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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.6 n.2 Rio de Janeiro dez. 2006

 

EDITORIAL

 

Possibilidades identitárias: discussões na hipermodernidade

 

 

Ariane P. Ewald; Deise Mancebo; Anna Uziel; Eleonora T. Prestrelo

Professoras e Pesquisadoras do Instituto de Psicologia da UERJ

 

 

A discussão em torno das novas possibilidades identitárias, construídas a partir do fascínio pelo novo, pela velocidade, pelo consumo e pela lógica do mercado, tem ocupado intelectuais em várias áreas acadêmicas. Tem encontrado espaço de expressão na literatura e no cinema, que catalizam e expõem, às vezes com grande brilhantismo, uma determinada lógica social.

Podemos então colocar em cena dois filmes realizados em épocas bastante distintas e tentar, a partir deles, refletir sobre esta nova forma de ser e de estar no mundo que vem caracterizando o que podemos chamar de “identidades modernas” em curso. O primeiro filme, The Arrangement 1 , foi realizado em 1969, escrito e dirigido por Elia Kazan e traz no elenco grandes atores daquele momento: Kirk Douglas, Faye Dunaway e Deborah Kerr. A pergunta que é feita ao espectador, logo no início, é a linha com a qual toda a história será costurada: Por que um homem rico, aparentemente feliz e realizado, que alcançou grande sucesso na vida profissional, casado com uma mulher compreensiva e bonita com quem teve uma filha, que mora numa grande mansão, que tem carros de luxo à sua disposição na garagem e tudo mais o que um norte-americano desejaria naqueles tempos, jogaria seu carro conversível embaixo de um caminhão dentro de um túnel ao ir para o trabalho? A resposta do diretor parece estar exatamente dentro do campo da identidade, essa construção que fazemos de nós mesmos a partir do mundo no qual estamos inseridos, buscando, talvez, proximidade/aceitação através daquilo que nos faz semelhante aos outros e nos permite um certo grau de convivência social e, ao mesmo tempo, diferenciação, para sermos únicos, exclusivos na espécie “animal humano”. Ao fazer com que o personagem principal, Eddie, vivido por Kirk Douglas, questione a si mesmo, Elia Kazan questiona também a sociedade na qual ele está inserido. Seu primoroso roteiro, com diálogos extremamente bem construídos, leva o espectador a olhar, através do rememorar do protagonista, a história da construção de si mesmo, dos seus valores e dos valores sociais que fizeram dele um “homem realizado”, um “homem de sucesso”. Vemos nele, o protótipo do homem da modernidade, perseguindo objetivos construídos por uma sociedade que ensina que ser é ter, que as relações afetivas são construídas sobre a troca de “fluídos” e a anonimidade, que a idéia de felicidade é a administração de um negócio e que, por fim, você é isso, esse misto de objetos e usos recíprocos. Não é possível um final feliz, porque não há um fim. Há possibilidade de reconstrução, nada mais.

O segundo filme é de 2005, dirigido por Marcelo Piñeyro e adaptado de uma peça de teatro escrita por Jordi Galcerán, roteiro de Mateo Gil: chama-se El Método, aqui intitulado como “O que você faria?”. O fio condutor é simples mas seu desenrolar altamente sofisticado: um grupo de candidatos a executivo de uma grande empresa vem para a etapa final de um processo seletivo. Só há uma vaga, mas quem corresponde melhor aos requisitos da empresa? Quem fará a seleção? E como ela será feita? Os candidatos, cinco homens e duas mulheres, são informados que o método que será aplicado é o Grönholm, mas nenhum deles sabe do que se trata. O processo inicia através de uma tela de computador, que cada um possui diante de si, que passa a solicitar tarefas que devem ser realizadas. Cada candidato lentamente vai se revelando aos olhos de todos à medida que deve cumprir as solicitações feitas pelos examinadores, que nenhum deles vê. Envolvidos pelo clima de tensão externa e competitividade, os candidatos se lançam no jogo e o espectador vai começando a compreender o método utilizado na seleção, que evidencia os passos que cada um deu na construção de sua carreira e, ao mesmo tempo, evidencia a construção de si mesmo, essa identidade forjada na hipermodernidade, neste espaço onde as relações são líquidas, como já afirmou Bauman (2001), e construídas sobre solo movediço e efêmero. Sintomaticamente, o primeiro candidato a ser eliminado é aquele que revela maior preocupação ética com a sociedade e denuncia a empresa em que trabalhava por causar sérios danos ao meio ambiente. É descartado de imediato e visto como um “traidor” em potencial para a nova empresa. Os demais candidatos passam então a se comportar como se nada mais importasse, absolutamente nada mesmo – a não ser conseguir o emprego, incluindo crenças e valores. A conquista da vaga justificaria qualquer sacrifício e uma “flexibilização total” de si mesmo. No final, vence quem mais fez concessões, quem foi mais flexível e implacável, quem soube aproveitar as fraquezas do adversário e elimina-lo. Pronto para assumir o cargo, sua amoralidade o disponibiliza para assumir os valores e interesses da empresa, sem restrições.

Dois filmes, duas histórias que guardam semelhanças de fundo. O capitalismo já anunciava uma corrosão do caráter que Marx anteviu e Sennett (1999) descreveu recentemente tão bem. Há, porém, nestes dois filmes, um ponto pelo menos que os distingue. No primeiro, o personagem principal vivido por Kirk douglas, estrutura sua identidade num mundo no qual os limites estavam mais definidos e permaneciam por um longo tempo. Diante daquilo que configura para ele como a transformação de si mesmo em objeto, ele retoma a si mesmo como sujeito, mergulha numa crise, rompe com a lógica que o alienava de si mesmo e refaz sua vida de uma maneira inteiramente nova, aceitando pagar o preço desta “reconstrução de si mesmo”. No segundo filme, isto – ou algo parecido – nunca acontece. Não há dilemas morais a resolver; não há angústia pela perda de sentido de sua existência; não há grandes e fundamentais questões em cena. O drama de todos é simplesmente conseguir “o” emprego, aquele emprego, aquela vaga e aquele salário. Para eles, tudo fará sentido a partir daí. Os humanos parecem os mesmos, mas seus dilemas parecem ter uma face completamente diferente. Justamente para tentar dar conta deste novo humano, ou pelo menos começar a descrevê-lo para poder compreendê-lo melhor, foi realizado o Colóquio L’Individu hypermoderne organizado pela École Supérieur de Commerce de Paris (ESCP-EAP) e o Laboratoire de Changement Social de l’Université Paris 7, e que no ano seguinte virou livro organizado por Nicole Aubert (2004). O Colóquio tentou responder a algumas questões cruciais da nossa contemporaneidade: quais são as novas faces do indivíduo contemporâneo? Em que elas diferem das que a antecederam, na sua maneira de ser, de fazer, de sentir? Podemos falar de uma metamorfose da identidade contemporânea e o que caracteriza essa identidade contemporânea? (AUBERT, p.7). Neste colóquio, surge e se consagra o termo “hipermoderno” para designar este novo homem, que acabou sendo foco do livro de Lipovestski (2004).

Para os organizadores e participantes deste Colóquio, a noção de modernidade precisava ser urgentemente revista e reavaliada historicamente. Esta noção está ancorada, e sub-entendendo, as idéias de progresso – a sociedade caminhando em direção a um horizonte cada vez melhor, de razão – sob a principal influência de um racionalismo cartesiano, e a idéia de felicidade – ampliada progressivamente sob a regência da Ciência. O projeto da modernidade tardia de nossa época, não parece obedecer em nada a esta lógica de construção, arquitetada no projeto Iluminista, consolidada no século XIX e colocada dramaticamente em xeque no século XX, e que avança ignorando cronologias artificiais pelo século XXI. O principal resultado deste Colóquio foi apontar para a emergência de um “novo indivíduo”, com novas maneiras de ser, de sentir, de fazer, de estar no mundo, que o distinguiria dos humanos que o precederam. Regido por novas e instrutivas formas de compressão espaço-temporal, ele se vê mergulhado num universo histórico-social novo e plenamente globalizado, em que a exigência para sobrevivência implica numa “flexibilidade” ampla e irrestrita; flexibilidade para exercer novas funções e profissões, para consumir e ser consumido; flexibilidade desnorteadora de valores que ao desancorá-lo não o fixa em lugar algum, empurrando para a situação de nômade em relação ao mundo social e a si mesmo.

Novas tecnologias, um triunfo crescente da lógica do mercado e uma destruição progressiva de todos os limites consagrados que balizaram por tanto tempo a construção das identidades individuais, parecem ser o pano de fundo deste “novo homem”, hipermoderno em sua maneira de estar e ser no mundo. O prefixo hiper, sublinhando que a partir daí este homem se moverá e se construirá em situações marcadas pelo gigantismo, pela exacerbação externa das condições prenunciadas, mas não ainda tão desenvolvidas naquilo que a noção de modernidade carregava.

É o homem da hipermodernidade, das imensas megalópoles, onde ele desaparecerá anonimamente, acumulador incansável de produtos até o limite da impossibilidade de usufruir dos mesmos. É também o homem que revela os aspectos contraditórios desta nova lógica de vida e que serão fonte de imensa angústia, diluída ao sabor de medicamentos. Uma delas, deriva do fato de que este homem precisa satisfazer as suas necessidades de “consumidor” cada vez com mais rapidez e avidez, já que o novo é sempre o que virá e tudo parece obedecer a uma perversa e angustiante lógica de “obsolecência programada”. Preso numa lógica que não o tranqüiliza nunca, numa contínua e permanente busca do que ainda não existe para adquirir e dela se descartar rapidamente, ele se torna cada vez mais intolerante à frustração. “Muito tudo, agora”... poderia ser perfeitamente seu mote revelador desta urgência de viver com a máxima intensidade tudo, como acentua muito bem Lacroix (2006). Fadiga, insônia, ansiedade, gastrite, indecisão, parecem conseqüências naturais e previsíveis. Em cena também um “Eu fatigado” (EHRENBERG,2000) ou um “Eu saturado” (GERGEN, 2006) e um sujeito mergulhado no “excesso de inexistência” (AUBERT, 2004).

Re-desenhar a curva de sua vida, ser sujeito de sua existência – o que implica num trabalho árduo e complexo e, acima de tudo, sobreviver numa lógica de “identidades em trânsito”, onde se determinou o sentido da existência – é o desafio para este novo homem.

Neste novo número da revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, colocamos em cena artigos que discutem este novo cenário. Este número é também uma homenagem à Margarete de Paiva Simões Ferreira, que faleceu recentemente (leia o texto). O artigo de Blanca Munõz, professora de sociologia da Facultad de Ciencias Politicas y Juridicas de la Universidad Carlos III de Madrid, intitulado “Comunicación Social y Movilización Popular”, nos coloca diante do atentado de 11 de março em Madrid. Sua discussão acentua que quatro tipos de “relatos comunicativos” vão se sucedendo desde as primeiras horas do atentado, e que o uso dos meios de comunicação de massa e das novas tecnologias de informação alterou a compreensão que a população teve do atentado.

No artigo “Considerações sobre a morte e o morrer na hipermodernidade”, os autores Jorge Coelho Soares e Marília Antunes Dantas realizam uma análise crítica da circunscrição técnica e legal do conceito de eutanásia que, segundo os autores, tende a deslocar esta discussão das questões existenciais sobre a morte e o morrer no contexto histórico e social atual.

Dando fôlego a esta mesma temática, o artigo “Pseudo-individuação e homogeneização na cultura do consumo: reflexões críticas sobre as subjetividades contemporâneas na publicidade”, de Fátima Severiano, propõe uma discussão sobre os processos de individuação/homogeneização no contexto das sociedades de consumo contemporâneas, considerando a publicidade como um veículo privilegiado de produção de subjetividades, uma vez que, segundo a autora, veicula imagens de objetos associados a ideais e estilos de vida.

O artigo “A relação do homem com o trabalho na contemporaneidade; uma visão crítica fundamentada na Gestalt-Terapia”, discute o modelo contemporâneo de gestão participativa nas organizações e sugere que esse modelo redunda em um processo de controle e disciplinação e propõe conceitos advindos da Gestalt-Terapia como possibilidade para uma relação mais construtiva e prazerosa com o trabalho. Envolvendo também a questão do trabalho, o artigo “Fórum nacional em defesa da escola pública na LDB: a questão da docência”, analisa o modo pelo qual os movimentos sociais vêm abordando as questões da saúde do trabalhador docente.

Fazendo uma relação entre as obras literárias e as obras filosóficas ou técnicas de Jean-Paul Sartre, o artigo “A Náusea e a Psicologia Clínica: interações entre literatura e filosofia em Sartre”, põe em cena a proposta sartreana de uma “Psicanálise existencial”, aplicada por ele em seus romances e em biografias de autores famosos. O artigo de Daniela Schneider procura defender que as realizações nesse campo trazem contribuições consistentes para a psicologia clínica.

Três pesquisas encerram essa sessão de artigos: “Análise Lexical e Análise de Conteúdo: uma proposta de utilização conjugada”, discute a utilização conjugada de um software desenvolvido para a análise textual e de um procedimento de análise de conteúdo clássica; “Sinais Não-verbais da Dissimulação: Inatos ou Adquiridos?” parte do principio que a dissimulação pode ser descoberta, devido a fatos ou pessoas, e/ou em função da conduta de quem dissimula. A pesquisa buscou então verificar se o comportamento não-verbal de deficientes visuais é diferente do de pessoas com visão normal ao dissimular e o treinamento é capaz de melhorar a habilidade de identificação da dissimulação por meio do comportamento não-verbal; “representação social da pesquisa pelos doutorandos em ciências exatas” propõe uma análise da representação social da atividade de pesquisa, classificada como fundamental e aplicada, pelos doutorandos que desenvolvem uma tese nas áreas de ciências exatas.

A resenha deste número é do livro Gestalt e Gênero: configurações do masculino e feminino na contemporaneidade, organizado por Lilian Meyer Frazão e Sérgio Lizias C. de O. Rocha e a comunicação de pesquisa é de Silvia Pavão, O louco e a ciência: a construção do discurso alienista no Rio de Janeiro do século XIX.

Este número também apresenta uma entrevista com o professor Gilberto Velho, feita por dois alunos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia social, focando nas possíveis relações e aproximações entre Antropologia e Psicologia Social.

 

Referências Bibliográficas

AUBERT, Nicole (Org.). L´Individu Hypermoderne. Paris: Éditions Érès, 2004.

EHRENBERG, Alain. La Fatigue d´Être Soi: Dépression et Société. Paris: Éditions Odile Jacob, 2000.

GERGEN, Kenneth F. El yo saturado. Barcelona: Paidós Ibérica, 2006.

LACROIX, Michel. O Culto das emoções. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.

 

 

Notas

1 No Brasil o filme recebeu o título “Movido pelo ódio”. O título original possibilita pensar “arrangement” como “ajuste de contas”, um ajuste de contas consigo mesmo e com o mundo.

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