uma criança entre 0 e 1 ano; 15.9% entre 1 e 2 anos; 4.5% entre 2 e 3 anos; 6.8% acima de 5 anos. Cerca de 9.2% não souberam ou não quiseram especificar idade.

Dois valores apontados acima devem nos prender a atenção mais detidamente. Dentre os casais, é expressivo o número daqueles que buscam na adoção um meio de estabelecimento dos laços de filiação com um primeiro filho: 71%. Desses, cerca de 45% fizeram menção a alguma dificuldade referente à fertilidade ou gravidez. Como complemento, deve-se registrar que em agosto de 2004 o cadastro de habilitados da 1ª VIJ dispunha de 210 requerentes e cerca de 90 processos em fase de conclusão dos estudos social e psicológico.

 

ADOÇÃO: SIGNO DE IMPOTÊNCIA?

Esse perfil introduz uma variável nos processos de habilitação que não pode ser negligenciada: em geral os requerentes ainda procuram a adoção como uma última alternativa de estabelecimento de laços de filiação. Última alternativa que passa a ser cogitada, muitas vezes, depois de uma década de tentativas espontâneas ou medicamente assistidas de concepção.

Assim, nota-se como regra que boa parte dos requerentes busca na adoção não apenas um filho, mas exatamente aquele que não puderam ter, acreditando que esse dispositivo poderá emular seja a experiência natural da concepção, seja a concepção associada à tecnologia reprodutiva. É nesse sentido que as demandas referentes à criança entre zero e 1 ano encontram forte expressão. Do mesmo modo, a cor branca ou branca e parda também é a mais visada, assim como é majoritário entre os requerentes aqueles que se declaram brancos ou pardos. A cor negra, como padrão minoritário entre os requerentes, corresponde, na lógica estabelecida, a uma demanda numericamente menor por crianças dessa cor. Para os requerentes, a cor de pele acaba por assumir o valor de um ponto de identificação com a criança, a partir do qual toda uma idéia de semelhança começa por ser construída.

É preciso sublinhar que os casais que tenham optado em algum momento de sua trajetória pela tecnologia reprodutiva acabam, por vezes, reféns de uma lógica peculiar a esse tipo de dispositivo. Nas palavras de Marie-Magdeleine Chatel:

“Não é a criança, como pessoa por vir, que interessa essa medicina, mas a capacidade fisiobiológica da mulher de fazer bebês à sua demanda” (CHATEL,1995, p.20). Esse aspecto voluntarista é acentuado pela autora, que insiste sobre certos riscos implicados na escolha pelas tecnologias reprodutivas: “Passou-se, assim, da criança como conseqüência do desejo sexual do homem por uma mulher à criança como objeto do querer consciente de uma mulher” (CHATEL, 1995, p.26).

A distinção entre desejo, demanda e necessidade, corrente na psicanálise, em particular na sua vertente lacaniana, é uma chave importante para acompanhar as críticas delineadas por Chatel. Muitos comentadores já se detiveram sobre as diferenças entre essas noções: Joel Dor (1989, pp.139-147), Gérard Miller (1989, pp.60-1), Antônio Quinet (1991, pp.94-7) e, com enfoque um pouco diferenciado dos anteriores, Marilena Villela Corrêa (2001, pp.177 e ss.) são alguns exemplos importantes dentre outros. Ainda que não seja nosso objetivo recapitular essas diferenças, cabe retornar às citações de Chatel para dali fazer ressaltar um sentido para o termo desejo conforme o enquadre requerido por este trabalho. Dessa forma, o desejo por uma criança subordina-se a um desejo pelo outro sexo, ao desejo de um homem por uma mulher e desta mulher por aquele homem. É nessa linha que Nazir Hamad, retomando Françoise Dolto, nos fala que para o advento da criança faz-se necessário o encontro de três desejos, como segue:

- desejar um filho de um homem, o homem que está ali, o homem que uma mulher ama;
- desejar um filho de uma mulher, aquela que um homem ama;
- o encontro de dois desejos no sentido em que isso se fala e em que, graças a essa fala, um filho já faz seu ninho no campo da linguagem que o acolherá e no qual ele evoluirá para conquistá-lo e fazê-lo seu, depois (HAMAD, 2002, p.79).

Por outro lado, a “criança como objeto do querer consciente” elide essa dimensão da alteridade requerida pelo desejo e, nessa perspectiva, notamos o abismo existente entre ‘querer’ e ‘desejar’. Mais uma vez retornamos aos estudos de Chatel, que se situam no campo da medicina da reprodução, para apreendermos, em parte, um certo tipo de demanda que também se faz presente no campo da adoção. Escreve a autora: “Há uma coincidência entre a ideologia de uma medicina possuidora de um saber sem falha, absoluto e totalitário, que anula todo outro saber, e a crença delirante de poder fazer a criança que se quer quando se quer” (CHATEL, 1995, p.119).

Com essa citação, podemos completar a caracterização do tipo de demanda que se apresenta majoritariamente à adoção, em particular quando marcada pelas tentativas frustradas de reprodução assistida. Para além de todas as críticas que se possa fazer ao poder judiciário quanto à lentidão dos andamentos processuais, nota-se nos requerentes dos processos de habilitação uma reclamação reiterada referente ao tempo, ao tempo de espera. É interessante notar que ao levantarmos mais sistematicamente uma interrogação sobre os motivos da queixa, revela-se um não descolamento entre o tempo investido nas tentativas anteriores de reprodução - que, como comentado, chega por vezes a uma década - e o tempo presente referente ao pedido de adoção. Assim, não é incomum a frase: “já esperei dez anos por meu filho, será preciso esperar mais dois meses para terminar este processo?”.

A demanda dos requerentes, que pode ser entendida como uma demanda de amor, pode ser também interpretada nas suas linhas gerais do seguinte modo: “eu estou me esforçando há muito tempo para ter um filho, por um descaminho do destino, não foi possível. Vocês podem resolver isso, pois sou digno(a) do amor de vocês”. Dessa perspectiva, a instituição judiciária é aquela que chancela os requerentes como pais. Esse enunciado, que pode assumir eventualmente formas distintas, traz alguns pontos de identificação para os profissionais que podem constituir-se como verdadeiras armadilhas. Diante de dificuldades no estágio de convivência, por exemplo, já foi possível entreouvir de requerentes o questionamento: “mas não foram vocês que disseram que eu poderia ser mãe (ou pai)?”. Ou ainda, a reiterada afirmação dos requerentes nos casos de desistência do estágio de convivência de que teriam sido ‘enganados’ pela instituição.

Até recentemente era possível aos requerentes na cidade do Rio de Janeiro a recusa a até três indicações de crianças que se enquadrassem no perfil estabelecido. Assim, por vezes os requerentes aparentavam envolvimento com o bebê, mas não iniciavam o estágio de convivência devido a alguma suspeita: ou alguma dúvida sobre a conformação física, ou, simplesmente, algo não enunciável. Nesses casos, podia-se ouvir em algumas situações: “mas eu não posso recusar até três vezes?!” Esse cenário revela de forma aguda os problemas existentes para o profissional que muito prontamente adere ao papel de selecionador. Tal papel chega ao auge naquelas comarcas que realizam um levantamento fotográfico de gerações anteriores a dos requerentes com o objetivo de indicar uma criança que seja detentora de características físicas semelhantes à da família substituta. Não seria esse caminho uma via na qual a especificidade da adoção estaria por se perder? Ao mesmo tempo, não se produz assim no requerente uma certeza imaginária de que lhe será entregue uma criança tal como ele quer? Estaria tal objetivo ao alcance da instituição judiciária, a par de todas as conseqüências apontadas acima por Chatel? Estaríamos de fato à altura da demanda fomentada?

Se, por um lado, o levantamento fotográfico mencionado mostra um procedimento que não se revela demasiadamente disseminado entre nós, por outro, não existiriam procedimentos que, tais como aquele, suscitariam nos requerentes demandas de fazer da adoção um equivalente às técnicas reprodutivas?

 

ADOÇÃO E TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Um primeiro corte que marca a diferença entre a adoção e as técnicas reprodutivas refere-se aos mediadores simbólicos em ação na primeira e na segunda alternativas. Para a primeira, a palavra; para a segunda, o dinheiro2.

Os requerentes que experimentaram algum tipo de técnica reprodutiva são unânimes em relatar um mesmo circuito entre o pedido de intervenção e a intervenção propriamente dita: à série de exames e diagnósticos sucede-se a interminável rotina de medicamentos e hormônios, além da objetivação extrema da vida amorosa. A relação sexual passa a ser prescrita pelo saber médico conforme parâmetros muito específicos e o desejo que enlaçaria o homem e a mulher cede seu lugar à necessidade imperativa da reprodução. Evidencia-se também que nesse circuito é o dinheiro que faz mover as peças da vontade.

Reportagem recente da revista francesa ‘Le nouvel observateur’, cujo título é ‘Catálogo de Bebês’, nos revela um quadro que, guardadas as proporções, não difere muito da experiência brasileira. Ali podemos ler que o Instituto de Fertilidade de Los Angeles garante uma taxa de sucesso nas técnicas de reprodução assistida da ordem de 100%, ao custo de US$ 20.000,00. A possibilidade de escolha de óvulos, espermatozóides, caracteres, data para o nascimento e uma infinidade de outras variáveis leva a jornalista Sophie Deserts a afirmar que “tudo é possível, com a condição de se dispor dos dólares” (DESERTS, 2004, p.12). Na mesma reportagem, descreve-se também o valor financeiro diferenciado de óvulos, conforme o tipo de doadora. Se for uma estudante de Stanford, loura, o óvulo poderá custar US$ 50.000,00. Caso seja uma estudante da universidade pública de S. Diego, de origem mexicana, estudante de psicologia, o valor girará em torno de US$ 3.000,00. Uma estudante negra terá seus óvulos avaliados por um preço menor. Completa a jornalista: “[...] é a lei do mercado” (DESERTS, 2004, p.12).

Entre nós, reportagem de Sandra Brasil na revista Veja, também abordou o tema da vontade e do dinheiro no apelo às técnicas de reprodução assistida. Contudo, foi circunscrito o tema da sexagem, isto é, a possibilidade de escolha do sexo do bebê (cf. BRASIL, 2004, pp.101 e ss.). Ali se nota, tanto quanto na matéria anterior, o valor do dinheiro conduzindo a vontade dessa ‘escolha’3. Essa primazia do dinheiro, cujas variações pudemos notar nos exemplos citados, nos leva a tomá-lo como significante de um outro valor que não o financeiro:

O dinheiro - assim como as coisas que permite comprar e acumular - é símbolo fálico, representando o gozo do haver, escamoteando a falta-a-ter, ou seja, mascarando a castração e daí conferindo a ilusão de que tudo se pode com o dinheiro (QUINET, 1991, p. 95).

A função do dinheiro na adoção não é a mesma que ocupa na demanda às técnicas de fertilização assistida. Isso porque as ações judiciais de competência da Justiça da Infância e da Juventude são isentas de custas e emolumentos (CURY, 2003, p.468). Essa entrada, aliada a uma certa caracterização da equipe interprofissional (CURY, 2003, p.491-5), confere à palavra um valor ímpar como mediador da demanda de adoção.

Esse valor pode ser notado em dois momentos: seja no espanto de alguns requerentes ante a interrogação sobre os motivos da escolha pela adoção; seja na existência do próprio procedimento da habilitação para adoção, o qual incita à fala.

Jean-Pierre Brunin (1992) num excelente trabalho, nos oferece um balizamento a respeito do uso e do valor da palavra nos procedimentos referentes à adoção. Primeiro, quando afirma que “escolher a adoção é ser capaz de responder por sua escolha” (BRUNIN, 1992, p.63); segundo, quando reitera que é impossível selecionar pais e mães (BRUNIN, 1992).

Essas duas assertivas reafirmam o tema da palavra reiterando seu valor. Por um lado, aponta para a importância dos requerentes assumirem sua escolha como algo positivo em si e não apenas como o signo de um fracasso, de uma impotência. Por outro, indica também que de sua perspectiva o trabalho na adoção não poderia pautar-se na pretensão de selecionar pais ou mães. Podemos acrescentar que compartilhamos desse ponto de vista, na medida em que o trabalho realizado implica de fato apreciar e levar os requerentes a apreciar uma certa relação mantida com o que imaginam ser a adoção. Ou, como exemplifica o autor: “escolher a adoção é se mostrar capaz de um pouco de recuo diante dos preconceitos, poder responder a eles sem se sentir constantemente agredido” (BRUNIN, 1992. p.64). Esse enquadre não pode ser tomado, em hipótese alguma, como sinônimo de seleção daqueles que viriam a ser bons pais ou boas mães.

 

AS DEMANDAS NÃO SÃO ESPONTÂNEAS

A experiência referente às adoções internacionais nos traz uma luz importante para analisarmos os efeitos que dispositivos institucionais podem ter sobre as demandas de adoção. Sabe-se que a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) a colocação em família substituta estrangeira é medida excepcional (CURY, 2003, p.139). Isto é, só serão indicados para adoção internacional aqueles que não tiverem sido adotados por residentes no Brasil. Assim, deduz-se dos dados apresentados até aqui que os adotandos que constituem majoritariamente os processos de adoção internacional são meninos, negros ou pardos, de idade acima de quatro anos, grupos de irmãos, ou portadores de necessidades especiais.

Domingos Abreu (2002, p.132-7) realiza em parte de seu livro um estudo comparativo entre requerentes brasileiros e franceses. Basicamente, quanto à demanda inicial, não há grandes diferenças: salvo a inexistência de preferência pelo sexo feminino, brasileiros e franceses buscam inicialmente na adoção o filho que a reprodução teria proporcionado. Assim, semelhanças são buscadas - inclusive no que tange à cor de pele - e problemas de saúde são levados em consideração. A menor idade possível também é um objetivo a ser alcançado. A escolha pela adoção internacional também implicou para o estrangeiro - em particular no caso francês - a mesma jornada apontada para o requerente brasileiro. No entanto, soma-se àquele percurso o fato de que a própria adoção no país de origem levaria um tempo incomensurável (ABREU, 2002, p.130-1 e le point sur l’adoption). Assim, para além de diferenças sociais e culturais (maior presença de grupos de apoio à adoção, maior alcance das políticas de bem-estar social na França), a escolha pela adoção no Brasil já implica a aceitação dos limites impostos pela lei. Isto é, como indicado acima, só serão disponibilizados para adoção internacional crianças e adolescentes não adotados por brasileiros: crianças mais velhas, de tez escura, eventualmente com problemas de saúde.

Comparando-se a adoção nacional e a internacional, pode ser salientado que o grau de liberdade de escolha para a primeira é muito maior que para a segunda. Essa variável é, de nosso ponto de vista, importantíssima na constituição da demanda que será manifestada na adoção.

Em contrapartida ao exemplo fornecido anteriormente, em que os serviços de adoção de algumas comarcas procuram realizar uma pesquisa fotográfica da família extensa, com vistas a uma maior semelhança da criança a ser indicada, pode-se destacar um outro sentido. Algumas comarcas caracterizam-se por limitar o grau de liberdade dos requerentes no que tange às variáveis de sexo, cor ou idade, por exemplo. É nessa esteira que desde 2000 a 1ª VIJ utiliza-se de uma definição de recém-nascido, a qual contempla uma criança entre zero e 1 ano de idade. Dessa forma, aquele que pretende adotar um recém-nascido na cidade do Rio de Janeiro sabe que poderá receber a indicação de uma criança daquela faixa etária. Não há possibilidade de escolha em meses, por exemplo. Registre-se que era comum ouvirmos: ‘eu quero adotar uma criança de um mês’ ou ‘dois meses’, etc. O uso da referida definição não levou a uma diminuição do número de requerentes na cidade, nem trouxe dificuldades adicionais ao processo. Ao mesmo tempo, sinaliza aos requerentes que existem limites que não podem ser pautados exclusivamente pela vontade. Limites que, de certa forma, alcançam a própria instituição ‘Justiça da Infância e da Juventude’: não é possível atender integralmente a demanda de filhos apresentada pelos requerentes.

A portaria 07/2004 da 1ª VIJ, que entrou em vigor no mês de março, determina um nível de restrição maior quanto ao grau de liberdade dos requerentes. Durante aquele ano, esteve suspensa a inscrição de requerentes para habilitação para adoção, exceto para aqueles que manifestaram previamente a preferência por crianças acima de quatro anos ou adolescentes; crianças de qualquer idade, mas sem indicação de sexo ou cor; grupo de irmãos e crianças portadoras de necessidades especiais.

Pode-se afirmar que essa portaria foi um instrumento adicional no dispositivo que está sendo descrito aqui. De modo algum se pretendeu que ela por si só promovesse uma alteração radical nas demandas de adoção. Todavia, como indicado, tratou-se de um instrumento dentre outros que devem ser postos em funcionamento em prol de uma possível ampliação das possibilidades de adoção.

 

CONCLUSÃO

A adoção tanto no Brasil como em outros países, segue sendo majoritariamente uma alternativa de estabelecimento de laços de filiação que é utilizada como última alternativa ante as impossibilidades de reprodução. Como apontamos, essa característica acaba também por implicar uma demanda específica que teria sua lógica própria na reprodução natural ou medicamente assistida, que acaba por instalar-se entre os requerentes à adoção. Nesse cenário, um ideal de identidade pautado em características físicas do adotando que apontem desde logo semelhanças com os adotantes, bem como a possibilidade de repetição do processo biológico, sobretudo no que tange à idade da criança, são dois pilares que continuam a sustentar a demanda de adoção. A par dessa configuração, nota-se que as regras institucionais para a adoção acabam também por suscitar demandas próprias. Assim, seja o exemplo da adoção internacional, seja o das restrições do grau de liberdade dos requerentes diante de algumas das variáveis referentes a cor, sexo ou idade, há evidências de que novas possibilidades de demandas podem ser suscitadas. De certo modo, as determinações legais referentes à adoção ensejam por si mesmas as especificidades que essa escolha pode comportar. Desse modo, também é sinalizado aos interessados que nem tudo se situa na esfera da vontade quando está em jogo a adoção. Assim é, por exemplo, no ECA, que exige uma diferença mínima de idade entre requerentes e adotandos de dezesseis anos, ou no Código Civil francês, que impõe restrições muito mais severas4.

Por fim, é preciso sublinhar que não podemos tentar julgar as motivações que levam alguém a querer um filho. Muito menos acreditar que a adoção poderia ser a principal alternativa ao problema da institucionalização de crianças e adolescentes. Contudo, ao não subsumir inteiramente a criança à demanda inicial dos requerentes à adoção, é possível que essa modalidade de colocação em família substituta5 encontre formas inauditas de atualização. Que essas formas possam ser entendidas como sinônimo de liberdade, é algo que guarda sentido com o que foi apresentado aqui; que o custo dessa liberdade seja, eventualmente, a restrição no grau de possibilidades de escolha das características do adotando, nada mais é do que um aparente paradoxo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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QUINET, A. As 4+1 condições de análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail arcoim@yahoo.com.br

Recebido em: 09/09/2004
Aceito para publicação em: 14/04/2005

 

 

NOTAS

* Psicólogo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Mestre em Teoria Psicanalítica/UFRJ, Especialista em Psicanálise/UFF, Especialista em Psicologia Jurídica/UERJ.
1 Conforme alteração promovida no Código de Organização Judiciária a denominação da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca da Capital passou a ser Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital. Neste artigo estaremos utilizando a sigla Viji.
2 Para uma outra análise sobre a relação entre adoção e técnicas de reprodução assistida, a qual guarda alguma correspondência com a que é aqui apresentada, cf. Corrêa, 2001, pp.170 e ss.
3 Deve ser notado que o Conselho Federal de Medicina, em resolução de 1992, proíbe o uso de técnicas de reprodução assistida com o objetivo de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho (cf. BRASIL, 2004, p.103). A reportagem da revista Veja causou a reação do CFM, o qual anunciou investigação relacionada à prática da sexagem. Essa reação foi coberta na matéria de Cláudia Collucci (2004, p.c4).
4 Na França, conforme os artigos 343, 344 e 345 do Código Civil, podem adotar: um casal não separado de corpos, isto é, que não vivam em dois domicílios diferentes. Eles devem ser casados há pelo menos dois anos ou terem mais de vinte oito anos de idade; os solteiros têm menos chances de conseguir a adoção do que um casal; a diferença de idade entre adotante e adotando deve ser de, no mínimo, quinze anos. Quando se tratar de adoção por cônjuge essa diferença pode ser reduzida a dez anos. O juiz tem autonomia para conceder a adoção nos casos em que a diferença de idade mencionada não estiver sendo respeitada. Das cerca de 5000 adoções por ano na França, oitenta por cento dizem respeito à adoção internacional (cf. le point sur l’adoption).
5 Nomenclatura utilizada no ECA.

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