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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.6 n.2 Rio de Janeiro dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Fórum nacional em defesa da escola pública na LDB: a questão da docência

 

Fórum nacional em defesa da escola pública na LDB: the teaching question

 

 

Fabiana Castelo Valadares*, I; Marisa Lopes da Rocha**, I, II

I Universidade do Estado do Rio de Janeiro
II Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse trabalho tem como perspectiva colocar em análise o modo pelo qual os movimentos sociais vêm abordando as questões da saúde do trabalhador docente em suas lutas, não apenas como ausência de doença, mas como um estado em que a saúde rompe com os limites do previsível. Estabelecemos como foco de análise a atuação dos movimentos sociais em educação, em especial o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública na LDB, como um espaço/tempo de proposição e articulação do movimento que busca, para o trabalho docente, a saúde. Trazemos como questão a tensão entre o modelo de gestão presente na atualidade e a proposta de gestão apresentada pelos movimentos que vinculavam a emergência dos conselhos de controle social como uma forma de intensificar a implementação de um Estado democrático. Retomar o processo de aprovação da LDB é retomar um processo de lutas e de golpe na vida dos educadores, por isso nosso interesse em buscar saídas, espaços de tensão onde os movimentos estão presentes, onde a saúde prevalece.

Palavras-chave: Trabalho e saúde, Educação e trabalho, Psicologia e movimentos sociais, Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e LDB


ABSTRACT

The perspective of this paper is to analyze the approach of the social movements toward the health issue regarding the education worker. In this context health is not only the absence of illness, but a complex state of health that goes further the limits of the predictability. Ours foci are social movements that are connected with the theme of education, moreover we are going to concetrate our attention on the National Forum in Defense of the Public School in LDB (Forum Nacional em Defesa da Escola Pública na LDB). Those fori are considered as locus/time for the proposition and the articulation of the general struggle for the health of the teaching worker. We put in light the tension between the on going management model and the model presented by social movements’ creadle of the social control groups toward the intensification of the implementation of a democratic State. In our perspective, going back to the process of approvement of the LDB is equivalent to revisit the process of struggle and losses in the life of education professionals. This fact justifies our interest in the search of ways out and controversies within the movements that regard the topic of health.

Keywords: Work and health, Education and work, Psychology and social movements, Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública and LDB.


 

 

Para que seja feita a análise concreta das relações de poder, é preciso abandonar o modelo jurídico da soberania. Esse, de fato, pressupõe o indivíduo como sujeito de direitos naturais ou de poderes primitivos; tem como objetivo dar conta da gênese ideal do Estado; enfim, faz da lei a manifestação fundamental do poder. Seria preciso tentar estudar o poder não a partir dos termos primitivos da relação, mas a partir da própria relação, uma vez que é ela que determina os elementos dos quais trata: mais do que perguntar a sujeitos ideais o que puderam ceder deles mesmos ou de seus poderes para se deixar sujeitar, é preciso procurar saber como as relações de sujeição podem fabricar sujeitos. (FOUCAULT, 1997, p.71)

A promoção de saúde nos ambientes de trabalho tem sido uma preocupação para diferentes setores organizados da nossa sociedade na atualidade, mas, na grande maioria das intervenções, as propostas vêm transitando entre as abordagens higienistas e tecnicistas, em que a saúde encontra-se circunscrita à redução de morbidade. Questionando o paradigma cientificista que dá corpo à medicalização da vida, comprimindo a saúde à perspectiva preventivista da morbidade, procuramos neste trabalho colocar em análise o modo pelo qual os movimentos sociais vêm abordando as questões da saúde do trabalhador docente em suas lutas, não apenas pela ausência de doença ou pela prevenção desta, mas enquanto rompimento com os limites do previsível. Isso significa que por saúde entendemos a potência que um corpo tem para enfrentar as adversidades que se constituem no curso das ações cotidianas, criando outras estratégias em busca da ampliação de qualidade de vida. O cotidiano, para além da rotina, pode ser abordado como um laboratório de experimentação em que os acontecimentos rompem com a previsibilidade, suscitando sempre novas ações. Nesse sentido, nosso campo de análise deixa de dar ênfase à morbidade, às estatísticas de adoecimento ou de recolocação profissional, e passa a dar visibilidade à noção de saúde constituída a partir de Canguilhem (2000), vista como a capacidade de produção de novas normas, de dobrar a realidade a seu favor. Nosso pressuposto é de que a saúde é movimento, é a (re)criação permanente de si e de seu próprio meio.

Em relação à educação, afirmamos que é através das intervenções individuais e coletivas nas normas instituídas que se criam as circunstâncias que podem dar conta das singularizações do cotidiano de trabalho na formação, produzindo saúde na comunidade escolar. A capacidade de luta, de organização docente, passa a se constituir como questão para a saúde do trabalhador, uma vez que a formação se organiza em rede, exigindo a gestão coletiva das condições em que se realiza o processo. Em suma, são os movimentos coletivos de enfrentamento das adversidades da vida no trabalho que permanentemente produzem saúde. Se saúde é movimento, é tensionamento com as margens prescritas para o curso das atividades, nosso foco de análise é a atuação dos movimentos sociais em educação, em especial o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP) na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9394/96, como um espaço/tempo de proposição e articulação do movimento que busca, para o trabalho docente, a saúde. Retomar o processo de aprovação da LDB é reconsiderar todo um processo de construção, de lutas, de reivindicações e de golpe, cujos efeitos ainda encontramos hoje na vida dos educadores, justificando-se, desse modo, nosso interesse em buscar saídas, espaços de tensão em que os movimentos estão presentes, onde a saúde prevalece.

Assim, o artigo começa pela apresentação da noção de saúde do trabalhador, vinculada aos estudos de saúde coletiva e às investigações sobre o trabalho docente. A seguir, traz a contextualização dos novos movimentos sociais, aprofundando as discussões sobre o projeto de LDB que surge no bojo dos movimentos sociais na Educação e que não chegou a ser implementado. Finalizando, polemiza a fragilização dos coletivos e da força do movimento e suas implicações com a saúde docente.

 

DE ONDE PARTIMOS...

As discussões sobre o campo da saúde do trabalhador no Brasil surgiram com mais peso político a partir da década de 70, sob grande influência do Modelo Operário Italiano (MOI). O MOI já previa a participação ativa dos próprios trabalhadores no estudo diagnóstico dos seus espaços de trabalho (BRITO, 2004), o que possibilitou a disseminação da técnica de construção do mapa de risco que ganhou grande popularidade a partir da década de 80 no país. Naquele período, tal técnica tinha como proposta a identificação dos agentes nocivos e efeitos patológicos presentes no trabalho, vinculando a atuação no campo da saúde do trabalhador à busca de perfis de morbidade. Isto significa que a luta pela saúde no trabalho, embora avançasse, estava ainda restrita à dimensão de um estado de “ausência de doença”. Alguns efeitos dessa prática são relacionados ao privilégio da noção de assistência aos trabalhadores já afetados pelas morbidades em detrimento da noção de vigilância, que teria como função primordial a prevenção e a garantia da saúde no trabalho.

O aprofundamento das questões sobre o trabalho e a identificação deste a um tipo de atividade que exige superação, criatividade e movimento, isto é, atividade de trabalho como produtora de subjetividades, possibilitou também uma mudança na perspectiva da saúde do trabalhador. Tal perspectiva passou a contar como pertinente a seu campo de ação não apenas a eliminação dos fatores de risco, mas também “[...] a subjetividade/experiência dos trabalhadores na análise da saúde” (BRITO, 2004, p.107).

É nesse contexto que ganham visibilidade os estudos da saúde coletiva, enfatizando a investigação dos processos de produção presentes nos modos de trabalho e as relações destes com os desgastes dos corpos e os adoecimentos dos grupos de trabalhadores. Para tanto, práticas transdisciplinares foram implementadas com o propósito de “[...] estudar e intervir nas relações entre o trabalho e a saúde, a partir do processo de trabalho, mas incorporando a experiência/subjetividade do trabalhador, por meio de sua participação nas pesquisas e ações [...]” (BRITO, 2004, p.92-93). Isso significa que as experiências se constituem entre os homens situados em um tempo/espaço sócio-historicamente produzido, sendo o ambiente de trabalho implicado com a complexidade desse processo. É partindo deste entendimento e visando a alterações no trabalho, nos modos de produção e nas relações ali presentes que a própria concepção de causalidade da doença aponta para uma noção de saúde relacionada às conquistas permanentes “em meio às forças políticas” (BRITO, 2004, p. 93), ou seja, às tensões e ações coletivas. A melhoria da saúde no trabalho, portanto, passa principalmente por mudanças no processo de trabalho, incluindo as relações sociais presentes.

No que tange ao trabalho docente, não são poucos os registros que tratam a questão, evidenciando um alto perfil de morbidade. Muitas pesquisas recentes entre as quais a realizada no município de Vitória-ES, como apresenta Silva e outros (2003), tendo como alvo professores(as) do ensino fundamental da rede pública, têm mostrado o aumento de afastamentos e readaptações dos profissionais da educação em função do modo de gestão tecnocrático, analisando a relação dos dados com a produção de subjetividades. Os depoimentos de alguns educadores evidenciam que a perspectiva tecnocrática aciona mecanismos que acentuam o isolamento, a individualização do processo, a desvalorização profissional e o sobretrabalho em condições cada vez mais precárias:

Eu estou muito assustada, de 98 para cá: quando chega o mês de novembro, com o número de pessoas que têm tirado atestado médico, dentro desta escola e de outras, as pessoas estão ficando doentes. É resfriado, crise nervosa... (SILVA et al, 2003, p.71).

Os maiores motivos de se tirar licença a gente vê que é o acúmulo de funções e a insatisfação por não termos liberdade de resolver questões de indisciplina, por exemplo (SILVA et al, 2003, p.71).

Eu sou visto como o cara, hoje, que não quer trabalhar. Tudo o que eu fiz para trás não valeu absolutamente nada. Isso dói pra caramba (SILVA et al, 2003, p.73)

Nossa proposta se circunscreve na afirmação de ações coletivas, de movimentos que valorizem outras formas de relações no trabalho cotidiano em oposição às práticas de isolamento reforçadas em nossa sociedade. Apostar nos movimentos compartilhados é reconhecer que a saúde está presente mesmo nos espaços onde há adoecimento, até porque adoecer é ainda lutar, mesmo que precariamente, por saúde. Canguilhem (2000) nos apresenta uma noção de saúde que subverte as noções positivistas comuns nas práticas médicas. Para este autor, saúde é a capacidade de cair doente e recuperar-se. É a possibilidade de lidar com imprevistos, de produzir novas normas de vida individuais e coletivas, é, em suma, movimento. É nesse sentido que compreendemos a saúde no trabalho como a possibilidade de lidar com o risco, enfrentado não pelas iniciativas individualistas, mas pela construção de dispositivos de coletivização, onde a busca pela saúde é operacionalizada.

 

O MOVIMENTO DO INDIVIDUAL AO COLETIVO

Partimos do pressuposto de que os movimentos sociais potencializam saúde pela intensificação das lutas e expansão da vida. A noção de saúde é entendida, então, em seu conceito ampliado, contemplando a produção de subjetividades no trabalho, o que implica a renormalização permanente das relações sociais e do exercício laboral. Saúde não é o mesmo que normalidade; esta se limita à capacidade defensiva do homem que, na busca de proteção das agressões do meio e dos encontros que possam afetá-lo, conserva a normalidade:

Já a saúde remete para a capacidade ativa de tolerar o que extrapole as normas habituais, as variações da vida. Remete também para a capacidade de enfrentar essas infrações às regras habituais, essas variabilidades, criando outras normas de vida (biológicas, psicológicas e sociais). A essa capacidade de se relacionar com o meio criando novas normas chamamos “ser normativo”. Normatividade, portanto, é diferente de normalidade (SILVA et al, 2003, p. 37).

Apostamos na possibilidade da promoção de saúde a partir do enfrentamento coletivo das relações que tencionam o meio social para recriar sua normatividade. E, nesse sentido, a organização da comunidade educacional com vistas à superação do modelo de gestão pública e de políticas públicas de educação é por nós considerado um movimento de afirmação da saúde.

As experiências trazidas pelos movimentos sociais, a partir principalmente da década de 70 no país, apontam para iniciativas coletivas que buscam a construção de novas normas de vida em sociedade. Tais movimentos delimitam, entre os diversos campos de luta, a intervenção efetiva nos espaços de representação parlamentar, impulsionando, através de propostas de alteração nas leis nacionais, mudanças na sociedade. As propostas trazidas por esses movimentos apontavam para a superação do Estado ditatorial militar, presente no país desde o Golpe de 64, e visavam, através da construção de um novo modelo de sociedade, à defesa da democracia.

É nesse contexto que os movimentos sociais no campo da educação retomam aspirações antigas da sociedade brasileira, principalmente dos educadores que, semelhante às aspirações da década de 20, pretendiam a defesa de uma escola pública, laica e de qualidade para todos. Os movimentos sociais, que partiram da comunidade educacional organizada, tinham na redemocratização do país um campo fértil de atuação. A constituinte tornou-se, portanto, um espaço/tempo de revelação destes movimentos que, principalmente durante a década de 80, visavam alcançar posições mais efetivas no campo da gestão pública. São exemplos as tentativas de busca por representação no parlamento, através da composição do Partido dos Trabalhadores, com anseios de alcançar a presidência do país, ou mesmo através da construção de dispositivos de intervenção social como fóruns e conselhos.

 

E NA EDUCAÇÃO...

Durante o processo da Constituinte surge, entre as diversas iniciativas dos movimentos sociais organizados na educação, a criação do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP). Este congregou diversas entidades implicadas com a educação em defesa de sua publicização, buscando garantir um espaço de dignidade no texto constitucional. Sua atuação durante o processo da Constituinte, privilegiando o parlamento como espaço de luta, logrou grandes vitórias para a educação nacional, onde foi, principalmente, garantida a educação como direito de todos e dever do Estado. No entanto, também foram expressivas suas derrotas em relação aos setores privados e religiosos que, apesar da intensificação das lutas contra o desvio de verbas públicas, obtiveram garantias de recursos por designação constitucional. Após a aprovação da Constituição de 1988, o FNDEP tem como objetivo a implementação de uma Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para a Educação Nacional. Objetivo pretensioso, mas não tão novo, já que em 1946 a comunidade educacional organizada apresentava pela primeira vez na história nacional uma proposta para as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

A proposta do fórum para a LDB foi discutida em diversos eventos educacionais e, depois de sistematizada, foi apresentada ao parlamento pelo então deputado Otávio Elísio, na intenção de promover um debate democrático sobre o tema. Na proposta de LDB apresentada, é defendido um conceito amplo de educação, de trabalho e de qualificação do trabalhador docente, visando como principal objetivo a formação do cidadão. No artigo 1º do projeto de lei apresentado consta o seguinte texto:

Art.1º - A educação nacional:
a) inspirada nos ideais de igualdade e de liberdade, tem por fim a formação de seres humanos plenamente desenvolvidos, capazes, em conseqüência, de compreender os direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado e dos diferentes organismos que compõem a sociedade;
b) inspirada nos ideais democráticos, visa colocar cada cidadão brasileiro na condição de poder ser governante e de controlar quem governa;
c) inspirada nos ideais de solidariedade humana, promoverá o fortalecimento da unidade nacional e a solidariedade internacional, assim como a preservação, difusão e expansão do patrimônio cultural da humanidade;
d) inspirada nos ideais de bem-estar social, tem por objetivo o preparo dos indivíduos para o domínio dos recursos científicos e tecnológicos que lhes permitam utilizar as possibilidades do meio em função do bem comum (SAVIANI, 2003, p.43).

Após cerca de nove anos de tramitação entre Câmara e Senado, a proposta da LDB apresentada pelo FNDEP é arquivada, dando lugar a uma outra proposta que melhor atende aos interesses da iniciativa privada e do modelo neoliberal de Estado, fortemente implementado no Brasil com o governo de Fernando Henrique Cardoso. A aprovação da Lei 9394/96 representou uma grande derrota para o Fórum que, até então, apesar de todo engajamento nos debates do parlamento, via-se perdendo força política justamente em seu principal foco de atuação: as escolas públicas nacionais.

As reformas na educação nacional que partiram da nova LDB inserem no campo da educação um modelo de organização bastante nocivo à construção do conhecimento e à própria saúde do trabalhador, uma vez que tecnocratiza a gestão, massificando, acelerando e racionalizando o processo de formação. Para Rocha (1998, p. 75),

A escola contemporânea evidencia uma organização reificante através da multiplicação de técnicas e métodos que homogeneízam (leis universais), simplificam (objetividade e linearidade) e agilizam (praticidade, repetição e superficialidade) o processo educacional. A ordem pragmática cria dispositivos de poder que compartimentalizam as relações por meio dos papéis, das funções e das especializações. Esta forma de estruturação, que é exercida através de instrumentos auto-reguladores, tem sua base na vigilância constante, nas avaliações regulares dos resultados e nas sanções normalizadoras, construindo uma pedagogia que administra o tempo/espaço, transformando o homem em co-produtor das próprias amarras a que está submetido.

A própria noção de educação é aviltada na nova LDB, pois são privilegiados os processos de formação técnica, de treinamento de habilidades que visam ao mercado de trabalho, em detrimento da formação generalista, da constituição do pensamento crítico e da produção do conhecimento. Nessa perspectiva, passamos a presenciar um certo modo de funcionamento da escola, sendo o adoecimento dos trabalhadores, os desmontes das instituições públicas de ensino e a desvalorização social da educação e do educador no país os seus principais efeitos. Como proposta de trabalho e ação resistente a tais processos, permanecemos em busca de estratégias que permitam a produção de outras subjetividades, em que a qualidade de vida e o trabalho não sejam tomados como mercadorias, mas movimentos coletivos por saúde. O resgate das lutas do FNDEP para a LDB pode se constituir em uma dessas estratégias, na medida em que permite uma reflexão sobre o processo vivido, assim como traz a perspectiva de novas práticas de gestão para a educação nacional, afirmando o trabalhador da educação em outra lógica de organização do trabalho.

 

PARA O FNDEP: O TRABALHADOR DA EDUCAÇÃO

A partir da Constituição de 1988, institui-se na sociedade brasileira uma proposta de gestão democrática porque legitima a participação popular na gestão das políticas públicas. Segundo Santos Júnior (2005, p.1) é a partir desse dispositivo de lei que:

(...) são estabelecidas como fundamentos do sistema de governo do país a soberania e a cidadania, nas quais o poder pode ser exercido por meio tanto dos representantes eleitos – na forma do sufrágio universal com o voto direto e secreto – como da participação direta – principalmente mediante três institutos aprovados: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (...).

É principalmente a partir da década de 90 que a participação institucional na gestão pública passa a ser marcada pela institucionalização e difusão de dispositivos que formalizam a participação popular. É nesse período que emergem os conselhos como canais de representação ativa da sociedade. Os conselhos apresentam como características a delimitação de sua abrangência ligada, por exemplo, a áreas temáticas, o caráter semi-representativo e não remunerado de seus membros, a função deliberativa de suas definições, a composição paritária entre governo e sociedade civil e, por fim, sua organização semi-autônoma em relação ao governo (SANTOS JUNIOR, 2005). Tal forma de gestão apresenta, como inovação em relação ao modelo de democracia até então vigente, a abertura de novos padrões de interação do governo com a sociedade em torno da definição de políticas sociais. São prerrogativas deste modelo de gestão o processo de reconhecimento e legitimação da agenda de demandas dos diferentes segmentos sociais representados, mediado pela própria agenda do poder público, bem como o reconhecimento de atores e agendas no processo de constituição de uma esfera pública adequada para a comunicação, a construção da opinião pública e a tomada de decisões em torno das escolhas disponíveis relativas a políticas sociais, de forma que essas escolhas estejam mais próximas dos interesses do conjunto de atores locais.

Tomando como pressuposto a noção de Estado ampliado, calcada principalmente nas propostas de gestão democrática presente na Constituição de 1988, a proposta para a LDB apresentada pelo FNDEP à Câmara, nesse mesmo ano, através do projeto de lei proposto pelo então deputado Otavio Elísio, destinou aos professores e especialistas um título para tratar de questões como a formação dos professores, currículo mínimo, exercício do magistério de superior e provimento de cargos. Quanto à formação dos professores foi estabelecida a sua realização em nível superior “[...] através de cursos de graduação e pós-graduação resultantes da articulação entre as Faculdades ou Centros correspondentes aos diferentes componentes curriculares, e a Faculdade ou Centro de Educação[...]” (SAVIANI, 2003, p.48). Os currículos para esta formação seriam organizados pelos estabelecimentos de ensino, segundo as normas determinadas pelos Conselhos de Educação. No que tange ao exercício do magistério, esse deveria ser regulado através dos Estatutos e Regimentos de cada instituição, sendo o provimento dos cargos somente realizado através de concurso público.

A defesa da formação superior a todos os profissionais que atuam no magistério tinha a função de constituição de uma “[...] cultura superior com o objetivo de possibilitar a toda a população a difusão e discussão dos grandes problemas que afetam o homem contemporâneo[...]” (SAVIANI, 2003, p.40). Os profissionais do magistério, atuando desde a educação básica até a superior, seriam os principais multiplicadores dessa cultura superior, proporcionando um clima de desenvolvimento cultural e atividade intelectual a toda a população escolarizada. No entanto, esta proposta naquele período, e ainda hoje, encontrava-se bastante distante da realidade do magistério brasileiro e de toda a população. Um entendimento que podemos ter em relação à ausência de dispositivos legais no texto do projeto quanto à capacitação do professor antes e depois da entrada no magistério pode estar relacionada às dificuldades enfrentadas, durante o processo da constituinte, cuja estratégia foi evitar uma suposta centralização funcional por parte da União. A proposição de uma lei mais generalista teria a perspectiva de facilitar a aprovação do projeto, tendo sido privilegiados os dispositivos de controle social, deixando para os Planos de Educação e os Conselhos a criação de dispositivos para a implementação da lei. O que evidenciamos como efeito de tais procedimentos é que não foram dispostos no projeto de lei formas de efetivação da formação superior aos docentes, quer pela precária rede de cursos normais superiores ou de faculdades nas diferentes regiões do país, quer pela falta de programas de capacitação dos professores nas escolas. Não sendo garantidos em lei os dispositivos de mudanças, isso fica a cargo de leis complementares e ao gosto das pressões e interesses econômicos locais.

Na proposta de LDB apresentada pelo FNDEP, o profissional do magistério era colocado como um dos principais gestores da educação, tendo cadeira cativa no Conselho Federal de Educação, órgão então responsável pela normatização da educação nacional. Tal proposta delegava aos profissionais do magistério a atuação política em seu meio, garantindo a aproximação entre prática docente e atuação política de gestão das relações sociais em todos os graus da educação escolar (primeiro, segundo e terceiro) e pré-escolar. Caberia aos profissionais da educação, principalmente aos docentes, efetivar o controle da gestão pública através dos Conselhos de Educação. Para isso, o projeto de implementação da LDB deveria ser viabilizado através de dispositivos criados nos Planos Estaduais de Educação, que teriam a função primordial de adequar a lei às características regionais presentes como, por exemplo: necessidade de formação continuada do quadro docente, adequação da carga horária e relação professor/aluno, composição dos conselhos estaduais e municipais, proposta de erradicação do analfabetismo, superação da repetência, principalmente nos primeiros anos da educação básica, entre outros. Já os Conselhos de Educação tinham como função a constante vigilância, controle e normatização das propostas nos níveis Federal, Estadual e Municipal, garantindo, assim, a correta aplicação dos recursos destinados à educação, a ouvidoria das questões trazidas pela comunidade em geral e a proposição de alternativas para a viabilização das propostas para a educação nacional em seus diversos níveis de abrangência.

Uma outra questão que ressaltamos está relacionada à efetivação dos controles previstos no projeto de lei, onde, por exemplo, a discussão da implementação do orçamento deveria passar pela aprovação dos conselhos de educação. O objetivo desta proposta era garantir a aplicação dos recursos da educação somente em atividades da educação, evitando o desvio destes recursos a obras ou programas assistenciais. A grande questão enfrentada naquele momento estava na dificuldade de garantir que a prática da gestão dos conselhos não se tornasse mais um espaço de burocratização subordinado às rotinas administrativas das gestões do aparelho de governo.

É com essa crítica que apontamos a ausência de referências no texto do projeto de lei apresentado pelo FNDEP quanto à garantia de participação da sociedade organizada nesses espaços, bem como o peso desta participação. Nossa análise quanto à ausência de delimitações que apontassem para essas garantias está relacionada justamente à proposta de inovação apresentada pelo movimento: a gestão democrática. Naquele período, pouca elaboração e experiência deste tipo de gestão estavam presentes no cotidiano de nossa sociedade, isto é, o aprofundamento da democracia. A intenção presente na proposta do FNDEP, segundo Saviani (2003), era a de que os conselhos estaduais e municipais tivessem por analogia composição semelhante ao Conselho Federal, ou seja, que em sua composição fosse garantida a presença de profissionais da educação que participassem ativamente em seu nível de abrangência, conhecendo a fundo as necessidades e problemas locais a serem enfrentados. Buscou-se com os conselhos criar “[...] mecanismos que permitam ultrapassar a falta de unidade e de harmonia assim como a improvisação e descontinuidade que têm marcado a educação em nosso país” (SAVIANI, 2003, p.37). No cenário então traçado, caberia aos Conselhos de Educação, de atuação relativamente autônoma em relação ao Executivo, evitar as descontinuidades entre as gestões. No entanto, não foi feita referência no projeto quanto à possibilidade de participação dos docentes. O projeto garantia que o Conselho Federal de Educação teria um terço de sua composição indicada por entidades do magistério e que os Conselhos Estaduais teriam suas legislações próprias. O que não se garantiu foi um dispositivo que viabilizasse a participação dos docentes, já que não foi objeto deste projeto a regulamentação de carga horária, relação professor/aluno, redução de carga horária em casos de representação política nos Conselhos. Não defendemos que a participação de docentes em Fóruns ou Conselhos de controle social deva ser tratada como prática com remuneração suplementar, mas quando consideramos a precarização do trabalho docente e as condições em que estes profissionais exercem suas funções, muito em função de seus baixos salários, das duplas ou triplas jornadas de trabalho, a exigência ainda de sua participação política nestes espaços fica significativamente depreciada. Em contrapartida, os demais representantes da composição dos Conselhos são cargos de livre indicação do Executivo e Legislativo, o que efetivamente demonstra um descompasso no funcionamento democrático.

Assim, caberia ao projeto apresentar subsídios para que os docentes pudessem efetivamente ter uma participação nos conselhos, sem a desvinculação da prática profissional, evitando um distanciamento entre docência e intervenção política na qualidade de gestor no controle social. A não proposição desses dispositivos na proposta de lei do nosso sistema de ensino constitui, no nosso entender, uma das hipóteses que apontam para um suposto afastamento entre FNDEP e sua base, os profissionais do magistério. Gohn (1994, p.85) faz algumas observações sobre a representatividade do FNDEP nas escolas, entendendo que:

As práticas se concentraram nos militantes das instituições, militantes estes às vezes fortemente demarcados por posições político-partidárias, e por isso mesmo não aceitos por um conjunto mais amplo da própria comunidade educacional. (...) Sabemos que os anos 80 trouxeram em seu bojo, dentre as inúmeras mudanças sociais em curso, uma certa aversão pela política partidária, um descrédito nas instituições e nas ações voltadas para o poder. A sociedade, de uma maneira geral, tem preferido armar e articular seu próprio poder. (...) Assim sendo, o FNDEP, enquanto movimento social, tendeu a mobilizar apenas as categorias corporativas, que viram em suas ações uma forma de expressar suas demandas.

Obviamente que tratamos aqui de posições/reflexões que devem continuar a ser analisadas para que outras hipóteses possam ser consideradas no que tange à dificuldade de organização de professores em coletivos gestores de seu trabalho, principalmente no que diz respeito à contextualização dos movimentos, como por exemplo: a desmobilização da sociedade organizada ocorrida, sobretudo, durante a década de 90, já relatada por diversos autores; a emergência das ONGs no cenário nacional como um aglutinador de mobilizações sociais; o próprio encerramento do processo constituinte e da formulação das leis nacionais que, neste momento, superaram seu “inimigo comum”, o Estado Ditatorial, fragmentando as lutas políticas atuais. Apesar de todas estas questões que compõem a complexidade da organização política em tempos neoliberais, reforçamos a idéia de que o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública compôs e ainda compõe um movimento nacional de grande importância para a sociedade educacional organizada. Neste sentido, o FNDEP foi e tem sido um constante vigilante das políticas educacionais e, mesmo com limitações e contradições em sua atuação, tem intensificado forças em defesa de uma educação pública, gratuita e de qualidade. Pública, significando publicização de gestão; gratuita, enquanto um direito de cada um; e de qualidade, evidenciando que a gestão coletiva é abertura para a luta por melhores condições de vida e saúde para todos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Fabiana Castelo Valadares
E-mail:fabianacastelo@yahoo.com.br

Marisa Lopes da Rocha
E-mail: rochadm@uol.com.br

Recebido em: 17/03/2006
Aceito para publicação em: 24/08/2006

 

 

NOTAS

* Psicóloga, conselheira do CRP-05 e Mestranda do curso de Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
** Professora Adjunta da UERJ. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.

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