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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.5 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2005

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Pivetes: uma singular experimentação

 

Pivetes: a singular experimentation

 

 

Cecilia M. B. Coimbra*; Estela Scheinvar**; Lygia S. M. Ayres***; Maria Lívia do Nascimento****

Universidade Federal Fluminense

Endereço para correspondência

 

 

O PIVETES: CONHECENDO UM POUCO DE SUA EMERGÊNCIA

Nas últimas décadas do século XX, com a consolidação do capitalismo em escala planetária, assiste-se ao fortalecimento de práticas que produzem profundo apartheid social. No Brasil, tal fato vem se alastrando, tendo como efeito o empobrecimento de contingentes cada vez maiores, que se expressa através de variadas estratégias de sobrevivência. Junto a isso vem-se afirmando a estreita associação de pobreza como sinônimo de perigo, barbárie, crime e não como um dos perversos efeitos da estrutura sócio-político-histórica1.

No Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) tais questões têm produzido inquietações, fazendo com que docentes, técnicos e discentes, de diferentes áreas do conhecimento, se reúnam para analisar o cotidiano brasileiro em suas diversas faces, embarcando em novos desafios ético-políticos. De tal movimento, emergiu em 1993, o Projeto MENINAR – Meninos (as) nas ruas. Sua proposta era desenvolver dois tipos de intervenção: atuação direta com crianças moradoras de rua em Niterói, por meio de oficinas e encontros, e uma pesquisa no Juizado da Infância e da Juventude desta cidade visando analisar os mecanismos produtores das “subjetividades meninos-de-rua”2.

A constante colocação em análise desse projeto problematizou o que denominamos de instituição “meninos-de-rua”3 e, nessa medida, o próprio sentido da pesquisa4. Dessa forma, foi sendo forjada uma outra proposta, onde diferentes equipamentos sociais se projetaram como engendradores das tramas, dramas e histórias dessas crianças. O foco se redimensionou e, em nossas análises, à instituição “meninos de rua” outras se juntaram, fazendo emergir, em 1995, um novo projeto, o PIVETES - Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social.

Desde então, no âmbito desse programa, vem sendo estudada a emergência de diferentes instituições que produzem no tecido social processos de subjetivação em relação a crianças e jovens pobres engendradores de formas de sentir, pensar, agir, perceber e desejar. Nesse sentido, temos trabalhado questões tais como: a produção de especialismos e seus efeitos no cotidiano de crianças, jovens e famílias no espaço do judiciário, os direitos da infância e da juventude, assim como as políticas públicas voltadas para o segmento infanto-juvenil.

 

O PIVETES: SUAS PESQUISAS E ALGUMAS DE SUAS FERRAMENTAS

O PIVETES tem ousado percorrer caminhos que afirmam outros saberes, recusando os já prontos e arrumados, com suas verdades disponíveis e seus planejamentos e metodologias que preservam e garantem territórios livres das misturas e das incertezas. Percorrer esses outros caminhos é embarcar em travessias que têm como bagagem ferramentas buscadas nos trabalhos de filósofos como M. Foucault e G. Deleuze, de sociólogos como G. Lapassade, de pedagogos como R. Lourau, de militantes-psicanalistas como F. Guattari, dentre outros.

Dessa forma, o PIVETES se lançou ao questionamento de determinadas categorias habitualmente tomadas de forma des-historicizada e descontextualizada, nos levando a buscar nos arquivos do Juizado da Infância e da Juventude a produção histórico-institucionalizada dessas categorias.

O encontro com os processos do Juizado nos possibilitou perceber como as práticas dos especialistas no território do judiciário vão constituindo e institucionalizando categorias sociais como família desestruturada, meninos de rua, criança carente, menor, infrator, etc., que pouco a pouco são transformadas em naturezas, como se sempre tivessem existido, como se correspondessem a uma essência. Um dos efeitos dessas práticas é a afirmação de modelos “certos”, a partir dos quais todas as demais formas de vida são vistas sob o prisma da irregularidade e/ou patologia.

Entendemos a pesquisa como um processo permanente de experimentação, de criação e de ruptura, como um campo de possibilidades que pode promover conexões em múltiplas direções e sentidos. Ou seja, é uma intervenção em nós, no mundo e, nessa medida, no objeto pesquisado. Esse movimento foi vivido por nós quando entramos em contato com os processos a serem pesquisados e fomos tecendo nossos percursos, trajetórias e objetos de pesquisa. Sem dúvida, as categorias trabalhadas e as periodizações históricas foram se constituindo ao longo de nossos encontros, a partir de nossas leituras, ferramentas, envolvimentos; enfim, de nossas implicações5. Dessa forma, em nossa primeira pesquisa se delinearam três períodos históricos: 1936/1945, período da implementação no Brasil, em 1927, do Código de Menores; 1975/1984, período sob ditadura militar, do boom da psicologia e da psicanálise e, em 1979, da revisão do Código de Menores e, por fim, o período de 1985/1994, época que abarca o processo de discussão e criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e os primeiros anos de sua implementação. Em função dos objetivos da pesquisa, em cada um deles levantamos a presença de diferentes especialistas (comissário de vigilância, assistente social e psicólogo) e algumas de suas práticas.

 

A PESQUISA: TRAJETÓRIA DO ENCONTRO ENTRE A PSICOLOGIA E O JUDICIÁRIO

O último dos três períodos estudados colocou em destaque a atuação dos psicólogos enquanto um dos especialistas do judiciário presente no atendimento de crianças e jovens. Concluída a primeira pesquisa, entendemos que sua continuidade poderia se dar tomando como foco as práticas de saber-poder presentes hoje no espaço jurídico e nos propusemos a cartografar e problematizar o lugar do psicólogo. Para tanto, desenvolvemos em 2002/2003 o projeto “Trajetórias do encontro entre a psicologia e o judiciário”, que visava investigar os discursos/práticas dos psicólogos que chegaram ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro através do primeiro concurso para o cargo, ocorrido em 1998.

Apresentamos aqui apenas dois momentos dessa pesquisa: o primeiro refere-se a algumas análises das entrevistas realizadas. Levando-se em consideração a multiplicidade de acontecimentos que se deram no espaço da pesquisa e, em virtude da impossibilidade de darmos conta de todos os atravessamentos que a constituíram, optamos por destacar alguns temas que mais atraíram nossos olhares. Ou seja, a formação do psicólogo e o homem como objeto de estudo da psicologia, as amarras e os lugares do psicólogo no judiciário, a análise do seu cotidiano e das demandas produzidas e, ainda, a relação dos psicólogos com as políticas públicas ligadas à área dos direitos da infância e da juventude.

Sobre o primeiro deles, podemos apontar sinteticamente algumas questões referentes à forma como o homem é pensado na Psicologia a partir da idéia de uma natureza que caracterizaria todos os seres da espécie. Considera-se o desenvolvimento do homem de forma apriorística, a partir de um percurso linear e evolutivo. A concepção de fenômeno psicológico, nesta perspectiva, se refere à intimidade, ao privado, a uma essência do que seria humano, pretensamente neutra e despolitizada. As questões sociais são psicologizadas, reduzidas à questão individual-familiar. Nesse sentido, a relação com as políticas públicas é distanciada, pois a prática psi é produzida como uma área técnica, acima das questões políticas.

Sobre as amarras e o lugar do psicólogo no judiciário, podemos destacar que uma das atribuições dele esperada é definir e predizer o comportamento do indivíduo, ou seja, ser um perito da subjetividade. Com relação às demandas produzidas, cabe perguntar se tem sido possível analisá-las como efeitos histórico-sociais das próprias práticas dos especialistas presentes no judiciário; se tem sido possível ouvi-las e pensá-las em função das trajetórias de exclusão e violação de direitos daqueles que ali aportam.

O segundo momento aqui referido diz respeito à ferramenta da restituição. De acordo com a Análise Institucional, a restituição é um procedimento intrínseco à pesquisa visto ser um dispositivo que permite à população pesquisada escapar do lugar instituído de “objeto” e ao pesquisador sair da posição de “neutralidade” instituída como científica. Finalizando a pesquisa, realizamos um encontro de restituição com alguns psicólogos entrevistados, outros profissionais do judiciário, estagiários do Juizado e do Conselho Tutelar de Niterói6 e pesquisadores do PIVETES. Enviamos a todos os participantes do encontro o relatório final da pesquisa, convidando-os para uma discussão coletiva sobre os quatro pontos acima levantados. Destacamos esse momento como um importante analisador7, pois colocou em evidência a riqueza das experiências desses psicólogos, apontando que os vários matizes de seus trabalhos não podem ser facilmente apreendidos. Além disso, essas análises também nos mostraram a presença de padrões rígidos de discursos, onde o saber acadêmico muitas vezes se coloca no lugar de produtor de verdades.

Essa experiência teve fortes efeitos em nossas práticas ao percebermos como podemos ser facilmente capturados no processo de afirmação de verdades. O encontro de restituição evidenciou o quanto nosso relatório tratava, por vezes, os discursos e práticas dos psicólogos como fechados, como coisas em si, ao invés de considerá-los como possibilidades.

Ao tomarmos o relatório de pesquisa como algo em construção, deixamos em aberto a possibilidade de novos atravessamentos e da colocação em análise de algumas das linhas duras que nos atravessam, como a instituição formação e a psicologia com suas marcas intimizantes, privatistas e posicologizantes.

Essa singular proposta de trabalho-experimentação tem produzido em todos nós estranhamentos, descobertas e a interrogação de nossas práticas, tendo como critério “uma ética voltada para o fortalecimento da vida” (Baeta Neves e Coimbra , 2002).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAETA NEVES, C.E.A.; COIMBRA, C..M.B. Potentes Misturas, Estranhas Poeiras: desassossegos de uma pesquisa. In: NASCIMENTO, M.L. (Org). PIVETES: a produção de infâncias desiguais. Rio de Janeiro: Oficina do Autor/Intertexto, 2002.        [ Links ]

COIMBRA, C. M. B. Operação Rio. O mito das classes perigosas. Rio de Janeiro: Oficina do Autor/Intertexto, 2001.        [ Links ]

COIMBRA, C..M.B.; NASCIMENTO, M.L. A instituição “meninos-de-rua” e alguns de seus efeitos. Anuário LASP, Niterói, Departamento de Psicologia, UFF, Ano 2, v. 2, p. 74-85, 1993.        [ Links ]

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica- cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: lygiayres@ig.com.br

Recebido em: 20/03/2005
Aceito para publicação em: 22/09/2005

 

 

NOTAS

* Professora Doutora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
** Professora Doutora do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Socióloga do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense.
*** Doutora em Psicologia Social, Psicóloga do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense.
**** Professora Doutora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
1 Para uma análise mais aprofundada ver Coimbra (2001).
2 Por produção de subjetividade entendemos, como Guattari e Rolnik (1986), formas de existir produzidas histórica e socialmente, situando-se no campo da produção social e material.
3 Instituição entendida como práticas sociais historicamente produzidas, datadas e localizadas e não como uma natureza em si, fixa e universal.
4 Este processo está registrado em Coimbra e Nascimento (1993).
5 A implicação inclui a análise do sistema de lugares: o lugar que ocupamos enquanto especialistas, que buscamos ocupar e que nos é designado ocupar. Fazer análise de implicações é colocar em xeque o lugar de saber-poder instituído do especialista.
6 Esses dois estágios têm estreita relação com a proposta do PIVETES.
7 Conceito-ferramenta da Análise Institucional que fala de objetos e situações que acionam e possibilitam análises.

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