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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.6 n.1 Rio de Janeiro jun. 2006

 

EDITORIAL

 

Em discussão: o trabalho docente

 

In debate: the teaching work

 

 

Deise Mancebo; Ariane P. Ewald; Eleonora Torres Prestrelo; Ana Paula Uziel

Professoras e pesquisadoras do Instituto de Psicologia da UERJ

 

 

Essa edição da Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é composta por um conjunto de textos que, na sua maioria, abordam a questão do trabalho no contexto contemporâneo, trazendo à baila, mais especificamente, sete artigos, uma resenha e uma comunicação de pesquisa sobre o trabalho docente.

Trata-se de discussão da maior relevância se considerarmos que o trabalho docente atravessa e é perpassado por duas problemáticas centrais das sociedades atuais: primeiro, as mudanças que foram introduzidas no mundo do trabalho, modificações carreadas, dentre outros processos, pelo avanço das tecnologias da informação e pelo processo mais geral de globalização e, depois, as reordenações a que os sistemas educacionais foram submetidos a partir da profunda redefinição do papel do Estado na sua relação com a educação, tendo conduzido, dentre outros aspectos, a processos variados de privatização.

As mudanças ocorridas no mundo do trabalho – que, de um modo geral, “quebraram” a rigidez e previsibilidade do taylorismo/fordismo na produção e o modo de regulação keinesiano, presentes em diversas esferas do cotidiano, há trinta ou quarenta anos atrás – requerem um novo sistema produtivo capaz de promover um rápido atendimento às flutuações de mercado e que se apresenta extremamente flexível. Como toda nova organização do trabalho, essa flexibilização constrói-se acompanhada de um movimento de reacomodação do campo sócio-subjetivo, produz novas performances para o trabalhador, que vêm afetando sua organização, sua dinâmica interpessoal, além de exigir-lhe uma ativa adaptação espaço-temporal (MANCEBO, 2007, no prelo).

No trabalho, supõe-se um homem capaz de enfrentar eventos, que exigem do trabalhador um conjunto de habilidades sempre abertas e por se fazer, ativadas pelo indivíduo em cada situação concreta, cabendo-lhe mobilizar-se – sua inteligência, seus recursos criativos pessoais, as potencialidades, desejos e valores, enfim, sua subjetividade – para alcançar os objetivos de sua atividade. Assim, do mesmo modo como assistimos a uma produção maleável e individualizada; à valorização dos trabalhadores qualificados polivalentes; à flexibilização da organização do trabalho, à implementação de horários indefinidos de trabalho e à precarização dos vínculos trabalhistas; também presenciamos a convocação irrestrita da subjetividade do trabalhador para o centro das atividades que desenvolve (MANCEBO; LOPES, 2004).

As conseqüências de todo esse processo são múltiplas para um professor e, pelo menos, três aspectos – intrinsecamente relacionados – merecem consideração, pela incidência com que apareceram nos diversos textos do presente dossiê: a precarização do trabalho, a flexibilização das tarefas e uma nova relação que se estabelece com o tempo de trabalho, que geram, ao mesmo tempo, mudança na jornada de trabalho de ordem intensiva (aceleração na produção num mesmo intervalo de tempo) e extensiva (maior tempo dedicado ao trabalho), particularmente facilitada pela introdução das novas tecnologias.

As mudanças ocorridas no campo educacional também se fazem presentes na discussão sobre o trabalho docente. Em linhas gerais, a partir da adoção da pauta neoliberal, estabeleceu-se em todos os países do continente, uma série de medidas, enfeixadas ou não sob a denominação de reformas, que para além das especificidades locais, evidenciaram uma profunda redefinição do papel do Estado na sua relação com a educação. Na realidade, assistiu-se a uma retração financeira do Estado na prestação de serviços sociais (incluindo educação, saúde, pensões, aposentadorias, dentre outros) e a subseqüente privatização ou, pelo menos, tentativa de privatização, destes serviços.

Assim, a análise do cotidiano dos sistemas educacionais põe a nu alguns vieses bastante graves, a partir da absorção/apropriação das reformas de cunho neoliberal. Tal agenda afeta a cultura escolar, de modo que representações, motivações, normas éticas, concepções, visões e práticas institucionais dos diversos atores, acerca dos objetivos, das tarefas da docência modificam-se (NAIDORF, 2005) e são profundamente mudadas no sentido do individualismo no enfrentamento das situações problemáticas escolares e da vida; do acirramento da competição entre instituições educacionais e entre os pares; da supervalorização das avaliações em escala nacional, com viés pseudo-meritocrático, para não dizer meramente classificatório, normativo e punitivo; do imediatismo em relação às demandas do mercado de trabalho; em síntese, ocorre uma construção ideológica, no próprio tecido escolar, nada desprezível, porque miúda, caucionada pelo discurso do mérito, mas pretensiosa nas intenções, na medida em que procura agir fomentando a produtividade, mas desmontando os direitos sociais que pudessem ser ordenados como compromisso social coletivo.

Na realidade, é possível localizar a pressão pela produção em praticamente todos os setores do mundo do trabalho, todavia, somente em poucos campos, ela ameaça tanto a qualidade como na educação, nas quais, em geral, ao aumento da produtividade costumam corresponder resultados menos expressivos no que tange ao desenvolvimento do pensamento e da ação inovadores (MANCEBO, 2007, no prelo).

Todavia, o que os textos dessa edição da revista chamaram atenção é que essas tendências mais freqüentes na forma como vem se organizando o trabalho e a educação, no mundo contemporâneo, todas as explicações econômicas e sistêmicas que se possa discorrer a respeito das adversidades no trabalho docente não podem ser tomadas como um destino, a se abater exteriormente sobre os indivíduos, pois concretizam-se, nos diversos espaços escolares, de modo múltiplo, heterogêneo e até contraditório.

Os textos registram o que oferece tensão e conflita, demonstrando a existência, de movimentos que se contrapõem às políticas anteriormente criticadas. Assim, relações e produções constituem-se no âmbito escolar, por vezes, na direção do ajustamento à nova ordem social; mas, em certos momentos, buscando brechas e possibilidades de escape. Inúmeras vezes, produzindo assujeitamento, sofrimento, doença; mas, em outras circunstâncias, favorecendo crescimento, prazer, solidariedade. Tais iniciativas quando críticas e insurgentes dão consistência à crença de que, em se tratando de educação e de subjetividades, sempre existe a possibilidade de um momento de suspensão, no qual se reelabora outro código de sociabilidade, outro código de civilidade e de relação com o público, no qual se pode construir o dissenso, desafiando o paradigma do pensamento único, para indagar outros saberes, outras práticas, outros sujeitos, outros imaginários capazes de conservar viva a chama de alternativas para essa ordem social de hegemonia do capital (LANDER, 2001) e de construir um sentido social e ético para a escola e quiçá para a sociedade.

Convidamos, pois, os leitores a percorrerem os diversos trabalhos dessa edição da Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia que, sinteticamente, apresentamos a seguir.

Oito textos e uma comunicação de pesquisa compõem a seção temática sobre “Trabalho Docente”. O primeiro, escrito por Maria Elizabeth Barros de Barros, Ana Lúcia Coelho Heckert e Flávia Moreira Marchiori, trata dos desafios para quem pesquisa os mundos do trabalho, partindo do princípio de que é preciso conhecer mais de perto o que é vivido nos ambientes laborais hoje e avaliar as novas relações que lhe fazem frente, elegendo para tal a abordagem ergológica.

O texto seguinte – “Universidade Produtiva” e Trabalho Docente Flexibilizado – é de Marcia Cavalcanti Raposo Lopes. Ele aborda o trabalho do professor universitário, buscando entender os processos vividos e construídos por estes docentes no contexto de reordenação das práticas do magistério superior, segundo uma lógica mercantil característica das políticas neoliberais.

Em seguimento, temos o artigo de Luciana Gomes e de Jussara Brito, que tematiza a dinâmica trabalho/saúde de docentes do ensino médio, revelando aspectos dessa relação, as formas de combate tecidas nos conflitos e tensões do cotidiano, mas também destacando os movimentos feitos pelos próprios professores no sentido de instaurar novas normas de saúde diante de condições tão adversas.

O artigo “A Dor e a Delícia de Ser (Estar) Professora: Trabalho Docente e Saúde Mental”, de Mary Yale Rodrigues Neves e de Edith Seligmann Silva, é o terceiro texto da seção temática. Nele, as autoras tratam das vivências de sofrimento psíquico e de mal-estar vivenciado pelas professoras da primeira fase do ensino fundamental num município paraibano, mas também identificaram e discutiram algumas formas pelas quais as professoras conseguem enfrentar as dificuldades presentes em seu cotidiano de trabalho, tornando-o, em muitos casos, psiquicamente estruturante.

O texto que se segue, de Maria do Socorro Sales Mariano e de Hélder Pordeus Muniz, intitula-se “Trabalho Docente e Saúde: o Caso dos Professores da Segunda Fase do Ensino Fundamental”, no qual os autores também buscam analisar a relação entre a saúde mental e trabalho, pela confrontação do sujeito com a realidade do trabalho, abrindo um espaço de discussão que privilegiou a análise da intersubjetividade dos professores na construção do sentido acerca do trabalho.

O penúltimo artigo da seção temática, de Maria Emília Pereira da Silva, aborda a síndrome do burnout instalada no mundo do trabalho docente, analisando o sofrimento do professor, face aos mecanismos de organização e gestão do trabalho característicos do atual regime de acumulação flexível do capital, apresentando, ao final, duas pesquisas que retratam o crescente aumento da síndrome e sua relação com as condições de trabalho dos docentes.

O último artigo da seção temática, de Cristina Miyuki Hashizume e de Marinete Maria Lopes, aborda o trabalho docente rural buscando compreender as estratégias utilizadas pelos professores para lidar com as adversidades e alegrias do cotidiano; cartografar as dificuldades por que passam tais docentes e identificar as estratégias de defesa/enfrentamento que os docentes se utilizam no dia a dia da escola.

A seção temática sobre “Trabalho Docente” termina com a apresentação, por Gideon Borges dos Santos, de uma comunicação de pesquisa onde o autor aborda, a partir de conceitos da Psicodinâmica do Trabalho, os complexos movimentos de fuga e enfrentamento, utilizados por docentes, frente às adversidades do cotidiano escolar, questionando o fato de, muitas vezes, estar em jogo tão somente o maior ou menor bem-estar do professor, retirando de cena a idéia do próprio processo educativo.

Esperamos que o conhecimento desses textos possa instigar alguns leitores a investir sobre esse campo de pesquisa e a pensar alternativas para a educação em seus diferentes níveis, que possam manter o encanto e a magia do trabalho docente, conforme analisado por alguns artigos, mas a partir de novos nexos, que expandam o potencial criativo, solidário e, ao mesmo tempo, atenuem o sofrimento hoje presente no trabalho docente.

Temos dois textos e uma resenha fora da seção temática “Trabalho Docente”. O primeiro, de autoria de Paulo César Zambroni de Souza e de Milton Athayde, apresenta a contribuição da abordagem clínica do psiquiatra francês Louis Le Guillant para o desenvolvimento da Psicologia do Trabalho. Além da relevância histórica para essa área do conhecimento, – no período que vai da década de 1940 até a de 1960 – o artigo destaca discussões ainda hoje absolutamente relevantes, no campo da Psicologia e da Psicopatologia do Trabalho. Segue um artigo em inglês, de autoria de Ernesto Vasquez del Aguila, que sob o título “Invisible Women” analisa os discursos a respeito da esterilização e reprodução, no Peru, em dois cenários políticos diferentes – o governo de Fujimori e o atual regime democrático de Toledo. A discussão travada no texto é firme na desconstrução do conceito de direitos reprodutivos, pelo menos quando aplicados em contextos de violência, pobreza e de desigualdades econômicas, políticas, de gênero e étnicas. A resenha versa sobre o livro “O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho”, de Ricardo Antunes e publicado em 2005 pela Editora Boitempo. Carla Vaz dos Santos Ribeiro é a autora da resenha na qual destaca o eixo que unifica o livro: a defesa da tese acerca da centralidade do trabalho no mundo, mesmo que diante das profundas transformações ocorridas nesse universo nos últimos anos.

Boa leitura.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LANDER, Edgardo. Conhecimento para quê? Conhecimento para quem? Reflexões acerca da geopolítica dos saberes hegemônicos. In: GENTILI, Pablo (Org.). Universidades na penumbra: neoliberalismo e reestruturação universitária. São Paulo: Cortez, 2001. p. 45-71.

MANCEBO, Deise. Trabalho docente: subjetividade e sobreimplicação. Reflexão & Crítica, v.20, n.1, 2007. (no prelo)

MANCEBO, Deise; LOPES, Marcia Cavalcanti Raposo. Trabalho Docente: compressão temporal, flexibilidade e prazer? Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 13, n. 24, p. 138-152, 2004.

NAIDORF, Judith. La privatización del conocimento público en universidades públicas. In: GENTILI, Pablo; LEVY, Bettina (Orgs.). Espacio público y privatización del conocimiento. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO, 2005. p. 101-162.

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